“Bancada ruralista tem mentalidade classista raivosa”, diz Dom Tomás
Por Eduardo Sales de Lima
Do Brasil de Fato
Ele esteve presente na fundação do Brasil de Fato. Lutou e aguardou por aquilo que há anos os movimentos populares desejavam: ter um instrumento de comunicação capaz de disseminar suas lutas e denunciar as mazelas do velho e presente capitalismo.
Por Eduardo Sales de Lima
Do Brasil de Fato
Ele esteve presente na fundação do Brasil de Fato. Lutou e aguardou por aquilo que há anos os movimentos populares desejavam: ter um instrumento de comunicação capaz de disseminar suas lutas e denunciar as mazelas do velho e presente capitalismo.
Somado ao escritor uruguaio Eduardo Galeano, à médica cubana Aleida Guevara, Hebe de Bonafini, das Mães da Praça de Maio, entre outros, Dom Tomás, um dos fundadores da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), testemunhou a expectativa da chegada de Lula ao Planalto e todo o otimismo em relação à nova onda progressista na América Latina.
Uma década após aquele 25 de janeiro, no Auditório Araújo Viana, em Porto Alegre (RS), parece ser o momento de fazer um balanço do que foi o processo das lutas sociais nesse período, do comportamento da sociedade civil e da implementação de políticas de estado relacionadas à reforma agrária, por exemplo. Também não seria a hora de refletir a caminhada de um jornal que tentou registrar esses processos sob uma ótica popular?
Para falar da importância dos meios alternativos de comunicação, e mesmo dar ânimo aos que lutam por justiça social em meio a uma sociedade que segundo o bispo emérito de Goiás “se inclina para a direita”, Dom Tomás cita seu mestre, Jesus: “O pequeno fermento, a pequena chama, tudo isso é pequenez, mas tem uma vocação de abrangência, de solidariedade, de crescimento, de ultrapassar os obstáculos à dignidade da mulher, do homem, da terra, da mata, dos ribeirinhos. Nós devíamos apostar mais nessa perspectiva”.
Brasil de Fato – O senhor participou do ato de fundação do Brasil de Fato, no Fórum Social Mundial de 2003, realizado em Porto Alegre (RS). Havia uma expectativa dos movimentos sociais naquele momento, sobretudo porque Lula estava recém-eleito presidente do Brasil. Qual o balanço que o senhor faz a respeito da luta social no país nesses últimos dez anos e que o Brasil de Fato tem registrado?
Dom Tomás – Houve um retrocesso. O país se inclinou mais para a direita, com o risco de ser até como os Estados Unidos, que é um caminho perigoso. E, nesse sentido se distanciando de outras possibilidades experimentadas no continente, de união, de alianças, de unir as forças construtivas. E os movimentos populares sofreram uma baixa de um modo geral, sobretudo aqui no Brasil.
O que contribuiu para essa baixa?
No Fórum de 2003 houve um momento de maior expectativa e de união das diversas forças à esquerda. Isso foi arrefecendo. Tudo isso depende um pouco das lideranças, e até da liderança institucional. No caso do Brasil, a liderança institucional, na figura do Lula, abriu caminho para retrocessos por ter feito grandes alianças capitalistas com o agronegócio, a mineração, o setor petrolífero. O governo foi se distanciando dos movimentos populares.
Por outro lado, os próprios movimentos tiveram suas crises, suas dificuldades internas e externas, de maneira que se configurou um outro processo.
E na sociedade civil podemos dizer a mesma coisa. A igreja entrou num quadro diferente do Concílio Vaticano II [1962 a 1965]. Devido ao posicionamento de João Paulo II voltou-se à situação pré-conciliar. É o que predomina no episcopado hoje. Isso tem muita influência no conjunto da sociedade por causa das bases sociais, nas paróquias, nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
As lideranças progressistas da Igreja foram abafadas na última década?
Houve uma linha de retroceder nos avanços do Concílio. No sentido do ecumenismo, da liberdade religiosa. Respondendo a sua pergunta, eu falo da liderança institucional que influenciou fortemente no corpo eclesial. E no Brasil é importante esse corpo eclesial porque há várias comunidades de base. Agora elas estão influenciadas por vários movimentos carismáticos, que dão muito mais a ênfase na religião como um conforto, emoção e compensação.
Não como uma força, como é no Concílio ou como é visto em João 23 [papa que convocou o Concílio Vaticano II], de que a religião deva ser “sal, luz e fermento” no meio do mundo; com humildade, sem querer ser dono da verdade. Mas colaborando na presença evangélica com os que sofrem, os que são injustiçados, os perseguidos, que são os povos indígenas, os negros, os quilombolas, as mulheres. Houve um retrocesso em relação a isso.
E, falando de América Latina, é interessante que na Venezuela a igreja siga a oposição conservadora e burguesa.
E o que pode ser dito em relação à reforma agrária no país?
Houve, inicialmente, uma reforma agrária no sentido de mudança de paradigma. Quer dizer, de uma estrutura latifundiária para uma estrutura de participação popular em relação à terra para quem dela precisa para viver e trabalhar.
A primeira fase da luta de reforma agrária, no sentido da ocupação da terra, de pressão, para o reconhecimento dos direitos, com relação aos índices de produtividade, isso não caminhou nada. O governo Lula amarrou isso com a maior força que pode. Então, a reforma agrária começou a arrefecer, uma vez que lá em cima não havia muito estímulo para isso, pelo contrário; houve muita regulamentação que veio da época de Fernando Henrique, no sentido de punir as ocupações.
Nos últimos tempos, a reforma agrária, então, seguiu a linha da eficácia, da produção, das cooperativas. Houve melhorias, mas com certa ambiguidade, porque em muitos casos jogou água no moinho do agronegócio. A pequena propriedade entrou nessa lógica e se inseriu na grande produção, até colaborando com a produção do etanol. Houve um aprimoramento tecnológico. Isso se deve reconhecer.
Em relação aos movimentos sociais do campo foi disseminada a questão da principalidade da soberania alimentar. Isso em todo o mundo. O que influiu na cultura em torno da produção do alimento.
Isso foi um grande avanço…
Enfrentar, por exemplo, a questão genética, que também é uma forma de distanciar o trabalhador, o indígena, o quilombola, da terra. Isso porque a semente se torna algo inacessível dentro dessa nova mentalidade transgênica. O maior perigo não é somente o efeito duvidoso em relação à saúde ao final da produção, mas o não acesso às sementes e, consequentemente, o acesso à terra. Nesse ponto, o próprio governo Lula teve muita responsabilidade, ou irresponsabilidade, no sentido de permitir o avanço disfarçado disso.
O senhor considera a questão de Raposa Serra do Sol como a vitória mais emblemática para os povos indígenas nessa última década?
Houve um avanço no sentido de garantir os direitos dos povos indígenas segundo a Constituição. Por outro lado, houve uma articulação da direita e da bancada ruralista no sentido de tirá-los da terra. Essa é a proposta da [senadora] Kátia Abreu (PSD-TO). Há uma mentalidade classista raivosa em relação a esses povos. São os que atrapalham o desenvolvimento da pátria, para os ruralistas. Quando para nós, os movimentos sociais, são os que mantém o verdadeiro relacionamento com a terra, no sentido de garantir a sua saúde e o seu futuro.
O Brasil de Fato nasceu há dez anos com a proposta de ser um instrumento dos movimento sociais e tenta registrar, sob uma ótica popular, os assuntos que o senhor mencionou e muitos outros. Que desafios a mídia alternativa, na qual nosso jornal se insere, tem pela frente?
O fato de ter sido criado com audácia, talvez não considerando muito as limitações, mas o ideal, a utopia, isso foi bom. Aquele nascimento foi a concretização de um sonho que todos trazemos de longa data de poder ter uma imprensa que tenha a cara do povo. E não a imprensa que toda a vida tem mostrado a tristeza da elite, as intrigas palacianas.
A vantagem do Brasil de Fato é de ter nascido colado ao movimento popular da terra. Isso, ao meu ver, foi a salvação. Poderia ser dito, “não demos conta, sonhamos alto demais”. Mas não, se manteve. Houve uma afirmação. É um jornal que se afirma, que é coerente, abrangente. Há nele o cenário brasileiro, latino-americano e até mundial. Quem quer ter o mínimo de noção científica do andamento da conjuntura internacional precisa ler o Brasil de Fato. Sei de várias pessoas que pensam assim. A expectativa, agora, é de uma manutenção; uma caminhada coerente e que mais tarde comece a enfrentar essas forças permanentes [oligarquias da comunicação], que nasceram na república e mamam nas tetas do governo e se mantém numa política de favorecimento eleitoreiro em troca de ajuda financeira.
O senhor acredita que o Brasil de Fato vai registrar mais lutas sociais? Testemunharemos mais avanços de nossa sociedade para a próxima década?
De um modo geral, a expectativa é a da semente que vem debaixo pra cima, nas bases populares. Eu sou um homem de igreja e minha expectativa é no aprimoramento no laicado, do povo de Deus, na ideia de uma utopia geral, não do fortalecimento institucional das forças partidárias, daqueles que detém o poder econômico e político, mas nas bases populares.
Acho que é isso que vai mudar e é isso que vai apontar o futuro de nosso país, de nosso continente e, quem sabe, o futuro da humanidade. Volta e meia cito a proposta de Jesus, que é genial. Trata-se da pequena semente. O pequeno fermento, a pequena chama, tudo isso é pequenez, mas tem uma vocação de abrangência, de solidariedade, de crescimento, de ultrapassar os obstáculos à dignidade da mulher, do homem, da terra, da mata, dos ribeirinhos. Nós devíamos apostar mais nessa perspectiva. Tem muita gente que ainda olha para o “céu” do Palácio do Planalto. É olhar mais para o chão, para a terra, para as sementes que se tornarão árvores onde os passarinhos do céu irão fazer os seus ninhos.