“A impunidade é uma marca forte na região de campos”, diz dirigente do MST
Por Alan Tygel e Vivian Virissimo
Do Brasil de Fato
A violência em Campos dos Goytacazes, região norte do Rio de Janeiro, ocorre com a cumplicidade do poder público que não garante apoio aos assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Por Alan Tygel e Vivian Virissimo
Do Brasil de Fato
A violência em Campos dos Goytacazes, região norte do Rio de Janeiro, ocorre com a cumplicidade do poder público que não garante apoio aos assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
É o que afirma a dirigente estadual do MST, Marina dos Santos, em entrevista ao Brasil de Fato. Além de apresentar um resgate da conjuntura de violência e impunidade em Campos, ela comenta os dois brutais assassinatos de trabalhadores rurais do Assentamento Zumbi dos Palmares.
“Há uma profunda precariedade na execução das políticas públicas, dando espaço para o poder local de concentração da terra, o latifúndio, ficar à vontade na exploração da mão de obra, agir de forma violenta e com ameaças aos trabalhadores. A impunidade é uma marca forte na região”, contou Marina.
Líder do acampamento Luís Maranhão, localizado na Usina Cambahyba, o assentado Cícero Guedes foi executado com dez tiros em uma emboscada no dia 26 de janeiro. Onze dias depois, a também assentada Regina dos Santos Pinho foi encontrada com um lenço amarrado no pescoço em sua casa.
Marina também faz um balanço do panorama da reforma agrária no governo da presidenta Dilma Rousseff. “Seria muito importante a presidenta dar uma sinalização concreta de avanço na conquista de terras e desenvolvimento dos assentamentos ou o governo dela vai passar como o que teve pior desempenho dos últimos anos na reforma agrária, desde os governos da ditadura militar”, criticou.
Brasil de Fato – Você participou das primeiras ocupações na região de Campos, há 16 anos. Durante este tempo, foram diversos casos de violência contra trabalhadores sem terra. Em algum deles houve julgamento e punição dos responsáveis?
Marina dos Santos – A violência contra trabalhadores pobres na região, especialmente os que se organizam e lutam por melhores condições de vida, é histórica. No caso do MST, desde a primeira ocupação, nas terras da Usina São João, hoje Assentamento Zumbi dos Palmares, é diária. Uma violência permitida, com cumplicidade pelo poder público, uma vez que não garantem políticas públicas de apoio à produção e infraestrutura das áreas.
Há uma profunda precariedade na execução das políticas públicas, dando espaço para o poder local de concentração da terra, o latifúndio ficar a vontade na exploração da mão de obra, agir de forma violenta e com ameaças aos trabalhadores. A impunidade é uma marca forte na região. É preciso superar esse estado de impunidade, julgando e punindo os responsáveis por tanta barbaridade.
O caso da assentada Regina dos Santos Pinho tem elementos fortes de violência contra a mulher. Isso difere o caso de outros, ou confirma uma tendência maior de violência de gênero?
As autoridades policiais ainda não desvendaram os motivos do assassinato da Regina. Ao que tudo indica foi um caso de violência sexual. Foi um crime bárbaro. E faremos pressão para que esse assassinado seja investigado, julgado e que os responsáveis sejam penalizados.
Isso só demonstra o descaso a que são submetidos os assentamentos da região. Regina é mais uma vítima de um sistema de extermínio, exploração e marginalização daqueles que ousam lutar por um mundo mais justo e digno através da reforma agrária, num contexto de dominação do latifúndio onde as relações culturais reproduzem essa violência instalada.
Campos é uma das cidades mais ricas do país, com cerca de 80 latifúndios. Como esse contexto de concentração de renda e disputa fundiária ajuda a entender essa onda de violência que atinge o MST?
Campos é um município muito rico, recebe muito dinheiro dos royalties, mas isso não representa mudanças sociais e econômicas para os segmentos menos favorecidos da população, é uma das cidades que tem mais pobres no Brasil, a maioria da população vive de cestas básicas e programas de compensação social.É uma vergonha como os governos local e estadual tratam a população com um sistema populista e os mais privilegiados continuam sendo os grandes proprietários.
Como você analisa o caráter desta violência na região? As raízes são somente a questão da disputa fundiária, ou há outros elementos?
As raízes desse sistema se sustentam mantendo os camponeses reféns de uma política oligárquica e latifundiária operada pelo Estado brasileiro que financia descaradamente um modelo de desenvolvimento concentrador e explorador da terra.
Esse modelo é responsável pela desigualdade social, que mantém o processo de concentração do poder, nega os direitos à população e garante uma péssima distribuição de recursos e não permite aos povos do campo o direito a uma cidadania real através da implementação de uma efetiva política de Reforma agrária.
Um exemplo real disso é o orçamento mínimo da atual Secretaria de Agricultura do município que mostra o total descaso às necessidades da agricultura familiar camponesa, ao mesmo tempo, em 2009, Campos foi considerada pela OIT o município com maior índice de trabalho escravo do Brasil.
Como está o clima na ocupação da Usina Cambahyba após os crimes? Como o movimento tem lidado com o medo dos acampados diante desses dois casos recentes de violência?
Os assassinatos do Cícero e da Regina trouxeram um clima de insegurança em toda a região. Em todos os acampamentos e assentamentos as famílias estão se sentindo tensas, inseguras e fragilizadas, mas estamos pressionando as autoridades locais e nacionais para que olhem pra essa realidade e dediquem esforços no sentido de investigar, descobrir os responsáveis por tanta violência e prender os mandantes e executores. É preciso que haja julgamento, condenação pública e justiça.
Essa violência é mais acentuada em Campos dos Goytacazes do que no resto do estado? Qual o panorama brasileiro de violência contra os assentados e acampados?
Campos está localizada na região Norte/Noroeste, que representam 35,3% da área total do Estado, com prioridade na produção agrícola. As usinas canavieiras sempre foram financiadas com recursos públicos, mas sem controle nenhum. Elas sempre fizeram mau uso do recurso público, tanto que quase todas faliram e mantém altíssimas dívidas com a União, através da Fazenda Nacional, a Cambayba é um grande exemplo.
Então, esses usineiros da região nunca tiveram nenhum escrúpulo seja com o dinheiro público, seja com os direitos trabalhistas, sempre utilizaram da força e violência. Isso gerou uma cultura forte na região de milícias, jagunçagem e pistolagem que parece uma terra sem lei.
Sobre o caso do Cícero dos Santos. Caso se confirme a hipótese de que o mandante e os assassinos eram ligados ao tráfico de drogas: como o MST lida com isso? Que tipo de procedimentos são feitos para tentar garantir que as áreas ocupadas fiquem livres de outros interesses que não a luta pela terra?
Nosso papel de movimento social é continuar organizando o povo, pressionado o Incra para que garanta os critérios estabelecidos para aprovação de quem pode ser assentado. É preciso que o Incra seja contundente na seleção das famílias para garantir um bom assentamento.
Queremos fazer da Usina Cambahyba um assentamento de famílias com tradição na agricultura camponesa, participativo, de trabalhadores, com participação da sociedade, das universidades locais, das entidades e movimentos sociais que sempre estiveram presentes na luta pela terra e pela reforma agrária.
Um assentamento que seja um outro modelo de desenvolvimento da região, baseado na agroecologia, na produção de alimentos saudáveis, na recuperação e preservação ambiental, construindo outras relações culturais baseadas na solidariedade.
Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam que não são comuns os casos de violência em assentamentos. Apesar desses dois casos, o MST segue defendendo a reforma agrária como forma de reduzir a violência no campo?
O MST do Rio não vai ceder um milímetro de suas ações na luta pela democratização da terra e realização da reforma agrária. Mesmo o estado do Rio de Janeiro sendo tão urbanizado, a questão agrária não se difere de outros, o índice de Gini comprova isso em relação à concentração da terra, o uso intensivo que as grande propriedades e usinas canavieiras fazem de agrotóxico, destruição ambiental e utilização de mão de obra escrava para garantir seus lucros.
Sem contar a ação do grande capital, como o exemplo do Porto do Açu, em São João da Barra (empreendimento do Eike Batista), que tem expulsado os camponeses, destruído o meio ambiente e tem apoio financeiro e político público para esse projeto.
Vamos continuar denunciando esse projeto da morte, do desenvolvimento insustentável e concentrador e defendendo a reforma agrária como forma de garantir cidadania e dignidade aos mais pobres, como perspectiva de futuro. Setores da imprensa têm argumentado que o avanço do capitalismo no campo acabou com o latifúndio improdutivo e que, portanto, a reforma agrária é “desnecessária”.
Como o movimento reage a esse posicionamento de donos dos meios de comunicação?
Os grandes meios de comunicação fazem parte da associação do agronegócio no Brasil. Eles têm gerado uma grande confusão na população com suas mentiras. É importante dizer que o capitalismo não acabou com o latifúndio improdutivo e nem que as propriedades modernizadas representam um desenvolvimento para nosso país.
A população tem que refletir que tipo de desenvolvimento é esse, quem está lucrando e se beneficiando com isso. O agronegócio tem uma articulação muito grande em diversos setores da sociedade, seja no Congresso Nacional, no judiciário, nos meios de comunicação e em vários setores do executivo. Sua ações têm sido sempre para defender seus interesses, como o caso do Código Florestal.
O MST vem afirmando na imprensa que o governo federal é resultado de uma composição de classes. Como você avalia a possibilidade de avanço da luta pela terra no Brasil neste contexto histórico?
Está claro que o governo é de composição de forças políticas e sociais, o capital e o agronegócio têm muito poder nos aparatos do Estado brasileiro. O governo não tem força para uma proposta de reforma agrária.
O pior é que o governo faz opção clara pelo agronegócio, demonstra tanto pelo discurso político da maioria dos ministérios como a liberação de recursos para as grandes empresas. Não existe uma ação do governo de democratizar a terra e para enfrentar o latifúndio improdutivo.
O MST, levando em conta o estágio atual do capitalismo, já não defende mais a reforma agrária clássica vinculada somente aos interesses do desenvolvimento do mercado interno para a indústria. Como uma reforma agrária popular, que solucione os problemas dos trabalhadores rurais, pode ser viável no atual contexto?
Defendemos a reforma agrária popular, em que o governo resolva os problemas emergenciais que há com as mais de 80 mil famílias acampadas em todo o país, garantindo o assentamento imediato delas.
E junto com isso, uma ação de desconcentração da terra, punindo o latifúndio, acompanhado de políticas de desenvolvimento que garantam em primeiro lugar a passagem da produção de monocultivos para exportação para a produção de alimentos, com fartura, qualidade e preço baixo para toda a população desde o campo às cidades, garantindo a soberania alimentar.
Em segundo, garantir a construção de pequenas agroindústrias no campo, como forma de geração de empregos, renda e agregar valor à produção. Em terceiro, garantir educação – enfrentar o analfabetismo e ter escolas técnicas e acesso às universidades para toda a juventude.
Recentemente a presidenta Dilma Rousseff sinalizou que recursos do BNDES serão usados não só para dar sustentação à produtividade nos assentamentos, mas também para ampliar o ritmo de desapropriações e legalizações de terras. Como o MST avalia isso?
Seria muito importante a presidenta dar uma sinalização concreta de avanço na conquista de terras e desenvolvimento dos assentamentos ou o governo dela vai passar como o que teve pior desempenho dos últimos anos na reforma agrária, desde os governos da ditadura militar. Se ela quiser, apesar das diversidades de seu governo, tem como ampliar os recursos, reestruturar o Incra, avançar nas desapropriações e investir na infraestrutura dos assentamentos. E isso, acho que passa pela opção de desenvolvimento e investimento da presidenta Dilma. Certamente, estaria pagando uma dívida histórica não só com os sem terras, mas com toda a população brasileira.