Cleber Buzatto: as falácias das teses anti-indígenas do latifúndio no Brasil


Por Cleber Buzatto
Do Cimi


No processo de ataque sistemático contra os povos indígenas e seus direitos, além da violência física, executada por meio de assassinatos seletivos de líderes indígenas e expulsões extrajudiciais de comunidades por grupos paramilitares, o velho latifúndio, no intuito de manter e ampliar a posse e a exploração das terras tradicionais destes povos, tem feito uso de diferentes instrumentos legislativos e administrativos, bem como de teses diversas por meio das quais buscam justificá-los.
 

Por Cleber Buzatto
Do Cimi

No processo de ataque sistemático contra os povos indígenas e seus direitos, além da violência física, executada por meio de assassinatos seletivos de líderes indígenas e expulsões extrajudiciais de comunidades por grupos paramilitares, o velho latifúndio, no intuito de manter e ampliar a posse e a exploração das terras tradicionais destes povos, tem feito uso de diferentes instrumentos legislativos e administrativos, bem como de teses diversas por meio das quais buscam justificá-los.
 
Quanto aos instrumentos de ataque, se tem falado, dentre outros, sobre as Propostas de Emendas Constitucionais números 038/99, 215/00 e 237/13, o Projeto de Lei 1610/96, o Projeto de Lei Complementar 227/12, as Portarias 419/11 e 303/12 e o Decreto 7957/13.

Em relação às teses anti-indígenas, embora estejam sendo usadas de forma exaustiva pelos inimigos dos povos indígenas, a ponto de tornarem-se críveis a alguns cidadãos, são fundamentalmente falaciosas e não resistem a uma análise minimamente criteriosa.
 
Neste sentido, sem pretensão de exaurir o tema, elencamos sete destas teses, buscando identificar e explicitar suas fragilidades fáticas, apontando questões que julgamos importante para entendermos as reais motivações subjacentes às mesmas.
 
Tese Anti-indígena número 1: Demarcações de Terras Indígenas beneficiariam interesses internacionais
 

Com esta tese os ruralistas visam desqualificar a luta dos povos pelos seus territórios e, com isso, legitimar e atrair o apoio da população brasileira ao ataque e violências que realizam contra os povos indígenas no Brasil.
 
Ao mesmo tempo, criam uma cortina de fumaça por meio da qual tentam encobrir o fato de que é o próprio agronegócio e seus ascetas que efetivamente servem aos interesses internacionais no campo. O que realmente ocorre é que:
 
O latifúndio, o agronegócio e os ruralistas estão a serviço dos “interesses internacionais”. Todas as fases deste setor, desde a produção (sementes, máquinas agrícolas, adubos químicos, agrotóxicos), passando pela industrialização, comercialização e exportação, são controladas por empresas multinacionais, que enviam os altos lucros advindos da exploração do território brasileiro para suas matrizes sediadas fora do Brasil.
 
A título de exemplificação, citamos algumas das principais transnacionais e respectivos países sedes beneficiadas pelo latifúndio e pelos ruralistas no Brasil: a Monsanto, a Archer Daniels Midland Company – ADM, a Cargil, New Holland Machine Company (Estados Unidos), Bunge (Holanda), Bayer e Basf (Alemanha), Syngenta (Suíça), Louis Dreyfus Commodities (Franco Inglesa), Raízen (Cosan – Brasil e Shell – Estados Unidos), Del Monte Fresh Produce Company” (Ilhas Cayman).

Além disso, é de conhecimento público e notório que milhões de hectares de terras no Brasil vêm sendo adquiridos, sem qualquer tipo de controle, por empresas particulares e governos de diversos outros países.
 
A produção do latifúndio ruralista é subsidiada com recursos públicos e voltada essencialmente à exportação de commodities. Esta exportação é feita sem o pagamento de qualquer tipo de imposto (Lei Kandir). Por isso, para a imensa maioria da população brasileira, o latifúndio deixa como herança apenas o ar poluído pelos agrotóxicos importados, muitos dos quais proibidos noutros países, e o câncer resultante, que se alastra sem controle atacando diariamente milhares de cidadãos e cidadãs brasileiras.

A demarcação de terras indígenas impõe limite a este círculo vicioso de lucro externo por meio da exploração do território brasileiro. É por isso que as organizações do agronegócio e os políticos eleitos com o financiamento de transnacionais, a Confederação Nacional da Agricultura e a bancada ruralista no Congresso atacam com tanta virulência os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil.
 
A demarcação de terras indígenas beneficia os interesses do povo brasileiro. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União (Constituição Federal Capítulo II, Artigo 20, Parágrafo XI). As mesmas destinam-se à posse permanente e usufruto exclusivo dos povos indígenas (Constituição Federal Capítulo VIII, Artigo 231, Inciso 2º.), cidadãos brasileiros de pleno direito.
 
Tese anti-indígena número 2: os indígenas são manipulados por ONGs, Cimi e CPT
   
Trata-se de uma tese fundamentada em pensamento preconceituoso, discriminatório e racista. Por meio desta tese os setores anti-indígenas visam essencialmente deslegitimar a luta e o direito dos povos e criminalizar organizações e pessoas que lhes apoiam.
 
Os povos indígenas são sujeitos de seus projetos de vida, de suas histórias pessoais e coletivas. Todas as pessoas de boa-fé que conhecem os povos indígenas no Brasil são sabedoras de que os mesmos são capazes, pensam por si, tomam e assumem as consequências de suas próprias decisões.
 
Tese anti-indígena número 3: está em curso uma “onda” de demarcações no Brasil
 
Trata-se de uma tese de cunho alarmista e totalmente desvinculada do que efetivamente vem ocorrendo no Brasil.
 
O governo Dilma é o que menos demarca terras indígenas desde a ditadura militar. Enquanto a média anual de terras homologadas no governo FHC foi 18 e no governo Lula 10, com Dilma essa média caiu para apenas 05 homologações.
 
Os inimigos dos povos indígenas usam esta tese na perspectiva de conseguir uma moratória absoluta nas demarcações, enquanto atuam para promover mudanças na Constituição Federal, por meio da PEC 215/00, por exemplo, no intuito de inviabilizá-las definitivamente. 
 
Tese anti-indígena número 4: a demarcação de terras deve ser aprovada pelo Congresso Nacional por este “representar o povo brasileiro”
 
Os ruralistas querem inviabilizar toda e qualquer demarcação de terras indígenas no Brasil. Almejam rasgar a Constituição por meio das PECs 215/00 e 38/99, a fim de terem nas próprias mãos o poder para não demarcar terras indígenas, não titular terras quilombolas e não criar novas unidades de conservação ambiental de terras indígenas no Brasil.
 
É de conhecimento público que o sistema político eleitoral vigente no Brasil, que permite o financiamento privado ilimitado a candidatos e candidatas, produziu um desequilíbrio profundo na representatividade do Congresso Nacional. E é exatamente a representação ruralista a mais desequilibrada. Os altos financiamentos proporcionados inclusive por multinacionais fez com que os grandes latifundiários, mesmo sendo menos de 0,3% da população brasileira, conseguissem eleger e ser representados por cerca de 40% dos deputados federais.

Por isso, passar o poder de demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional significaria, na prática, o cancelamento definitivo do reconhecimento e demarcação destas terras.
 
Tese Anti-indígena número 5: haveria “muita terra para pouco índio” no Brasil
 
Trata-se de uma tese generalista fundada num pressuposto equivocado que considera “o índio” como um ator social uno, quando na realidade o que existe são povos distintos, com organização social, costumes, línguas, crenças e tradições específicas que, juntamente com suas terras tradicionais, são devidamente reconhecidas pela Carta Magna (conforme Constituição Federal Capítulo VIII, Artigo 231). De acordo com o senso 2010 do IBGE, existem no Brasil 305 povos indígenas, falantes de 274 línguas distintas, com uma população de 896,9 mil indivíduos.
 
Por meio desta tese, os ruralistas tentam encobrir o fato de que existem muitos povos indígenas no Brasil vivendo sem terra, acampados e sendo atacados, há décadas, em beiras de rodovias, em diversas regiões do país.
 
A fatídica tese desconsidera totalmente o fato de que 98,47% da extensão de todas as terras indígenas demarcadas estão localizados na Amazônia brasileira e que, portanto, apenas 1,53% localiza-se nas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e estado do Mato Grosso do Sul. Em estados como o Mato Grosso do Sul e o Rio Grande do Sul, por exemplo, onde milhares de indígenas vivem em acampamentos às margens das estradas, o percentual de terras na posse dos indígenas é de, respectivamente, 1,26% e 0,4%. Espaço irrisório e evidentemente insuficiente para a vivência física e cultural dos povos. Uma situação de total desacordo com os ditames constitucionais vigentes.
 
Tese anti-indígena número 6: os procedimentos de demarcação seriam conduzidos de forma exclusiva e parcial pela Funai
 
Esta tese é usada pelos inimigos dos povos indígenas especialmente na perspectiva de justificar mudanças no procedimento de demarcação, também com a finalidade de inviabilizar o reconhecimento do direito dos povos às suas terras.
   
Ao analisarmos a legislação vigente no país, no que tange a matéria, percebemos com facilidade as deficiências e falácias da afirmação. Senão vejamos:
 
A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios é uma determinação Constitucional (Constituição Federal Capítulo VIII, Artigo 231). O procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas é legalmente previsto e regulamentado pelo Decreto 1775/96.
 
Além da Funai, outros órgãos federais participam do procedimento. A Advocacia-Geral da União (AGU), por meio de seus procuradores federais, lotados nas diferentes instâncias de governo, analisa e oferece pareceres em diversas fases do procedimento, desde o próprio órgão indigenista, passando pelo Ministério da Justiça, pela Casa Civil e a própria Presidência da República. Além disso, também é prevista a participação de estados e municípios no procedimento, ato regulamentado pela portaria 2498/11, do Ministério da Justiça.
 
O relatório circunstanciado de identificação e delimitação de uma terra indígena é um estudo técnico-científico. É produzido por profissionais legalmente habilitados, reunidos em equipe multidisciplinar, coordenado por um antropólogo, que conta também com a participação de historiador, ambientalista, topógrafo e técnicos indicados por governos estaduais (conforme Artigo 2º. §1 a 7 Do decreto 1775).
 
A redação do referido relatório é regida pela portaria nº 14/96 do Ministério da Justiça. O procedimento de demarcação garante o direito ao contraditório a todos os interessados. Desde o início dos estudos, até noventa dias após a publicação do relatório circunstanciado, todos os interessados podem manifestar-se, apresentando razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório. (Conforme Artigo 2º § 8º do decreto 1.775/96.)
 
Mesmo assim, a continuidade do procedimento depende de decisão do Ministro da Justiça que, para tanto, possui três alternativas possíveis. A primeira, aprovar os estudos e publicar a portaria Declaratória da tradicionalidade da respectiva terra indígena. A segunda, pedir novas informações sobre o caso. A terceira, sob justificativas plausíveis, não aprovar os estudos. (Conforme Artigo 2º § 10º do decreto 1.775/96.)
 
Tese anti-indígena número 7: os não índios, ocupantes das terras indígenas, seriam expulsos “sem nada”, sendo jogados à “beira das estradas”, “com uma mão na frente e outra atrás”
 
Por meio desta tese, que também não corresponde à realidade, os ruralistas tentam sensibilizar e jogar a sociedade envolvente contra os povos indígenas.
 
O fato é que todos os ocupantes de boa-fé, ou seja, aqueles que ocuparam a terra sem saber que se tratava de uma terra indígena, têm o direito à indenização por todas as benfeitorias construídas, tais como casas, galpões, cercas, pastagens, árvores frutíferas, áreas florestadas, em valores de mercado, atestados por técnicos especializados.  Da mesma forma, têm o direito a reassentamento de forma prioritária, pelo INCRA, em módulos agrários das respectivas regiões. (Conforme Artigo 4º. do Decreto 1775.)
 
Isso evidentemente exige que se questione a concentração fundiária brasileira, com a necessária desapropriação de terras do latifúndio. Fato inexistente na atual conjuntura, uma vez que o governo Dilma, no primeiro semestre de 2013, não desapropriou nenhum imóvel rural para fins de reforma agrária ou para reassentamento de ocupantes não índios de terras indígenas no Brasil.
 
Além disso, todo o ocupante de “boa-fé”, portador de títulos de propriedades de terra concedidos pela União ou pelos estados federados, podem ser indenizados por estes títulos. Para tanto, basta que o responsável pela emissão dos títulos – a União ou os respectivos estados federados – reconheça o equívoco administrativo cometido em desfavor dos ocupantes e proceda a devida indenização.
 
Quanto aos ocupantes de “má-fé”, ou seja, que invadiram a terra sabendo que se tratava de terra indígena, logicamente não devem ser indenizados. Por terem cometido esbulho e exploração de patrimônio público e coletivo, que sabidamente não lhes pertencia, deveriam indenizar a União e os povos indígenas.
 
A história brasileira demonstra que o latifúndio e os latifundiários nunca tiveram e não têm qualquer tipo de limite no país. Está mais do que na hora de a sociedade brasileira impor um limite necessário a estes insaciáveis sujeitos. A democracia no Brasil certamente será muito grata por isso.

* Cleber Buzatto é Secretário Executivo do Cimi