Sem Terra passam uma semana sob bala no acampamento Frei Henri, no Pará
Por Amaral Silva
Da Página do MST
Uma hora da manhã da madrugada de sábado, e uma primeira rajada de metralhadora é disparada contras as famílias organizadas pelo (MST) do acampamento Frei Henri, no sudeste paraense.
“Essa madrugada promete”, diz um dos acampados que faz a segurança do acampamento. Uma e meia da manhã os disparos se tornam incessantes e é hora de ter atenção redobrada para ninguém se ferir e evitar que o acampamento seja invadido pelos fazendeiros e seus jagunços contratados.
Os tiros são feitos da entrada da Fazenda Fazendinha, duma guarita de madeira do alto de um morro, que serve de local estratégico para pistoleiros e fazendeiros mirar nos barracos das famílias postados a cerca de 300 metros abaixo.
O cenário é de guerra, várias trincheiras são montadas no entorno do acampamento e mais de sessenta pessoas, entre homes e mulheres, estão intocados na mata estrategicamente para proteger o local.
Nos barracos de madeira, as famílias deixam as redes e improvisam colchões no chão, para se defenderem das balas. Tudo isso acontece às margens da movimentada rodovia PA 150, que liga Marabá a Parauapebas.
De umas das trincheiras, é possível observar que o balanço das folhas das árvores e da poeira que levanta do chão não é efeito do vento, mas sim da chuva de chumbo que cai sobre o acampamento.
Na trincheira elaborada por uma série de pneus e sacos de areia, está *Tonico, deitado ao chão com uma caixa de fogos de artifício, única “arma” utilizada pelas famílias para afugentar os jagunços que chegam às cercanias da ocupação.
“Eles vão passar a noite atirando, e nós ficamos aqui. Se alguém se aproximar soltamos rojões para assustá-los”, diz.
Ninguém dorme
Ao visitar algumas casas pela madrugada se constata que pouco ou quase ninguém consegue dormir.
No primeiro barraco perto de umas das barreiras de proteção do Frei Henri, está Elizabeth, preocupada. Em sua morada apenas a filha de dez meses e seus outros dois filhos dormem tranquilamente. Ela e o marido passam a noite acordados temendo que algo de ruim aconteça com a família.
“Medo eu tenho, mas sair daqui não. Morávamos na cidade de Parauapebas, mas o desemprego é grande e o aluguel é caro e quem casa quer casa, né? Por isso decidimos ocupar essa terra aqui, para melhorar nossa vida”, conta.
A filha que dorme protegida por uma cômoda nasceu de sete meses com vários problemas mentais devido à gravidez conturbada que *Elizabeth teve.
“O médico fala que ela nasceu especial porque eu sofri muito com essa situação dos fazendeiros atirando na gente toda noite”, diz.
Passam das três da manhã, os tiros continuam e numa das trincheiras do acampamento, às margens da rodovia, são soltos fogos de artifício, sinal de que há alguma situação de risco na área.
Na direção onde o rojão foi solto correm vários homens e entre eles uma mulher, Maria.
Cansada, diz que não dorme há mais de uma semana, desde que os ataques recomeçaram. Ela é uma das responsáveis pela brigada de defesa do acampamento. “Moço eu não tenho medo de morrer não, já passei perto de morrer e não morri, então acho que agora não morro mais”.
Maria se refere às ameaças que sofreu quando ia vender suas verduras produzidas no acampamento paras as feiras de Parauapebas.
“Foi por telefone e me disseram: ou você sai da beira da estrada ou eu te mato. Era voz de homem e disse meu nome e tudo mais…”
Largar a terra pela ameaça dos fazendeiros não passa pela cabeça dessa mulher de estatura média, cor negra, rosto manchado do sol, e uma olheira profunda.
“Eu fui garimpeira na década de 1980, e faz tempo que acompanho o MST, agora quero minha terra, só isso”, protesta *Maria.
Cessando as balas
Às quatro e meia da manhã os tiros diminuem. Seu Edvaldo está de espreita na porta de seu barraco acompanhando a movimentação. Produtor de mandioca e hortaliças orgânicas, não conseguiu mais sair para vender seus produtos agrícolas à cidade.
“Os fazendeiros tão botando muita pressão, param as vans que transportam passageiros entre os municípios e perguntam se tem Sem Terra. Perseguem a gente. Outro dia um pistoleiro colocou a arma na minha cabeça e mandou eu voltar para o acampamento se não ia me matar”, relata.
O dia amanhece e os tiros cessam por completo. As famílias voltam a ter, mesmo que repentinamente, um momento de paz. Em uma semana de ataque completada no sábado (21/09), apenas uma mulher e uma criança se feriram levemente por balas de raspão.
“A investida permanente dos fazendeiros fortemente armados contra o acampamento, tentando fazer a expulsão das famílias na marra é crime, e a polícia precisava investigar isso”, cobra o advogado da Pastoral da Terra de Marabá, José Batista Afonso.
Conquista da terra
Os ataques dos fazendeiros aos acampados do MST seriam pelas decisões de duas ações na justiça favoráveis às famílias.
A primeira trata-se de uma ação judicial requerida pelos fazendeiros solicitando a reintegração de posse de parte do imóvel rural. Num primeiro momento, os supostos donos da área conseguiram uma liminar que autorizava a polícia fazer o despejo.
Entretanto, com o suporte jurídico da Comissão Pastoral da Terra de Marabá (CPT), o MST conseguiu comprovar que se tratava de uma terra pública. Dessa forma, o juiz suspendeu a liminar e deu ganho de causa ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“O juiz entendeu que o fazendeiro não pode reintegrar uma área que não é dele, por isso destinou a área ao Incra”, explica José Batista Afonso, advogado das famílias acampadas.
Com a derrota em primeiro grau, os fazendeiros entraram com uma ação no Tribunal de Justiça de Belém (PA) para derrubar a decisão do juiz da Vara Agrária de Marabá.
“Por enquanto as famílias estão asseguradas no local e não existe nenhuma ordem que possa despejá-las”, assegura o advogado.
Mais vitória
O segundo processo corre na Justiça Federal de Marabá. Por ser uma terra pública, o Incra ingressou com uma ação requerendo a emissão de posse da área imediatamente.
No entanto, o juiz do caso está esperando os documentos do programa Terra Legal para confirmar que a terra foi grilada.
“Quando o fazendeiro entrou com o pedido de reintegração de posse de parte da fazenda, também entrou com um pedido no Terra Legal em Brasília para regularização da área em seu nome”, explica Batista.
Porém, já se sabe que a decisão do Terra Legal não autoriza a regularização da área em nome do fazendeiro, por se tratar de terra pública e pelo solicitante ter outro imóvel rural cadastrado em seu nome.
Sendo assim, o Terra Legal devolveria a terra ao Incra para fazer o assentamento. O juiz apenas aguarda a chegada de toda documentação para juntar ao processo e poder dar o veredito final.
“Portanto, juridicamente o problema está próximo de ser resolvido a favor das famílias, mas tem alguns caminhos ainda a serem trilhados e cabe recurso em ambos os processos”, conclui Batista.
Interesses territoriais
O embate entre fazendeiros e o MST em torno do acampamento Frei Henri é apenas um exemplo do embate entre as classes sociais na Amazônia paraense.
Já começa pelo nome do acampamento e do município onde se encontra o conflito. Frei Henri, é um missionário francês que vive a alguns quilômetros dali, em Xinguara. Quase aos noventa anos e jurado de morte por fazendeiros, ainda advoga em favor de militantes assassinados no sul do Pará, em consequência da disputa territorial.
O nome da cidade, Curionópolis, se refere ao major Curió, um dos responsáveis pela aniquilação dos membros da chamada Guerrilha do Araguaia na década de 1970, no período da ditadura civil militar brasileira.
“Essa região está em permanente disputa, e é onde mais existem fazendeiros organizados e preparados para ações criminosas a fim de defender seus interesses. São extremamente violentos e têm muita influência por dentro da política da região”, denuncia José Batista Afonso, advogado da CPT de Marabá.
Darlam Lopes, o suposto grileiro da área casado com Kenia Lopes (filha de outro fazendeiro conhecido na região, Dão Baiano), seriam os comandantes dos ataques ao acampamento do MST.
Entretanto, Gabriel Saldanha, Rafael, Elinho Baiano e Donizete estariam envolvidos no esquema criminoso com apoio do Sindicato dos Fazendeiros de Parauapebas e Região, o SIPRODUZ.
Na morte de Fusquinha e Doutor em 1998, militantes do MST em Parauapebas, 12 fazendeiros foram indiciados e denunciados, e teriam que responder a uma ação penal que há mais de dez anos está engavetado na comarca de Parauapebas.
Entre os indiciados está Donizete, chamado pelos amigos de matador Donizete. Ele é o principal acusado dos disparos contra os membros do MST em 1998, num despejo ilegal da fazenda Goiás II.
Na ocasião, sem algum amparo legal, os fazendeiros contrataram os policiais militares, que haviam atuado no Massacre de Eldorado dos Carajás em 1996, além de pagar ao juiz da região para que fizesse um documento de reintegração de posse da área.
“Esse tipo de ação que os fazendeiros estão fazendo hoje contra o acampamento Frei Henri, cercando o local, alvejando contra as famílias, contratando pistoleiros, usando a influência da polícia, impedindo o ir e vir dos camponeses, é uma prática antiga. Quando Doutor e Fusquinha foram assassinados foi utilizada a mesma tática”, lembra Batista.
Vale
Os fazendeiros, que por si só já resguardam um poderio sobre a região, ganharam mais uma aliada a partir do Programa Grande Carajás de mineração, implantado pelo governo brasileiro no início da década de 1980: a então companhia Vale do Rio Doce.
Numa área de grande incidência mineral, a região sul e sudeste do Pará tem o controle da Vale em praticamente todas as decisões do Incra.
“A mineradora tem ingressado na justiça para conseguir autorização para fazer sua obra de duplicação da ferrovia em todos os assentamentos que são cortados pelos trilhos, sem autorização dos assentados, mas apenas do Incra”, acusa a socióloga paraense Rosemeyre Bezerra.
São cerca de 200 projetos de assentamento em tramitação no Incra de Marabá que a transnacional tem intercedido e ponderado junto ao órgão por interesse nas áreas.
Ademais, segundo consta nos autos do processo do Massacre de Eldorado dos Carajás, a empresa seria a principal financiadora da ação contra as famílias acampadas na beira da estrada, na curva do S, onde 21 trabalhadores rurais Sem Terra morreram.
“Com todo seu poderio de espionagem, político e econômico na região, a Vale não aceita que movimentos sociais organizados fiquem próximos aos seus grandes projetos de exploração mineral”, denuncia Raimundo Gomes Cruz do Centro de Educação, Pesquisa, Assessoria Sindical e Popular (CEPASP), um dos espionados pela empresa na região.