Onde tudo começou: Os Sem Terra de ontem e hoje
Por Joana Tavares e Nina Fideles
Por Joana Tavares e Nina Fideles
Voltar ao lugar onde tudo começou. Esta é a mística que ronda o assentamento Nova Sarandi. Ficar imaginando os trabalhadores e trabalhadoras arrebentando a porteira que os impedia de pisar naquela terra que hoje produz e tem vida. Uma terça-feira, noite de lua cheia. Assim Isaías Vedovatto, assentado no assentamento, descreve aquele dia. “Lembro do zunido dos cinco fios de arame sendo cortados, como se fosse o início de uma música”, conta em seu poema sobre a ocupação.
Todo o processo de luta naquela região teve seu estopim na conhecida Encruzilhada Natalino, mas não começou ali. Já em 1962, época do então governador Leonel Brizola, parte da conhecida Fazenda Sarandi foi desapropriada para o assentamento de algumas famílias da região, organizadas pelo MASTER – Movimento dos agricultores Sem Terras – no acampamento Cascavel. Parte destas terras foi destinada ao assentamento de algumas famílias, e o restante do complexo foi distribuído em médias e grandes propriedades.
Havia ainda um conflito permanente nas áreas indígenas da região. Agricultores que foram expulsos dos territórios indígenas começaram um movimento em busca de terra e realizaram as ocupações da Macali e Brilhante. “Os governos estadual e federal abriam projetos de colonização no norte do país. Mas nesse período tinha a CPT e outras organizações apoiando o povo e nem todos foram pro Norte. Em torno de umas 500 famílias foram se organizando e em setembro de 79 um grupo ocupou a fazenda Macali, e outro grupo ocupou a fazenda Brilhante”, lembra Salete Campigotto, hoje assentada em Sarandi.
Encruzilhada Natalino
Para Isaías é importante entender o diferencial que existe entre “até o Natalino” e o depois do Natalino. No entroncamento entre as cidades de Ronda Alta e Sarandi, um conjunto de famílias que ainda não havia sido assentada começou a se agregar. Contam que era noite de Natal, e um dos primeiros acampados carregava o simbólico nome de Natalino.
“E foram se juntando pessoas, de vários municípios da região. Muita gente que trabalhava como agregados, outros de famílias pobres, que não tinham como acomodar todo mundo em casa”, lembra Salete. “Ficamos ali e o acampamento começou a inchar, gerar mais pressão. O curioso é que a Encruzilhada ocorreu na época da ditadura militar”, complementa Antoninho Campigotto.
Não foi à toa que o então presidente, o militar João Batista Figueiredo, enviou para a região um de seus quadros de maior confiança, para desmantelar o acampamento. O coronel Curió era conhecido – e temido – por seu histórico de repressão e violência contra a organização popular. Havia sido responsável pela desmobilização de Serra Pelada e pela dissolução da Guerrilha do Araguaia. Em 1981, armou acampamento com todo seu aparato na região.
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“A intervenção durou até 10 de março de 82. A pressão foi aumentando a cada dia que passava. Chegou ao ponto de secarem o açude onde a gente lavava roupa, e levaram os cavalos para a fonte onde a gente tomava água”, aponta Salete. O coronel fechou as duas extremidades da estrada, impedindo as pessoas de circularem. Foguetes eram estourados à noite, caminhões do exército circulavam, enchendo de poeira os barracos e as pessoas.
A solidariedade fortaleceu a resistência. Além do apoio de assentados da região, padres, pastores, sindicatos e trabalhadores que apoiavam a Reforma Agrária – como um verdureiro que tinha um comércio na região e não deixou de atender as famílias – os sem terra organizaram um boletim de divulgação das lutas, que depois deu origem ao Jornal Sem Terra.
Algumas famílias caíram no conto do coronel, e foram para o Mato Grosso do Sul, com a promessa de terra para produzir e trabalhar. Mas a maioria, apesar das condições difíceis, permaneceu. E hoje está marcado em uma placa, bem ali na Encruzilhada Natalino: “derrota do Curió e vitória da luta pela terra”.
Novas ocupações
“A formação que tivemos no acampamento foi ajudando para que a gente não enxergasse só luta pelo nosso pedaço de terra. Tínhamos que nos manter firmes porque tinha gente de olho para o que ia acontecer conosco depois…”, conta Salete. E assim uma parte das famílias se mudou para Ronda Alta, e em 1983 conseguiram um assentamento na região.
Mas ainda havia um grande número de famílias dispostas a lutar por seu direito à terra. Em 29 de outubro de 1985, a Fazenda Anonni, parte do complexo Sarandi, era ocupada por mais de oito mil pessoas. Era mais do que a população da cidade de Sarandi. “As pessoas que entravam ali naquela área já tinham a compreensão de que ocupação é a única solução”, explica Isaías, retomando o lema do I Congresso, realizado em 1984, em Cascavel, no Paraná, e que deu origem formalmente ao MST.
“Eu morava no interior de Ronda Alta, filho de pequeno agricultor, pai falecido, três irmãos. E quando saiu a organização para a ocupação, a gente entrou na nossa comunidade, e viemos para a fazenda Anonni”, lembra José Antonio Sé, um dos tantos que declara ter sua vida transformada depois de participar da organização coletiva. “O MST foi uma reviravolta na minha vida. Antes era aquele trabalho braçal, um trabalho direto, ano inteiro, dia inteiro, não tinha folga. E nunca na vida eu ia conseguir 20 hectares, acho que nem 1 hectare, sozinho”.
A conquista
Hoje, nestes 9,2 mil hectares da fazenda vivem 450 famílias. Todas fruto do processo de ocupação da Anonni há quase 30 anos. O restante das pessoas foram assentadas em outras regiões e muitas delas fora do estado gaúcho.
“Antes isso aqui tinha 800 e poucas cabeças de gado nos 9,2 mil hectares, e o tradicional capim Anonni, que hoje é uma praga pra nós. Aqui temos a prova que nossa prioridade é produzir, em cima dessa área que era improdutiva, e alimentar as essoas”, afirma Jorge José dos Santos, que também participou da ocupação.
Hoje, na região da antiga fazenda Anonni são 7 comunidades. Todas elas possuem seu ginásio de esporte. Todas as crianças freqüentam uma das três escolas que existe por ali. Uma é estadual e vai até a 8ª série, e duas municipais. O assentamento abriga ainda uma escola técnica, o Instituto Educar, que forma técnicos em agroecologia.