José Elí da Veiga: Especulação imobiliária rural e a nova lei florestal



Por José Elí da Veiga*
Do Observatório do Código Florestal


O débil entendimento público mundial sobre o estratégico papel da biodiversidade, junto com a particular confusão cognitiva dominante na sociedade brasileira sobre a relação entre produção agroalimentar e propriedade fundiária, explicam em grande medida a trágica morte do Código Florestal (NCF).

Por José Elí da Veiga*
Do Observatório do Código Florestal

O débil entendimento público mundial sobre o estratégico papel da biodiversidade, junto com a particular confusão cognitiva dominante na sociedade brasileira sobre a relação entre produção agroalimentar e propriedade fundiária, explicam em grande medida a trágica morte do Código Florestal (NCF).

É claro que o propósito de legitimar a recente ocupação devastadora do Centro-Oeste, da Pré-Amazônia e do oeste baiano é absolutamente racional para a minoria de grandes proprietários de terras nessas regiões. O problema é que ela só foi viabilizada porque eles conquistaram o decisivo apoio da esmagadora maioria dos produtores agrícolas, que, ironicamente, reproduziram a cegueira estratégica de seus nobres antecessores. Vantagens de curto prazo no mercado imobiliário rural os incitaram a aniquilar grandes oportunidades de êxito para as próximas gerações de empreendedores agrícolas.

Muito pior: o conjunto do mundo empresarial foi incapaz de perceber que essa vitória de imediatistas interesses patrimoniais contra a serena prudência ecológica, exigida pelos mais legítimos interesses produtivos, conseguiu amputar grande parte das vantagens competitivas que a economia brasileira poderia obter na segunda metade deste século.

Como o empresariado brasileiro pode ser tudo menos tacanho, a explicação talvez esteja em possível “rabo preso” com os interesses da propriedade imobiliária rural. Mas esta é tão somente uma verossímil hipótese, que precisa ser investigada pelo trabalho analítico coletivo que certamente será promovido pelo Observatório.

Falácia

Também precisa ser estudado o papel da elite burocrática que tanto contribuiu aos grandes sucessos de 18 anos de governos de coalizões conduzidas por tucanos e lulistas, mas que levou a nossa querida presidenta Dilma a manchar sua heroica trajetória de dedicação aos interesses dos brasileiros menos favorecidos ao assumir um dos mais graves retrocessos da história da República.

O encantamento do governo e de uma grande fatia de sua base parlamentar pela tese que recebeu o apelido de “escadinha” ignora a imensa disparidade que existe entre os estratos de tamanho de estabelecimentos produtivos e aqueles da categoria que foi a preferida pela lei: os imóveis rurais. Com isso, saiu pela culatra a louvável intenção de flexibilizar as regras de conservação das áreas de preservação permanente (APP) em favor dos pequenos e médios produtores, pois não faz parte do setor produtivo a maior parte da área dos pequenos e médios imóveis rurais. Erro crasso que muito inchará a bolha do mercado imobiliário rural. Pior: induzindo brutal redução da fertilidade desses solos, em decorrência da agora legalíssima aceleração da perda de biodiversidade.

Esses são apenas dois exemplos das indagações que merecem intensa reflexão do campo da sustentabilidade. Sem entender melhor as razões de tremendo contrassenso histórico, será impossível evitar mais atentados similares à ampliação das oportunidades de desenvolvimento sustentável para as próximas gerações.

O código e o preço dos alimentos

Em meados de 2012 era obrigatório se perguntar qual poderia ser o limite de desfaçatez dos que estavam sonhando com uma lei que legitimasse os desmatamentos criminosos dos 13 anos anteriores e ainda tornasse desprotegidas as áreas úmidas, os manguezais, as margens dos rios, as encostas e os topos de morro. Pois estavam se valendo de reles blefe para chantagear a presidenta Dilma: aumento dos preços alimentares decorrente de diminuição da área cultivada, caso não fosse sancionado o projeto da Câmara que visava revogar o Código Florestal. Essa era a síntese da ameaça publicada na Folha de S.Paulo de 12 de maio de 2012 pela presidenta da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), senadora Kátia Abreu, do Partido Social Democrático (PSD)/TO, que agora entrou no PMDB por decisão da cúpula contra as bases estaduais.

Bazófia cabalmente desmentida pelas projeções do próprio agronegócio: o Outlook Brasil 2022 (2012), feito em parceria do Departamento de Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Deagro/Fiesp) com o Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).

Até 2022, a produção de grãos terá crescido quase 30%, com aumento da área plantada de quase 16%. Isso significa que será necessário acrescentar uns 6,2 milhões de ha aos atuais 39,2 milhões, para que nos próximos dez anos a produção de grãos seja 30% maior que a atual.

Segundo a senadora, seria a obtenção desses 6,2 milhões de ha que impediria a observância de boas normas de conservação. Como se por aqui houvesse um impasse que obrigaria a Nação a sacrificar seu meio ambiente em razão da incontornável necessidade de produzir comida barata.

Falando sério: qualquer vestibulando sabe que a expansão da agricultura se faz por incorporação de terras antes destinadas a pastagens. E esses 6,2 milhões de ha não chegam a 3% da imensa área coberta por capim, que já ultrapassa 211 milhões de ha.

Era intrigante que se recorresse a tão pífio estratagema para tentar defender o indefensável: o “maluco” projeto que havia sido aprovado na Câmara. O que mais interessava, contudo, era a real motivação da sanha da CNA contra as áreas de preservação permanente (APP), já que em nada dificultam a expansão agrícola.

Interesses especulativos

A ocupação territorial deste país vem sendo feita por um esquema de desmatamento, queimada e capim que atropela todas as precauções intrínsecas ao cuidado de se manter as APP. Se passasse o projeto da Câmara, essas terras teriam imediato salto de valorização patrimonial, apesar de todos os riscos de erosão dos solos e assoreamento de rios. Se, ao contrário, a sociedade brasileira exigisse a reversão de tão trágico malfeito, os valores desses domínios teriam de embutir os custos da indispensável recomposição da vegetação nativa em APP. Principalmente no Centro-Oeste e no Norte, mas também no oeste da Bahia e no sul do Maranhão e do Piauí.

Como esses grandes interesses especulativos são menos confessáveis, foi montada uma campanha política para tentar vender a ideia de que “o grande prejudicado” é quem se esforça para produzir “alimentos melhores e mais baratos”. E, como também não faltam exemplos de verdadeiros agricultores, que, por outras razões, enfrentam dificuldades com a legislação em vigor, foram eles que serviram de biombo para uma gigantesca operação no mercado imobiliário rural.

Mesmo que tenha percebido o quanto era ridícula a chantagem ensaiada por Kátia Abreu, foi em seu favor a decisão da presidenta Dilma. A medida provisória (MP) n. 571/2012 contribui para que a sancionada lei n. 12.651/2012 perdoasse violações de APP realizadas em “imóveis rurais” por atividades “agrossilvopastoris” implantadas até “22 de julho de 2008ÿ.

Mesmo antes de discutir as implicações desses três destaques, é preciso que se esteja alerta para um fato ainda ocultado por tanta ingênua referência a um imaginário “Novo Código Florestal”.

O novo Código não é um código

Sejam quais forem as alterações que a lei n. 12.651/2012 pudesse sofrer no Congresso por força do verdadeiro tsunami de emendas aos 78 artigos da MP n. 571/2012, ela jamais poderia ser chamada de “código”, pois dispunha exclusivamente sobre a proteção de vegetação nativa que ainda existia ou se recompusesse em parte do território nacional cuja dimensão permanece ignorada: a que foi legitimamente apropriada pela iniciativa privada.

Para que pudesse ser chamada de “código”, a nova lei também deveria dispor sobre as florestas que estão protegidas por unidades de conservação e por populações indígenas, assim como as que permanecem inteiramente desprotegidas por cobrirem terras que pertencem ao patrimônio público dos três entes federativos, mas que foram objeto de grilagem, prevaricação ou diversas formas de abandono igualmente escandalosas.

Será possível ignorar que a área total dos empreendimentos produtivos do chamado setor agrícola – fazendas, sítios e chácaras – pouco tem a ver com a área total dos imóveis rurais? Pelas estatísticas oficiais disponíveis, a área ocupada pelos estabelecimentos agrícolas não chega a 40% dos 850 milhões de ha do território nacional, enquanto a área dos imóveis rurais estaria próxima dos 70%.

Ao optar pela categoria “imóvel rural” em vez de “estabelecimento agrícola”, a lei e a MP favoreceram os proprietários privados de terras de vocação exclusivamente especulativa, que nem sequer podem ser recenseadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por não abrigarem comprovada atividade produtiva. Essas terras, que poderiam atingir 30% do território nacional, estão evidentemente concentradas nos dois biomas de mais recente e predatória ocupação: cerrados e florestas amazônicas.

Com o intuito de premiar esse mesmo tipo de especulação fundiária, a lei considerou “consolidadas” todas as invasões de APP por atividades “agrossilvopastoris”. Expediente infelizmente confirmado pela MP. Ora, a preferência por esse amálgama, em vez da fundamental distinção entre os impactos ambientais de culturas permanentes, de cultivos temporários e de pastagens, equiparam os cuidados dos produtores agrícolas à irresponsabilidade dos que cobrem de capim margens de rios, encostas e topos de morro. Fazem como se os simulacros de pastagens dominantes no Centro-Oeste, no oeste baiano e no sul da Pré-Amazônia pudessem ter impactos idênticos aos dos parreirais e pomares do Sul, cafezais do Sudeste ou cacauais da Bahia.

O terceiro, mas não menos importante retrocesso da revogação do Código Florestal, refere-se à data demarcatória entre novas normas e o passivo ambiental. Foram ignorados os dez anos transcorridos entre a promulgação da Lei de Crimes Ambientais e o decreto de Lula que pretendeu colocá-la em prática. É o que fazem a lei e a MP ao usarem a vingativa e humilhante data de 22 de julho de 2008 como prazo limite da legalização dos malfeitos predatórios cometidos contra as APP.

Seria absolutamente justo perdoar desmatamentos ilegais realizados no período em que o próprio Governo Federal não apenas os promovia, mas até punia os migrantes que demorassem a fazê-los. Todavia, essa distorção deixou de ter qualquer justificativa atenuante desde 1999, com a regulamentação da Lei de Crimes Ambientais. Não há como deixar de perguntar, então, quem serão os principais beneficiários desse indulto a prejuízos intencionais ao bem comum perpetrados nos dez anos anteriores a 22 de julho de 2008. E, ao se tentar responder, pela terceira vez se chega ao mesmo agente: a especulação imobiliária dos ocupantes predatórios dos cerrados.


* José Elí da Veiga, professor titular da Universidade de São Paulo (FEA-USP)