Algodão renasce no Ceará a partir da agroecologia
Por Andrea Vialli
Do Valor
A flor do mandacaru desabrocha e a vegetação da Caatinga ganha tons de um verde exuberante logo que as chuvas típicas do início do ano caem. A terra, antes seca, passa a receber esterco e palha de carnaúba: é a preparação para as sementes do algodão, uma cultura que, até o fim da década de 1950, chegou a ocupar 1,2 milhão de hectares somente no Estado do Ceará e depois minguou em razão de pragas e da falta de perspectiva econômica.
Por Andrea Vialli
Do Valor
A flor do mandacaru desabrocha e a vegetação da Caatinga ganha tons de um verde exuberante logo que as chuvas típicas do início do ano caem. A terra, antes seca, passa a receber esterco e palha de carnaúba: é a preparação para as sementes do algodão, uma cultura que, até o fim da década de 1950, chegou a ocupar 1,2 milhão de hectares somente no Estado do Ceará e depois minguou em razão de pragas e da falta de perspectiva econômica.
Assim como a Caatinga, que se renova após o período de chuvas, o algodão renasce como uma cultura capaz de gerar renda para as famílias do semiárido nordestino e frear o êxodo rural na região. Uma articulação entre o governo federal, ONGs e empresas privadas está permitindo a retomada da produção do algodão com base na agricultura orgânica, no plantio consorciado com alimentos e na venda da pluma seguindo os princípios do comércio justo.
Hoje, cerca de 1.000 famílias vivem do algodão cultivado com técnicas agroecológicas em cinco Estados do Nordeste – Ceará, Pernambuco, Paraíba, Piauí e Rio Grande do Norte. Ao todo, são 1.300 hectares plantados sem agrotóxicos em sistema de rotação de culturas, com técnicas de conservação do solo e da água, controle biológico de pragas, adubação verde e curvas de nível para evitar erosão.
Os números parecem modestos perto do total de 295 mil hectares de algodão que hoje são cultivados em toda a região Nordeste brasileira, mas a adoção de técnicas mais sustentáveis de plantio está ligada à reforma agrária e ao fortalecimento da agricultura familiar na região.
“No passado, o Ceará chegou a ser o segundo maior produtor de algodão do Brasil, baseado na monocultura realizada em grandes extensões de terra. O que vemos agora é a retomada da cultura pela agricultura familiar, o que traz benefícios sociais e ambientais para o semiárido”, explica o engenheiro agrônomo Pedro Jorge Bezerra Ferreira Lima, diretor adjunto do Escritório de Planejamento e Assessoria Rural (Esplar), entidade com sede em Fortaleza e responsável pela pesquisa e aplicação das técnicas agroecológicas para a cultura do algodão no semiárido.
Pedro Jorge, como é conhecido entre os produtores rurais, começou a trabalhar com agricultores da região de Tauá, no sertão cearense, ainda na década de 1990. Os primeiros plantios de algodão com técnicas orgânicas, no inicio, entusiasmaram pouco mais que uma dezena de famílias. Mas com a adesão de sindicatos rurais da região ao projeto, foi possível fazer a aquisição de maquinário para beneficiar o produto. Desta forma, a primeira safra de pluma orgânica foi comercializada ainda em 1993, para a ONG ambiental Greenpeace, que usou o algodão orgânico para confeccionar camisetas.
No povoado de Riacho do Meio, 70 famílias plantam algodão orgânico, milho, feijão, abóbora, mandioca e hortaliças
Mas foi somente no início da década seguinte que a produção conseguiu ganhar fôlego, quando entrou em ação o Projeto Dom Helder Câmara, uma iniciativa de combate à pobreza no semiárido vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e financiada com recursos do Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (Fida), da Organização das Nações Unidas (ONU).
Destinado a agricultores de assentamentos do governo federal, o projeto também presta assistência técnica às famílias e vem permitindo a expansão do cultivo de algodão em conjunto com culturas como milho, feijão, hortaliças e gergelim. “O algodão agroecológico é uma excelente cultura para o semiárido, pois é resistente à seca e, cultivado em consórcio com outros alimentos, permite um controle adequado de pragas”, explica Fábio dos Santos Santiago, coordenador técnico do Projeto Dom Helder Câmara. O know-how é compartilhado por outros parceiros, como a Embrapa Algodão.
De acordo com Fábio dos Santos Santiago, um dos méritos do sistema de produção de algodão com outras culturas é manter sob controle a infestação do bicudo-do-algodoeiro, principal praga que dizimou as plantações do Ceará na década de 1980.
“As técnicas agroecológicas também permitem evitar o desgaste do solo e diminuem a necessidade de abertura de novas áreas de plantio, reduzindo a pressão sobre a Caatinga”, explica Santiago. O uso de fertilizantes e defensivos naturais também ajuda a preservar os escassos recursos hídricos da região, onde só chove – e pouco – durante três a quatro meses por ano.
“Faz dez anos que não corto um só pau para lenha. Com a recuperação da mata, a gente vê os poços de água que tinham secado voltando a jorrar”, conta o agricultor João Félix, que mora no povoado de Riacho do Meio, no município de Choró, no Ceará. Assim como outras 70 famílias do povoado, Félix abraçou a cultura do algodão orgânico e produz também milho, feijão, abóbora, mandioca e hortaliças, além de criar gado e cabras.
Parte do que produz é consumido pela própria família, e o algodão complementa a renda. Beneficiado pela reforma agrária e pelo programa do governo federal de instalações de cisternas para armazenamento da água da chuva, Félix diz que a vida no semiárido melhorou nos últimos dez anos. “Nossos filhos já não pensam em ir embora do sertão”, conta ele. “Pelo contrário, estão estudando e se especializando para trabalhar com a agroecologia”, afirma o agricultor.
João Félix, agricultor: “Com a recuperação da mata, a gente vê os poços de água que tinham secado voltando a jorrar”
Além da capacitação técnica, o Projeto Dom Helder Câmara também aproxima os produtores locais, que são organizados em associações e cooperativas, dos potenciais clientes para o algodão produzido de forma ambiental e socialmente correta.
O princípio que norteia as relações é o do comércio justo, onde os produtores e os compradores negociam diretamente os preços, eliminando intermediários e garantindo um prêmio para o algodão orgânico.
Os agricultores da região de Choró hoje vendem quase toda a produção para a marca franco-brasileira de calçados Vert, que produz no Brasil tênis com apelo sustentável (leia mais sobre esse tema em matéria nesta página). François-Ghislain Morillion e Sébastien Kopp, sócios fundadores da empresa criada em 2004 na capital francesa Paris, viajam anualmente para o sertão do Ceará para negociar a compra da matéria-prima diretamente com os agricultores.
Graças a essa relação sem intermediários, os empresários conseguem pagar um valor acima da média de mercado para o algodão orgânico produzido na região. Só em 2013, a Vert comprou 500 quilos de pluma de algodão a um preço de R$ 7,39 o quilo – um preço 65% superior ao praticado no mercado. Atualmente, cerca de 700 famílias estão envolvidas no cultivo do algodão comprado pela empresa e para cada par de tênis produzido, cerca de R$ 1,1 é pago aos produtores de algodão.
A Vert mantém no quadro de funcionários uma engenheira agrônoma, responsável por orientar os produtores na busca pela certificação de produtos orgânicos – o selo Orgânicos Brasil – conferido pelo Ministério da Agricultura. “Nosso modelo de negócios foi construído de modo a evitar a compra de matérias-primas no tradicional sistema de commodities, que é volátil e acaba prejudicando os pequenos produtores”, diz Morillion.
Todos os calçados da marca são produzidos no Brasil, no polo calçadista de Novo Hamburgo (RS), e além do algodão orgânico na sua fabricação, é usada a borracha nativa da Amazônia, produzida por associações de seringueiros do Acre, também dentro dos princípios do comércio justo. Além da Vert, o algodão agroecológico do sertão nordestino tem como compradores marcas que apostam no nicho da moda sustentável, como Natural Fashion, Malhas Martins, Tudo Bom e a francesa Em Vao.