As contações de histórias ao pé da baobá, uma árvore ancestral

Por José Coutinho Júnior
Da Página do MST


— Olá. Que bom ver que você está mais saudável a cada dia. Quando chegou aqui, ainda parecia meio desnorteado e assustado. Agora, até já tem folhas. Está contente por causa das histórias que ouve todo dia? Então, estamos aqui para te contar uma história interessante: a sua história.

Por José Coutinho Júnior
Da Página do MST

— Olá. Que bom ver que você está mais saudável a cada dia. Quando chegou aqui, ainda parecia meio desnorteado e assustado. Agora, até já tem folhas. Está contente por causa das histórias que ouve todo dia? Então, estamos aqui para te contar uma história interessante: a sua história.

Caso você não saiba, você é um  baobá, árvore que, segundo as lendas, foi o primeiro Ser criado na terra. Impressionante, né? Você vive por mais de 6.000 anos, e muitos povos acreditam que você tem a capacidade de absorver as histórias que ouve e que, daqui há muitos anos, irá transmiti-las para o mundo. 

Você chegou aqui, na 31ª Bienal de Arte de São Paulo, como parte da obra Mujawara da Árvore-Escola, que em árabe quer dizer vizinhança. A outra parte da obra, além dos livros que contam a sua história, são as pessoas que sentam aqui nesta roda, conversam, contam e ouvem histórias, poesias e compartilham conhecimento debaixo de você.

Mas estamos nos adiantando. Nossa história começa em março deste ano. Um coletivo de arte urbana daqui de São Paulo, chamado Contrafilé, que realiza intervenções artísticas e pensa a relação do corpo no espaço urbano, foi convidado pela curadoria da Bienal a se relacionar com uma universidade informal palestina, criada dentro do campo de refugiados de Deheishe, chamada Campus in Camps, e a partir deste encontro, criar um trabalho para a Bienal.

— Oi, sou a Jerusa, do Contrafilé. Se importa se eu continuar a história? 

— Claro que não. Senta aí.

— Bom, quando a curadoria propôs que conhecêssemos o Campus in Camps, vimos que tínhamos muito o que trocar. Porque um ponto forte que temos em comum com eles é a relação com a terra e com o território. 

Os refugiados palestinos buscam esse retorno à sua terra original, e percebemos que era uma semelhança muito forte com o movimento quilombola. Por isso decidimos realizar um encontro de um mês na Bahia, para que eles conhecessem os quilombos, e lá acabamos conhecendo o MST também: ficamos aguns dias no assentamento Terra Vista. 


O retorno à terra 

—Como você pode ver, você está aqui graças ao encontro de diferentes histórias e identidades. Aposto que quer saber mais sobre cada um desses grupos, certo? Aysar, quer começar?

—Olá. É um prazer estar aqui, obrigado pelo convite. Meu nome é Aysar Alsaif, sou refugiado do campo de Deheishe. Os campos de refugiados palestinos surgiram da ocupação violenta de 532 vilas palestinas em 1948 por Israel, que expulsou mais de 750 mil palestinos de suas terras, destruindo suas casas, para que fossem criadas no lugar colônias israelenses.

O campo de Deheishe tem uma população de 13 mil pessoas que vivem em uma área de 500 mil metros quadrados. É uma das áreas com maior densidade populacional não só da Palestina, mas de todo o mundo. Os campos têm em sua entrada uma chave, símbolo dos refugiados, pois quando eles foram expulsos, não tiveram tempo de pegar seus pertences; só levaram a chave das casas.

A violência do exército de Israel está presente o tempo todo. O exército entra no campo pelo menos duas vezes por semana. Às vezes entram para prender pessoas e danificar casas. Eles também entram por nada, e definimos “nada” como o treinamento dos recrutas do exército. A maioria das pessoas nesse campo já foi presa.

— Posso continuar? Meu nome é Sandi Hilal, sou uma das fundadoras do Campus in Camps. A ideia do projeto é procurar produzir conhecimento com a experiência nos campos de refugiados, tirando essa imagem do campo de vitimização e pobreza, e transformá-lo em atores político e sociais independentes. 

Também refletimos muito sobre o que é o retorno à terra, que os refugiados tanto querem. Para que terra queremos retornar? A chave parece representar apenas a propriedade privada perdida. Mas nós perdemos muito mais coisas que não eram privadas, eram coletivas, como as cidades de Haifa, Jafa, Acre e o contato com o mar. 

— Essa questão do retorno é fundamental para nós, quilombolas. Sou TC Silva, membro da rede Mocambos.  O Quilombo dos Palmares, um dos maiores do Brasil, foi fundado em 1630 e durou 100 anos antes de ser destruído. Havia quase 30 mil pessoas morando nele. Palmares ficou conhecido como a primeira república democrática das Américas. Os quilombos nasceram quando as pessoas se refugiaram buscando, de maneira autônoma, um lugar próprio para viver. 

Hoje, no Brasil, existem pelo menos 3 mil comunidades quilombolas. A maioria delas fica em áreas rurais. São territórios enormes onde há a possibilidade de uma vida sustentável, já que não há propriedade privada, apenas terra coletiva. Nós não buscamos um retorno para a África; buscamos retornar para as nossas raízes, a nossa ancestralidade. Nós carregamos o território dentro de nós. 

—Da mesma forma, os Sem Terra, que desde 1992 realizaram a ocupação que resultou no assentamento Terra Vista, retornam à terra. Sou Deysi Ferreira, moradora do Terra Vista e militante do MST. Nosso lema nunca foi só “ocupar e resistir”, mas a questão do ser humano em si: “Como tornar o território livre, poder se libertar para um território maior?” 

E assim, houve o retorno de pessoas que haviam sido expulsas da agricultura. Durante um tempo, reproduzimos em Terra Vista a lógica do colonizador, ou seja, a monocultura e a organização hierárquica. E fracassamos. Mas no ano 2000, criamos o lema “Começar de novo”. 

O assentado, que antes só sabia aplicar um método de trabalho, entendeu que tinha poder nas mãos. Tinham trabalhado 50 anos com cacau pro coronel e podiam, agora, trabalhar no seu próprio cacau. Os indígenas, quilombolas e sem terra que conhecem a história dessa região sabem que o simbolismo inicial do cacau foi a escravidão. Mas também puderam ver o cacau ressurgir com o sistema da cabruca, dentro da mata.


A árvore-escola 

— Deu para perceber que, apesar das diferenças, todos os grupos se unem na questão da terra, do retorno às origens. A educação também é um tema comum a todos vocês. Como foi debater este tema, e que reflexões saíram desse debate? 

— Posso começar falando. Sou Joana, do Contrafilé.  A terra é a prova irredutível do comum, porque ela não pertence a nós. Nós pertencemos a ela. O processo de educação foi o mais conflituoso, e por isso mesmo o mais proveitoso. Nós temos uma pedagogia que tem muito a ver com uma dimensão micropolítica, a autoeducação radical, de colocar o seu corpo em risco. 

O Campus In Camps tem um tipo de produção de conhecimento que se esforça por subverter categorias

O MST, pelo menos no assentamento Terra Vista, tem uma matriz quilombola e indígena. As pessoas que estavam com a gente ensinavam muito através do corpo, de uma caminhada na mata, pela presença…às vezes a partir de um silêncio. 

E criar essa pedagogia própria é fundamental para os movimentos entenderem seu próprio processo. Se é movimento, tem que estar vivo, e precisa de uma atenção para se refletir sobre o que está sendo feito. E essa é a grande força dos movimentos, tudo que é feito consegue ser disseminado, o conhecimento se espalha. Não é uma pedagogia normatizada, cristalizada, encartilhada. 

— Sou a Cibele, do Contrafilé. Sobre o baobá: quando discutíamos a ideia de uma escola debaixo da árvore, sem hierarquia, onde todo mundo aprende e todo mundo ensina, pensamos que a árvore seria o baobá, pois ela é uma árvore que, por viver 6 mil anos, não só guarda a história dos povos, mas transcende elas.

E é um processo emocionante, ver as crianças com os educadores discutindo, o baobá crescendo folhas, e a gente entende que ele está guardando tudo isso. É um trabalho muito vivo.

—Só uma coisa também. Meu nome é Ahmad, sou do campo de refugiados de Deheise. O baobá é uma antena, que liga os povos. Os quilombos e o Terra Vista tem baobás plantados, e estão ligados por essa árvore. Eu, quando voltar para a Palestina, vou plantar um baobá lá também, para conectar o meu campo aos quilombos e ao Terra Vista. 

—Bom, espero que esse monte de histórias, que giram ao seu redor, tenham sido significativas para você baobá. Obrigado por reunir tantas pessoas diferentes, que, apesar de todas as diferenças, apresentam ideais parecidos, e aproveite a sua estadia aqui na bienal. Absorva todas as histórias que puder, e, um dia, transmita todo esse legado aos próximos lutadores que virão.

* A 31ª bienal vai até o dia 07 de dezembro, e no dia 15 de novembro, será realizada uma contação de histórias para o baobá.


*Para baixar o livro “A árvore escola”, que sintetiza as discussões da obra, clique aqui.