Abram alas à Unidos da Lona Preta
Por Guilherme Zocchio
Do Myfuncity
É um, dois, três… e o batuque começa. O surdo dá o compasso do ritmo e, então, entram os tamborins. Com seu apito, o mestre da bateria orienta o grupo, que começa a cantar: “Nasci da poeira vermelha […] Eu sou filho deste chão. Cresci debaixo da lona preta, na luta pela terra, fazendo ocupação”. É uma escola de samba. Mas, provavelmente, você não vai vê-la na tevê ou talvez vê-la desfilar pelo Anhembi.
Abram alas para a Unidos da Lona Preta, a escola de samba do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que comemora seu aniversário de 10 anos agora em 2015. “Começamos como um bloco de carnaval em 2002. Mas desde 2005 viramos uma escola de samba, a partir da necessidade de se aproximar da juventude”, explica Laércio Moreira da Silva, da coordenação da escola e responsável pelo surdo de segunda na bateria do coletivo.
O nome ”lona preta”, tal como sugere, remete às habitações erguidas pelos trabalhadores sem-terra em beiras de estrada, áreas improdutivas no campo ou terrenos baldios nas cidades, para fixar suas ocupações e fazer o usucapião da terra. Nos sambas-enredo, a escola fala de conquistas do movimento, segurança alimentar, reforma agrária, reforma urbana, agroecologia, entre outros temas.
Antes mesmo da significativa mudança na relação entre o poder público e os blocos carnavalescos nos últimos três anos, a Unidos da Lona Preta sempre marcou presença nas ruas. Já desfilou por mais de uma vez no centro de São Paulo (SP), no bloco da Abolição, que atravessa o bairro do Bexiga, e na região do Patriarca, na zona leste; também já participou de protestos e manifestações junto de outros coletivos e movimentos na cidade, como o Movimento Passe Livre (MPL), o Cordão da Mentira e o grupo de teatro Dolores Boca Aberta.
Parte da coordenação da escola e mestre da bateria, Tiaraju Pablo, reconhece as dificuldades para os desfiles de rua. “A verdade é que o povo na rua, mesmo que no carnaval, incomoda [as autoridades]”.
Ligada a um dos mais antigos e abrangentes movimentos sociais do Brasil, a Unidos da Lona Preta nasceu da necessidade de aproximar o samba –e também o carnaval– das lutas populares. A própria história da escola se confunde com a organização de homens, mulheres, jovens e velhos na reivindicação por melhores condições de vida.
O grupo foi gestado no seio de duas ocupações urbanas organizadas pelo MST: uma em Perus, na zona norte de São Paulo, e outra, no município de Jandira (SP), na região metropolitana, onde os integrantes normalmente se reúnem para os ensaios e realizam a maior parte de seus eventos. “A escola está necessariamente ligada à história das ocupações. O que foi importante para dar esse salto de qualidade foi a articulação do movimento com sambas enredo que falam das lutas”, relembra Silvana Bezerra, ritmista e integrante da coordenação da escola. As áreas ocupadas em que nasceu a escola são hoje dois assentamentos, chamados de comunas urbanas.
Samba legitimou comuna
O local onde a Unidos da Lona Preta se reúne para ensaiar e realiza a maior parte de suas apresentações é a comuna urbana Dom Hélder Câmara, em Jandira, município vizinho a Barueri (SP) na região metropolitana de São Paulo. Trata-se de uma área na qual os moradores da região conseguiram o direito de morar depois de se organizar para isso. “O MST entrou para ajudar a nos organizar”, recorda Laércio de Moreira da Silva, que reside
no local.
Em sua maioria oriundos da comunidade Vila Esperança, bairro de Jandira, os atuais moradores da comuna urbana D. Hélder Câmara enfrentaram um processo que durou sete anos até conseguirem viver na área do assentamento. A história começa em 2005, quando 150 famílias integrantes do MST decidiram se organizar para comprar um espaço de terra, após serem despejadas do terreno onde estavam incialmente.
Ao adquirir o terreno da comuna urbana, as 150 famílias propuseram à Prefeitura de Jandira (SP) um projeto de ocupação da área, com a construção de moradias e alguns equipamentos de uso comum. Durante um período de três anos, entre 2005 e 2008, eles esperaram a aprovação da proposta junto ao poder público municipal.
No decorrer deste período de tempo, a Unidos da Lona Preta desempenhou um papel fundamental. “A escola
ajudou a abrir o diálogo com o poder público e foi também a representação do movimento. A partir daí é que começamos a conversar também com professores, entidades e outros atores políticos locais”, lembra Silvana Bezerra. “O samba legitimou a ocupação do lugar”, acrescenta.
O projeto, após muita espera, foi aprovado em 2008. As obras iniciaram com dois grupos de trabalho: o primeiro, com mão de obra contratada, realizava as obras de segunda a sexta-feira; o segundo era formado por mutirões de construção formados pelos futuros moradores da área. O terreno estava em condições de ser ocupado em 2012. Até este ano, os moradores residiram em um local provisório oferecido por um vereador da região.
“Mesmo assim, ainda não tínhamos a parte de infraestrutura, que dependia da prefeitura”, pondera Laércio. Segundo ele, além dos dois grupos de trabalho, havia também dois contratos para a realização das obras na comuna urbana. Um ficou sob a responsabilidade dos moradores, encarregados pela construção das casas, e outro a cargo da Prefeitura, incumbida de providenciar água, luz e esgoto. Toda essa parte de serviços públicos só estaria regularizada em 2014.
No samba-enredo para o carnaval deste ano, o Unidos da Lona Preta canta: “quando o samba vai pra luta, disputa a hegemonia e propõe valores de um povo com sabedoria”. E lembra de Jandira com “lindas tardes de samba na formação humana”, lugar onde até “o barracão chorou”.
Não poderia ser diferente. Organizadas, as famílias superaram muitas dificuldades. Construíram seu próprio espaço comum, que hoje conta com 128 casas, uma creche e um berçário, uma padaria comunitária, uma oficina de costura, uma quadra poliesportiva, quatro áreas de comércio e um anfiteatro. É quase uma cidade inteira construída com a ajuda do samba.