Sentença de juíza mostra que Judiciário não é feito apenas de Moros e Mendes
O Poder Judiciário decidiu que a Araupel não é dona da Fazenda Rio das Cobras, no PR. Cerca de 2.500 famílias lutam por aquelas terras.
Por Camilo da Silva
Na discussão sobre as titularidades de propriedades, especialmente de imóveis rurais, sabe-se desde sempre de falcatruas engenhadas quando se deu a transferência desse patrimônio do público para o privado. Às vezes, inclusive, com a complacência de quem representava o Estado, desde o período monárquico, para legitimar a apropriação particular irregular, muitas vezes feita por companhias colonizadoras com capital internacional.
O pesquisador da USP, Ariovaldo Umbelino, diz que metade dos documentos de posse de terra no Brasil é ilegal. Está sendo generoso, evidentemente. Empiricamente, dá para dizer que a porcentagem é maior. Mas isso é assunto apenas para especulação intelectual?
Ao ler a sentença da Juíza Lília Côrtes de Carvalho de Martino, da 1ª Vara Federal de Cascavel, conclui-se que não. Daí que, pelos princípios do Direito levados em consideração pela magistrada ao proferir a sentença, temos uma anti-Moro no Poder Judiciário.
O Incra ingressou com Ação Declaratória de título de domínio de dois imóveis no Paraná, a fazenda Rio das Cobras, em Quedas do Iguaçu, e a fazenda Pinhal, em Rio Bonito do Iguaçu. A justiça de Cascavel entendeu que a fazenda Pinhal Ralo é de competência da Subseção Judiciária de Pato Branco. Um detalhe técnico.
No bojo da ação, discutiu-se os percalços do título desde sua origem bem mais de um século atrás, sobre as tradicionais justificativas da concessão, desde a construção de ferrovias a colonização. Nesse período, passaram os títulos desses imóveis por mãos de conhecidos empresários, a exemplo José Ermírio de Moraes.
Entre as várias teses do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para pedir a nulidade do título de domínio, está o Decreto Federal 2.073/1940, que reincorporou à União todas as terras concedidas para a Companhia de Ferro. Há outros argumentos de mesma envergadura pela nulidade.
Após mais de uma década de trâmite, instrução e incidentes processuais, proferiu-se a sentença. Um primor. Memorável. Técnica. Imparcial. Coerente. Com fundamentação jurídica inquestionável e amparo na história, sem esquecer outros ramos do conhecimento, a juíza declarou nulo o título de domínio da fazenda Rio das Cobras, leia-se Araupel, madeireira surgida a partir da antiga Giacomet.
Além disso, ela determinou que não haverá indenização por benfeitorias, que costuma ser pagas nesses casos. Assim, a Araupel terá de devolver o depósito já feito pelo Incra de R$ 75 milhões.
Trata-se de 63 mil hectares de terra, onde aproximadamente 24 mil hectares já pertence ao Assentamento Celso Furtado, que a justiça diz ser de domínio da União Federal.
A sentença da juíza Lília Côrtes é simbólica, porque enfrenta uma questão de injustiça perpetrada e conhecida apenas em material de especulação intelectual. Assim, serve também de recado a grileiros ou laranjas do capital externo que se apropriam ilegalmente de terras, a exemplo de Daniel Dantas e Cutrale.
A juíza deu uma aula de história e lançou mão de princípios jurídicos como a supremacia do interesse público sobre o privado, esquecidos por Mendes e Moros. Com isso, provou que há pessoas no Judiciário que abrem as janelas da hermética instituição para a entrada da luz do progresso.
É certo que haverá apelação ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região e, possivelmente, o STF dará a última palavra sobre o tema. Ministros como Edson Fachin e Luis Roberto Barroso, a julgar por seus escritos, são profundos conhecedores desse conteúdo jurídico. Se mantida a sentença, e assim deverá ser, a União terá sem custo algum uma área para assentar mais de 2 mil famílias, número significativo para que sejam honradas as metas do Ministério do Desenvolvimento Agrário.