De Lugo a Cartes: o Paraguai sem terra

Nos últimos três anos apenas acelerou a concentração da riqueza que já funciona há 140 anos. É a nação mais desigual do mundo em relação à concentração da terra.

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Por Frederico Larsen
Do Rebelión

No dia 22 de junho, completa-se o terceiro aniversário do golpe de Estado parlamentar contra Fernando Lugo, no Paraguai. Ao lançar um olhar para trás, e verificar o que foi que mudou desde aquele governo que se apresentava como a esperança dos humildes, encontramos muitas diferenças. Em primeiro lugar, mudou a América Latina. A eleição de Lugo, em 2008, foi a enésima vitória de uma frente progressista em todo o continente, que hoje está em franco desgaste.

Era o momento dourado dos projetos continentais que se opunham ao poder histórico de conservadores e potências estrangeiras, e o governo da Frente Guazú, partido que levou o ex-bispo ao governo, foi um dos primeiros, talvez o mais frágil, a cair. Mudou a economia, cada vez mais baseada na exportação de soja transgênica em um país em vertiginoso crescimento. Mudou a política, com um Paraguai na atualidade muito distante de confiar o poder em outra proposta que provenha da esquerda. O que não parece ter mudado são a desigualdade e a pobreza no país guarani, onde o campesinato e os trabalhadores urbanos continuam sendo os setores mais vulneráveis e expostos à já histórica repressão do Estado.

O “golpe brando”

A destituição de Lugo, em 2012, foi o melhor ensaio realizado a respeito do que se conhece como golpe brando, o golpe de luva branca. Trata-se de um método para desbaratar um governo sem a intervenção direta das Forças Armadas ou o emprego clássico da violência. Para alcançar isto, basta gerar um clima político instável, apresentar o governo em exercício como o culpado pela crise e encontrar as formas de dobrar a lei para derrubá-lo. Foi isto o que, três anos atrás, aconteceu no Paraguai.

No entanto, para compreender esse fato é necessário reconstruir a história que levou a esse golpe. O Paraguai é a nação mais desigual do mundo no que diz respeito à concentração da terra. Segundo dados oficiais, 2,6% dos proprietários detêm 85% da terra cultivável, a base do poder político e econômico no país. Muitos destes campos constituem o que se conhece como terras ‘malhabidas’ (irregulares), ou seja, que deveriam ser destinadas à reforma agrária, prevista na Constituição, e que acabaram nas mãos de simpatizantes da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) ou de amigos das altas autoridades do Estado.

Entre 1954 e 2003, foram atribuídas de maneira fraudulenta 7,8 milhões de hectares de terra, o que equivale a 32% do território cultivável do país. Desta maneira, milhões de paraguaios ficaram historicamente distanciados da possibilidade de obter terras próprias, o que gerou um conflito social profundo que ainda continua vigente.

Desde 1885, quando se aprovou a primeira lei de venda de terras fiscais, depois que a guerra da Tríplice Aliança acabou com o projeto do Paraguai Independente, do doutor Gaspar Rodríguez de Francia e seus sucessores, a propriedade da terra foi a principal causa de perseguição e morte contra o campesinato. Em 2014, a Coordenação de Direitos Humanos do Paraguai (CODEHUPY) publicou um relatório sobre os assassinatos de camponeses, nesse país, da restauração da democracia em 1991 até agosto de 2013. Nele é revelado que 115 camponeses foram mortos por forças de segurança ou jagunços a mando de grandes latifundiários com a finalidade de amedrontar as ocupações e a luta pela terra. A isto é necessário acrescentar dois casos a mais no último ano. Governo, latifundiários e industriais foram os que mantiveram o poder durante 61 anos seguidos, representados pelo Partido Colorado.

Esta norma foi rompida com a chegada de Lugo à presidência. Em 2008, a Frente Guazú decidiu fazer uma aliança com um dos agrupamentos tradicionais do poder no Paraguai, o Partido Radical Liberal Autêntico (PRLA), por não contar com a estrutura necessária para enfrentar as eleições. A mesma contou com a resistência dos setores do poder mais concentrado e dos movimentos sociais mais radicais. Lugo atuou com uma política de dupla via. Se por um lado matinha invariável a estrutura econômica do país, com uma forte pegada regressiva e extrativista, por outro, graças aos preços favoráveis no âmbito internacional, beneficiou milhões de paraguaios. Universalizou o sistema de saúde que pela primeira vez na história se tornou público e gratuito. Entregou notebooks para todos os estudantes do ensino fundamental e seus professores. Conseguiu fazer com que o então presidente do Brasil, Lula da Silva, aceitasse triplicar o montante que pagava ao Paraguai pela venda de energia elétrica da central de Itaipu e, assim, aumentar ainda mais os cofres do Estado. Em 2010, o Paraguai chegou ao seu recorde histórico de crescimento econômico, que alcançou 15% de seu PIB. No total, entre 2008 e 2012, houve 24 pedidos de julgamento político contra o presidente por sua simpatia aos movimentos de esquerda e suas reivindicações.

No ano de 2011, o governo de Lugo começou a enfrentar o problema das terras irregulares. Iniciou uma extensa investigação, que se traduziria depois em um novo impulso à reforma agrária, amplamente prometida, mas nunca concretizada. As grandes corporações nacionais e estrangeiras, nucleadas na União de Grêmios da Produção (UGP), começaram então a campanha de desprestígio que acabou no julgamento político que destituiu o presidente. Em outubro de 2011, iniciou-se um importante conflito midiático acerca da negativa do Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e de Sementes (SENAVE) para o cultivo da semente de algodão transgênico Bollgard BT, da companhia norte-americana de biotecnologia Monsanto. O titular do SENAVE, Miguel Lovera, foi acusado de incompetência e até de corrupção, e vários meios de comunicação nacionais pediram explicitamente sua renúncia. Por outro lado, as organizações camponesas já haviam expressado seu descontentamento com a lentidão do governo na prometida reforma agrária.

Em junho de 2012, as duas frentes entraram em ação. A UGP convocou um tratoraço, em Assunção, para o dia 25 daquele mês, uma ação que tinha mais uma marca destituinte do que a de protesto. Em Marina Kue, no departamento de Curuguaty, cerca de 1000 camponeses ocuparam uma propriedade que reivindicavam como terreno fiscal e, portanto, como parte da redistribuição de terras prometida. Entretanto, a propriedade era reivindicada pelo empresário Blas Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado, que a havia obtido nos anos de repartição de terras ‘malhabidas’ (irregulares). No dia 15 de junho de 2012, 300 efetivos da polícia começaram o despejo dos camponeses, no que ficou conhecido como o Massacre de Curuguaty. Embora ainda não exista uma definição judicial sobre o que aconteceu naquele local, várias investigações de organizações de direitos humanos, nacionais e estrangeiras, apontam para a organização de uma emboscada  conduzida pelos grandes proprietários de terra para, em seguida, culpar o governo pelo massacre. E assim aconteceu. Nesse despejo, morreram 11 camponeses e 6 policiais. De imediato, Lugo foi acusado de “provocar o caos e a luta de classes entre compatriotas”, como é frisado nas acusações do julgamento político que o destituiu no dia 22 de junho. Seu vice-presidente, o liberal Federico Franco, assumiu o poder até o dia 15 de agosto de 2013, quando novamente entrou um presidente colorado, Horacio Cartes.

A volta da “ordem”

As primeiras medidas de Franco no governo buscaram restabelecer a ordem tradicional. Substituiu e perseguiu todos os funcionários nomeados por Lugo, e abriu caminho à “modernização” agrícola reivindicada pelos latifundiários por meio da imprensa. Em agosto de 2012, liberou a semente transgênica de algodão MON531 e, em novembro, quatro sementes de milho, todas pertencentes às empresas estrangeiras Monsanto, Dow, Syngenta e Pioneer. Até esse momento, só uma semente geneticamente modificada de soja, aprovada em 2014, podia ser comercializada e semeada. Antes do final do mandato de Franco, a Monsanto conseguiu obter inclusive duas patentes exclusivas para o Paraguai, algo que possuía a oposição enérgica dos funcionários depostos. Diferente foi a força com a qual se opuseram à destituição.

Após o julgamento político, Lugo pronunciou um fraco discurso de abandono da presidência, e a resistência se transferiu à TV Pública do Paraguai, antes das tentativas de desmantelamento a partir das primeiras horas do governo de Franco.

A comunidade internacional condenou a deposição de Lugo e suspendeu o Paraguai da Unasul e do Mercosul, enquanto não retornasse um mandatário democraticamente eleito. Além disso, vários países no mundo desconheceram o novo governo e provocaram um isolamento internacional que prejudicou gravemente a situação do país.

Com um presidente liberal desacreditado dentro e fora do país, envolvido em contínuos escândalos de corrupção, e uma resistência social anti-golpista em franca diminuição, o Partido Colorado começou a preparar seu retorno ao poder. Para as eleições de 2013, apresentou um candidato jovem, distante das estruturas políticas tradicionais, uma cara nova que renovava a imagem negativa do histórico partido. Cartes, um empresário exitoso, presidente do tetracampeão de futebol paraguaio, o Clube Libertad, e ex-diretor de seleções da Associação Paraguaia de Futebol foi o eleito. Ele próprio admitiu que no dia 15 de agosto de 2013, dia em que venceu as eleições presidenciais, foi a primeira vez que iria votar.

Suas primeiras medidas se basearam em outorgar poderes especiais ao Executivo, especialmente em matéria de segurança. Deu vida à Lei de Segurança Interna, que permite ao governo, sem aprovação do Parlamento, a militarização e declaração de Estado de Sítio em regiões inteiras do país com a desculpa da luta contra a insurgência do Exército do Povo Paraguaio (EPP). Os movimentos camponeses denunciam que com esta lei, os militares efetuam despejos e violações aos direitos humanos, favorecendo ainda mais a concentração da terra. Conseguiu aprovar a lei de Aliança Público-Privada (APP), que permite a intervenção de empresas nos serviços que são providos pelo Estado, como infraestrutura, saúde e educação. Em especial, deu um estrondoso impulso à produção transgênica no setor agrícola.

Atualmente, 92% das terras cultiváveis no Paraguai são utilizadas para produzir alimentos destinados somente à exportação. Destas, 20% são controladas por estrangeiros, sobretudo brasileiros (4,8 milhões). Aqui, o produto estrela é indubitavelmente a soja da qual o Paraguai é, atualmente, o quarto produtor e o sexto exportador mundial. No governo de Cartes, foram liberadas outras seis variedades de sementes transgênicas, resistentes aos pesticidas. No ano passado, causou grande comoção a morte de Adela e Adelaida Álvarez, de seis meses e três anos de idade, respectivamente, por causa das fumigações em Huber Duré, departamento de Canindeyú, e as denúncias pela contaminação por causa do agronegócio se multiplicaram no último ano. Os movimentos camponeses levam adiante, há três anos, grandes mobilizações em defesa da semente nativa e das formas de produção tradicional.

No entanto, como aconteceu durante quase toda a história paraguaia, a aliança entre latifundiários, poderes públicos e forças de segurança impedem que estes projetos consigam ter mais força. Ao abrigo de um evidente crescimento econômico, o novo governo pede para acabar com a “cultura da pobreza”, para “modernizar” graças aos grandes projetos agroindustriais e para abraçar o livre comércio como uma política de Estado. Um quarto da população ainda continua abaixo da linha da pobreza, ao passo que a seguridade social está cada vez mais imbricada aos interesses privados.

As mudanças ocorridas nos últimos três anos apenas aceleraram um processo de concentração da riqueza que já funciona há 140 anos. Houve, sem dúvidas, alguns freios postos ao crescimento da desigualdade, que, no entanto, puderam ser desbaratados sem muito esforço. E o futuro, nesse sentido, não parece ser muito promissor.

*A tradução é do Cepat.