Agricultura urbana, ativismo e direito à cidade

As hortas urbanas são pequenas revoluções pacíficas que introduzem novas vivências no espaço urbano e avançam na conquista do direito à cidade.

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Por Giulia Giacchè, Gustavo Nagib e Lya Porto*
Da Carta Maior

1973: o ano parecia de colapso mundial. A Guerra do Yom Kippur e a Crise do Petróleo abalaram a economia global e impuseram a necessidade de reflexão sobre o uso excessivo e a grande dependência planetária de uma fonte de energia não renovável e extremamente poluente.

Naquele mesmo ano, em Nova York, a artista e ativista Liz Christy resolveu reunir uma galera amiga para agir sobre um terreno abandonado do bairro de Lower East Side, que fora vítima da fuga da classe média para as periferias “verdes” e “seguras” onde o automóvel chegaria facilmente. Liz e seus companheiros criaram um jardim comunitário. Assim nascia o movimento que ficaria conhecido como “guerrilha verde” (“green guerrilla”), cujas armas seriam ferramentas do bem: em vez de destruição, fortalecimento comunitário. Nada de explosivos, mas terra boa recheada com sementes de alimentos e flores, mudas saudáveis, abelhas sem ferrão, integração social e uma solução real para a crise urbana.

Nestes 42 anos, as hortas comunitárias urbanas pipocaram pelo mundo inteiro. Estas pequenas revoluções pacíficas introduzem novas leituras e vivências ao espaço urbano e avançam na conquista efetiva do direito à cidade. Esta passou a ser vista, definitivamente, como espaço fundamental para a produção de alimentos.

Em São Paulo, a agricultura urbana é, sem dúvida, mais uma solução para enfrentarmos as crises pelas quais temos passado em decorrência de nosso questionável planejamento, que resultou em especulação imobiliária e ingratidão socioambiental.

As avenidas em fundos de vale; a absurda ocupação das várzeas por vias expressas; a cidade do automóvel; os condomínios fechados com seus extensos muros e gramados internos nos arredores da grande metrópole; a insuficiência de transporte público sobre trilhos; a poluição atmosférica, das águas e dos solos; o consumismo exacerbado; a constante falta de tempo e todas as demais mazelas que já parecem fatos “normais” comprovam que o modelo adotado fracassou. Este modelo nos conduziu aos colapsos atuais.

O mundo do petróleo e dos conflitos armados anunciavam suas duríssimas consequências em 1973. Um dos caminhos para a passagem do “consumir a cidade” ao “viver a cidade” também já se anunciava 42 anos atrás. Se modelos violentos detonaram tentativas de harmonia urbana, teriam de brotar novas revoluções tranquilas, encontrando soluções democráticas e solidárias para dar a volta por cima.

A agricultura urbana é uma das atividades que busca melhor “viver a cidade” e compartilhar os seus espaços públicos, tal como as manifestações das artes de rua, a presença das bicicletas e tantas outras. Nos últimos anos, houve uma significativa ascensão da articulação desses movimentos com o intuito de transformar a cidade. No que tange ao ativismo em prol da agricultura urbana, o Movimento Urbano de Agroecologia de São Paulo (MUDA-SP), os Hortelões Urbanos, o Movimento Horta di Gueto e as diversas hortas comunitárias que nasceram articuladas a estes coletivos e redes são alguns exemplos importantes nesta segunda década do século XXI.

Ainda assim, toda mudança necessita de um tempo para assimilação e incorporação social e para sua integração nas políticas públicas, a fim de evidenciar reais transformações na estrutura da sociedade e no espaço urbano.

As hortas comunitárias em São Paulo são exemplos de práticas inovadoras que buscam democratizar o uso do espaço de maneira a “derrubar os muros” da segregação social e do individualismo. Várias são as experiências coletivas e hortícolas criadas ao longo dos anos. Mas, agora, também é preciso atentar àquelas que nasceram do ativismo urbano com a ocupação do espaço público, na maioria das vezes abandonado, para criar uma área verde agregável onde se partilham experiências e se cultivam alimentos.

Mas nem tudo são flores. Ainda existe a oposição daqueles que estão ancorados nas estruturas sociais da diferença e da segregação. Ao mesmo tempo, é preciso praticar o desapego aos bens materiais e desejar uma nova forma de vivenciar o espaço público de uso coletivo, onde as diferenças podem se manifestar e se interagir democraticamente.

Qual é o significado de plantar uma muda, de regá-la, de acompanhar seu desenvolvimento e, enfim, deixar que uma outra pessoa qualquer colha seu fruto para comer? Os hortelões urbanos poderiam dar inúmeras respostas diferentes que justifiquem suas motivações. Os ativistas da Horta do Ciclista, na Avenida Paulista, por exemplo, afirmam que plantar e cuidar de um espaço público de uso coletivo no coração da cidade pode ser uma terapia para relaxar da estressante rotina paulistana e uma conexão com a natureza, melhor compreendendo como são os ciclos das plantas e o significado de produzir os alimentos. Trata-se de um aprendizado coletivo sobre as funções e os usos do espaço público, onde há trocas de experiências entre moradores da vizinhança, trabalhadores dos escritórios próximos, moradores de rua e dos transeuntes em diferentes circunstâncias: nos mutirões, nos turnos de rega, na colheita de alguma hortaliça ou mesmo nos bate-papos cotidianos.

Ser uma hortelã ou um hortelão urbano é muito mais que plantar e produzir alimento na cidade. É acreditar que há outra maneira de se relacionar com os espaços públicos, com todas as pessoas que moram na cidade e com a alimentação de seus milhões de habitantes. Talvez nem todos queiram se engajar em defesa da agricultura urbana, mas, sem dúvida, ela é uma das soluções possíveis para a crise metropolitana em que vivemos.

2015: em novembro, Brasília realizará a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, cujo lema é “Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar”. Esperamos que a agricultura urbana, em todas as suas categorias e concepções, seja muito bem contemplada durante a conferência. E que São Paulo tenha sempre água limpa disponível para todos; respire um ar melhor; conviva com as diferentes maneiras de ser e de pensar; viva democraticamente suas ruas, parques e praças; desça do automóvel; e que seja, enfim, comestível!

*Giulia Giacchè, Gustavo Nagib e Lya Porto são membros do Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU).