Os maus efeitos do atraso na execução da reforma agrária
Por Jacques Távora Alfonsin
Do Instituto Humanitas Unisinos
A Associação Brasileira da Reforma agrária reuniu em Brasilia dias 15 e 16 deste julho, representantes de diversos movimentos populares para fazer uma análise das razões pelas quais a implementação da política pública de reforma agrária, reivindicada há tanto tempo pelo povo pobre sem-terra como condição necessária de defesa da vida, da terra, da partilha igualitária dos seus frutos, da preservação do ar, das águas, das florestas e de todo o meio-ambiente, vem sendo prorrogada ilegal e injustamente, já que prevista na própria Constituição Federal.
Tendo como eixo principal a análise conjuntural da reforma agrária e a necessidade de sua implementação como garante de soberania e segurança alimentar, inclusive pelo respeito devido à função social e ambiental da propriedade, os debates não ficaram restritos apenas ao lamento próprio de tudo quanto não se faz em defesa dos direitos humanos fundamentais à terra do grande número de brasileiras/os com direito a este acesso.
Ao lado daquelas conhecidas razões de bloqueio da reforma, do tipo a exagerada concentração da propriedade da terra (1% dos/as proprietárias/os rurais açambarcando mais de 45% dos imóveis aptos à produção agrícola e pecuária, em grande parte grilados), o peso do poder político contrário, representado pelos latifundiários, os efeitos disso no Congresso Nacional, patrocinados pela bancada ruralista, o extraordinário atraso na atualização dos índices de produtividade das terras, a lerdeza do Judiciário em dar andamento às desapropriações, o encontro tratou de encaminhar novas iniciativas populares para empoderar a urgente e necessária implementação dessa reforma como condição de continuidade da nossa crescente libertação da fome e da miséria.
O que tem de se medir, em matéria de garantias devidas aos direitos humanos fundamentais violados pelo atraso da reforma agrária, não é o que a produção da terra rende em dinheiro, mas sim o que ela alcança em satisfazer as necessidades vitais de alimentação e moradia do povo pobre sem-terra e sem-teto no Brasil. O fato de a agricultura familiar ser muito mais eficaz nesse trabalho, é um indicativo claro de a partilha equitativa do nosso solo não continuar a mercê do crescimento ilimitado da sua concentração privada. Não pode ser o que a terra rende em dinheiro, exclusivamente, como pretende o agronegócio, especialmente o exportador, reduzindo-a a simples mercadoria, a razão motivadora e predominante do seu uso.
Essa é uma pretensão de se impor ao nosso território uma segunda natureza, feita apenas de pecúnia, tão estranha a ele como os venenos que esse tipo de exploração obrigam-no a ingerir, exatamente para que o preço da sua exploração não lhe permita nenhuma outra finalidade humana.
A recente encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, inspirou grande parte dos debates. O pouco peso representado pelo respeito devido ao meio-ambiente que, nas decisões administrativas e judiciais sobre reforma agrária, integra a comprovação de cumprimento, ou não, da função social da propriedade, foi comparado com várias passagens da nova encíclica, aí se constatando como o tratamento da terra brasileira carece de uma profunda reforma agrária para ser reconhecido como a “casa comum” aconselhada pelo Papa:
“O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para administrá-la em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existência aos outros. Por isso, os bispos da Nova Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o mandamento «não matarás», quando «uns vinte por cento da população mundial consomem recursos numa medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver.
O uso nocivo da terra aí denunciado, portanto, o que descumpre sua função social, o papa acusa de roubar e matar. Para quem criminaliza, com tanta leviandade, os movimentos populares que se insurgem contra esses crimes, a advertência constitui uma evidente defesa dessa inconformidade.
O encontro promovido pela ABRA não esteve alheio, também, às iniciativas daquela porção do eleitorado brasileiro descontente com a derrota que sofreou nas eleições passadas, insistindo em ganhar pela força o que perdeu nas urnas. Embora seja certo que o governo do país praticamente abandonou a implementação da política pública de reforma agrária, mesmo se reconhecendo o esforço do atual ministro do Ministério de Desenvolvimento agrário em retomar a execução dela, cumprindo o determinado pela Constituição e pelo Estatuto da Terra, isso não leva o povo sem-terra e suas lideranças a engrossar o coro golpista do “fora Dilma” e do retorno da ditadura.
Por mais profunda que seja a crise pela qual passa o país atualmente, se for verdade o encontro mantido dia 14 deste julho entre Eduardo Cunha e Gilmar Mendes, para “avaliar impeachment da presidente”, como a Folha de São Paulo de 14 deste julho noticia, a interrupção de um regime democrático, ainda novo e frágil como o nosso, tenderia mais do que atrasar, sepultar o seu histórico empenho em sustentar um Estado efetivamente de direito e de um direito efetivamente democrático.
Melhor fariam, o primeiro, em não atropelar os trabalhos legislativos a seu arbítrio, e colocar em votação apenas os projetos que interessam a quem financiou a sua campanha ou apóia o seu credo, e o segundo, devolver ao plenário do Supremo a ação judicial que procura barrar a imoralidade inerente ao financiamento privado de candidatos e partidos legalmente habilitados às eleições periódicas pelas quais o povo procura se defender de conversas como a que, segundo a referida notícia, serviu de motivo para o encontro de ambos.