Carta aberta dos atingidos pela mineração reunidos no Vaticano

Em encontro o Papa Francisco descreveu o contexto dos conflitos mineiros com extrema lucidez e empatia.

 

Do Combate ao Racismo Ambiental

 

Entre ops dias  (17 e 19/07), realizou-se em Roma o encontro de representantes de comunidades atingidas por atividades mineiras, organizado pelo Pontifício Conselho de Justiça e Paz (PCJP) em colaboração com a rede latino-americana Iglesias y Minería, com o tema “Unidos a Deus escutamos um grito”.

Participaram lideranças de 18 países do mundo: Chile, Peru, Brasil, Colômbia, Honduras, Guatemala, El Salvador, República Dominicana, México, Estados Unidos, Canada, Suíça, Itália, Moçambique, Ghana, República Democrática do Congo, Índia e Filipinas.

Foi um encontro fortemente esperado por nossas comunidades, que estão se organizando progressivamente para denunciar as graves violações aos direitos humanos que sofrem pela destruição e contaminação do meio ambiente, os danos à saúde, as divisões comunitárias, o desenraizamento dos territórios, as enfermidades, a perda da cultura, a prostituição, o alcoolismo e o uso de drogas, a perda da economia local e as vinculações com o crime organizado que são criadas pela indústria mineira. De maneira que as comunidades também se organizam para estabelecer estratégias comuns de resistência e alternativas.

“Objetivo desse encontro é reconhecer sua dignidade”, afirmou o cardeal Turkson, presidente do PCJP. Papa Francisco definiu-a “a imensa dignidade dos pobres” (Laudato Sí – LS 158).

A Igreja Católica está deparando-se cada vez mais com a gravidade dos impactos da mineração, ferida profunda no seio da terra e das comunidades e expressão da “única e complexa crise socioambiental” (LS 139).

Papa Francisco, em sua carta aos participantes do encontro, descreveu o contexto dos conflitos mineiros com extrema lucidez e empatia:

“Quiseram se reunir (…) para ecoar o grito das numerosas pessoas, famílias e comunidades que sofrem direta ou indiretamente por causa das consequências muitas vezes negativas das atividades mineiras. Um grito pela extração de riquezas do solo que paradoxalmente não produziu riquezas para as populações locais que permanecem pobres; um grito de dor em reação às violências, ameaças e corrupção; um grito de indignação e ajuda pelas violações de direitos humanos, discreta ou descaradamente pisados pelo que se refere à saúde das populações, às condições de trabalho, por vezes à escravidão e ao tráfico de pessoas que alimentam o trágico fenômeno da prostituição; um grito de tristeza e impotência pela poluição das águas, do ar e dos solos; um grito de incompreensão pela ausência de processos inclusivos e de apoio por parte das autoridades civis, locais e nacionais, que têm o dever de promover o bem comum”.

O Card. Turkson concluiu o evento comunicando às comunidades: “Estamos cientes de seu isolamento, da violação de direitos humanos, da persecução, do desequilíbrio de poder…”.

O sofrimento das comunidades teve, através desse encontro, uma preciosa divulgação e visibilidade frente à opinião pública mundial.

Refletindo sobre a Doutrina Social da Igreja, nós participantes chegamos à conclusão que a Igreja não pode ser uma mediadora neutra entre as comunidades e as empresas. “Onde há tantas desigualdades e são tantas as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres” (LS 158).

As afinidades de nossas denúncias revelam que há práticas repetidas por parte das empresas em todas as latitudes, frequentemente em aliança com os governos nacionais e locais e com uma forte incidência e lobby das mineradoras em todos os espaços de poder: através da elaboração de leis prejudiciais à vida, buscam proteger seus projetos operacionais e interesses de lucro.

Com essa desproporção de forças e influências e com a falta de um adequado acesso à justiça e à informação, mantendo-se uma forte criminalização do protesto social, é praticamente impossível que haja um diálogo respeitoso e atento das empresas e governos para com as exigências dos mais pobres. Em sua encíclica, Papa Francisco recomenda fortemente “grandes percursos de diálogo”, mas os vincula todos a responsáveis processos políticos e decisórios em nível internacional, nacional e local (LS 164-198). Esse é o nível que podemos e queremos potencializar, com a determinante postura do Pontifício Conselho de Justiça e Paz.

Expressamos também nossa preocupação a respeito da estratégia de aproximação das grandes corporações mineiras à Igreja institucional, ressaltando as contradições entre os discursos realizados em Roma por essas multinacionais e suas práticas locais, que continuam na maioria dos casos a violar os direitos humanos nos territórios.

Nesse sentido, ressoam ainda mais fortes as palavras que Papa Francisco escreveu-nos por ocasião do encontro: não se trata de buscar pequenos ajustes de conduta ou elevar um pouco os padrões da assim chamada “responsabilidade social corporativa”. Ao contrário, diz o Papa, “o inteiro setor minerário está sem dúvida chamado a realizar uma mudança radical de paradigma para melhorar a situação em muitos países”.

Celebramos esse encontro porque o grito de socorro das comunidades está sendo escutado e está cada vez mais se organizando. Mas sentimos também o desafio de garantir os direitos humanos e o protagonismo das pessoas em seus territórios: “os novos processos em gestação (…) hão de ser provenientes da própria cultura local” (LS 144).

Aguardamos com muito interesse o documento que o Pontifício Conselho de Justiça e Paz redigirá, com reflexões e indicações a respeito dos conflitos provocados pelas atividades de mineração. Esperamos seja um documento pastoral: poderá de um lado reforçar e empoderar as comunidades confirmando sua dignidade e seus projetos de vida, do outro recomendar às igrejas locais a importância de educar ao cuidado da Mãe Terra, defender as vítimas dos conflitos e da criminalização, promover políticas e ações institucionais a proteção dos direitos socioambientais, bem como serem vigilantes na relação com as empresas.

Sugerimos ao PCJP que, em seu encontro com os empresários das grandes mineradoras, confirme de maneira contundente a solicitação de vários outros povos e organizações do mundo: avançar na definição do Tratado Vinculante sobre Empresas e Direitos Humanos, atualmente em construção na ONU.

Consideramos que o caminho mais adequado para a gestão dos conflitos entre as comunidades que reivindicam seu direito ao território e os projetos das empresas, com o aval dos estados, seja o total respeito dos direitos humanos e das leis e tratados já existentes, bem como a definição de novos consistentes instrumentos regulatórios, políticos, jurídicos e econômicos, tanto em nível nacional como internacional (LS 177); “mas, no debate, devem ter um lugar privilegiado os moradores locais, aqueles mesmos que se interrogam sobre o que desejam para si e para os seus filhos e podem ter em consideração as finalidades que transcendem o interesse econômico imediato” (LS 183). As comunidades têm o direito de dizer ‘não’ à mineração.

Nesse sentido, reforçamos a importância de garantir áreas livres da mineração. Trata-se de regiões de especial proteção ecológica, comunidades em territórios pequenos que seriam atropeladas por gigantescos projetos mineiros, espaços sagrados onde se celebram a história de um povo e sua cultura, áreas de particular beleza natural ou onde vivem comunidades que já foram removidas anteriormente, entre outras.

O card. Turkson nos garantiu que esse encontro representa mais uma etapa de um longo compromisso do Conselho Pontifício: “Não é só o Vaticano que escuta o grito das vítimas. Também os bispos o fazem. Encorajaremos os bispos locais a ficar mais próximos às comunidades atingidas”.

Agradecemos a Igreja Católica por escutar o grito dos atingidos pela mineração e queremos continuar a caminhar com esperança “para que venha o Reino de justiça, paz, amor e beleza”.

 

Roma, 28 de julho de 2015