Manifestações públicas de protesto não são terrorismo
Por Jacques Távora Alfonsin
A Câmara dos Deputados prevê discussão e possível votação, no dia 11 deste agosto, do projeto de lei nº 2016/2015, de autoria do Poder Executivo, que trata de “dispor sobre organizações terroristas”, conforme uma redação substitutiva apresentada pelo seu relator, o deputado Arthur Oliveira Maia.
Os debates em torno da melhor redação da projetada lei vão desde uma grande desconfiança sobre possíveis abusos da autoridade policial ou judiciária no enquadramento de tudo quanto possa ser considerado terrorismo, até as defesas nela previstas como expressamente excludentes dessa possibilidade. Não seria demais se acrescentar a suspeita da época escolhida para uma tal iniciativa, ainda mais se considerando os preparativos dos protestos massivos deste agosto, pró e contra governo, atualmente circulando nas redes sociais.
Em todo o caso, tanto na mensagem enviada pelos ministros José Eduardo Martins Cardozo e Joaquim Vieira Ferreira Levy à presidenta da Republica, propondo a remessa do projeto ao Congresso, quanto na redação do substitutivo, houve exclusão expressa de certas manifestações públicas e massivas como passíveis de serem enquadradas como atos de terrorismo.
No número 8 da mensagem dos ministros à presidenta, sublinham eles a existência, na redação do projeto, de “uma causa excludente para as manifestações políticas, sociais ou sindicais” (…), objetivando “defender ou buscar direitos, garantias e liberdades individuais.”
O substitutivo apresentado pelo relator confirma isso, pois, quando detalha, em seu artigo 2º, inciso II um dos atos previstos como prática de terrorismo – “provocar terror, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública e incolumidade pública”, abriu uma exceção no parágrafo 2º do mesmo artigo, para determinar:
“O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.”
Se existe um risco de, se for transformado em lei esse projeto, alguma interpretação futura, administrativa ou judicial, abusar da sua letra e também enquadrar aí a prática do terrorismo, não há como garantir defesa segura.
Perigo, como outras palavras da lei, como “ameaça”, “iminência”, está muito sujeita a um modelo interpretativo moldado à cultura, à ideologia, aos costumes, à tradição, aos “precedentes legais, jurisprudenciais, doutrinários” e até ao lugar social ocupado pela/o intérprete da lei.
Ressalvado nosso desconhecimento, pelo menos no âmbito do Direito Civil, não existe sentença nem decisão administrativa reconhecendo como provada a existência do “perigo iminente” previsto no artigo 188, inciso II do Código Civil, de quem está com fome ou nem tem casa onde se abrigar. Pessoas nessa situação não estão sofrendo de uma privação sem remédio, se não for removida? – A lei diz que sim, pois ela não permite ser condenada como praticando um ato ilícito uma pessoa forçada, coagida por necessidades não satisfeitas a um tal nível, promover “a deterioração da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente”, desde que, conforme diz o parágrafo único do mesmo artigo 188 “as circunstâncias” tornarem “absolutamente necessário” esse ato.
Autoridades judiciárias ou administrativas podem e devem ter plena consciência disso, a lei processual permitindo até a inspeção judicial como forma de prova desse drama humano tão presente em nosso país. Quem se acha com direito ao “auxílio moradia”, por exemplo, sabe bem o sentido e a referência do que seja uma casa. Não haverá nessa vantagem excepcional, extraordinária, reveladora de um comprovado privilégio, um motivo a mais para se julgar como excluídos de ilicitude atos de desespero como os que ocorrem em muitos conflitos fundiários urbanos e rurais do Brasil?
A diferença entre o tratamento dado pelo Poder Público a essas lides inerentes ao nosso sistema socioeconômico, opondo direitos patrimoniais a direitos sociais constitui-se, lamentavelmente, um fato notório. É bem pouco provável reconhecer-se como aterrorizada uma pessoa faminta ou sem teto, embora o clamor da própria natureza o comprove. É muito pouco provável porém, de outra parte, imaginar-se o indeferimento, por um despacho judicial liminar, seja dado à uma ação de interdito proibitório proposta por um latifundiário alegadamente ameaçado de ter a sua terra ocupada por multidão pobre, desprovida dos mais elementares meios de vida como são os de alimentação e moradia.
Existem terrores e “terrores”, portanto. Quem os julga nem sempre adverte o seu próprio discernimento sobre a necessidade de distinguir uns dos outros. Espera-se que, transformado em lei o projeto de lei nº 2016/2015, essa ausência de cuidado não desrespeite a exclusão expressa dos protestos públicos e massivos motivados pela ameaça e até pela violação de direitos humanos fundamentais sociais, por ele previstos, para tratá-los como têm sido tratados, em sua maioria, os conflitos fundiários no Brasil.
Pior do que considerar terrorismo aquelas manifestações de protesto é desconsiderar como terroristas certas aplicações de lei indiferentes à pobreza e à miséria de todo aquele contingente do povo brasileiro, até hoje penando o injustificável atraso das reformas agrária, urbana, política e tributária, sem as quais o país prossegue vítima das crises sucessivas que nos mantêm reféns de uma situação permanente de desigualdade social, insegurança, incerteza, infidelidade à própria Constituição Federal e, consequentemente, sujeita à qualquer daqueles terrores.