‘Não é preciso violar direitos para combater a ameaça terrorista’

Há o temor de que a nova lei, caso chancelada pela Câmara e sancionada por Dilma, possa ser usada para perseguir manifestantes e movimentos sociais, como ocorreu em outras nações da América Latina.
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“Leis antiterrorismo muito ambíguas ou abertas têm sido utilizadas contra movimentos sociais”, diz Lanza

Por Rodrigo Martins
Da CartaCapital

Os recentes atentados em Paris frustraram as expectativas dos grupos que reivindicam a retirada do regime de urgência do projeto de lei para tipificar o crime de terrorismo no Brasil. Aprovado pelo Senado no fim de outubro, o texto é criticado por especialistas por ter uma definição ambígua e demasiadamente ampla de conduta terrorista. De quebra, há o temor de que a nova lei, caso chancelada pela Câmara e sancionada por Dilma Rousseff, possa ser usada para perseguir manifestantes e movimentos sociais, como ocorreu em outras nações da América Latina.

A Organização dos Estados Americanos comunga dessa preocupação. “Leis antiterrorismo muito ambíguas ou abertas têm sido utilizadas para criminalizar movimentos sociais no continente. A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Chile, em 2014, por usar sua lei antiterror contra ativistas do povo indígena Mapuche”, lembra o advogado e jornalista uruguaio Edison Lanza, relator especial da OEA para a Liberdade de Expressão.

“A definição que está sendo construída no Brasil usa termos complicados, como extremismo político, ocupação de prédios públicos e apologia ao terrorismo. Por sua amplitude, pode capturar expressões legítimas, eventualmente muito contrárias a um governo ou muito críticas contra o sistema, mas que são manifestações protegidas pelo direito à liberdade de expressão e de associação”.

Eis a entrevista.

O senhor acredita que o projeto de lei que tipifica o crime de terrorismo no Brasil pode, de fato, representar uma ameaça aos movimentos sociais e manifestações?

Há interesses legítimos dos Estados em ter ferramentas para combater o terrorismo, fenômeno que preocupa os governos e as sociedades. Por outro lado, leis antiterrorismo muito ambíguas ou abertas têm sido utilizadas para criminalizar movimentos sociais no continente. A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Chile, em 2014, por usar sua lei antiterror contra ativistas do povo indígena Mapuche.

A definição que está sendo construída no Brasil usa termos complicados, como extremismo político, ocupação de prédios públicos e apologia ao terrorismo. Por sua amplitude, pode capturar expressões legítimas, eventualmente muito contrárias a um governo ou muito críticas contra o sistema, mas que são manifestações protegidas pelo direito à liberdade de expressão e pelo direito à liberdade de associação.

O que ocorreu exatamente no Chile?

Aconteceram protestos de indígenas que resultaram em algumas ações de violência. Mas a Corte Interamericana ponderou: não é porque alguns manifestantes tiveram uma atitude violenta que o protesto tornou-se ilegítimo, tampouco isso habilita o Direito Penal a atuar de forma desproporcional. Uma lei antiterror não pode se sobrepor à liberdade de expressão.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, estabelece em seu artigo 13.2 quais são as restrições legítimas à liberdade de expressão. E quando lidamos com o Direito Penal, precisamos ser muito claros e precisos sobre a conduta que estamos criminalizando. Além disso, essa ação precisa se pautar pelos legítimos interesses da sociedade democrática e devem ser proporcionais para cumprir com a finalidade pretendida, que é o combate ao terrorismo.

Não estamos em um Estado de Exceção permanente. Estamos falando de sociedades democráticas. Devemos atingir estritamente os grupos que usam o terror para devastar uma sociedade, mas isso não se aplica aos grupos que protestam contra a decisão de um governo ou que apresentem reivindicações, mesmo que esses protestos tenham condutas incômodas, como ocupar praças, ruas ou serviços públicos. São manifestações legítimas que devem chamar ao diálogo, e não ensejar uma resposta penal.

Existe algum consenso na comunidade internacional sobre o que é terrorismo ou que pode ser considerada uma conduta terrorista?

É um conceito difícil, mas há alguns padrões que podem ajudar a delimitá-lo. Em primeiro lugar, acredito ser necessário haver uma ameaça real e iminente de um ataque que coloque em risco a segurança das pessoas e das instituições democráticas. E não uma série de atos abertos ou supostamente preparatórios. O Brasil, a exemplo dos demais países da América Latina, não vive uma situação de exceção frente ao problema do terrorismo, como ocorre em alguns países europeus.

Não se justifica, em nome de um perigo hipotético, criar normas ambíguas que podem capturar condutas legítimas em uma democracia, como dissentir ou mesmo questionar o sistema. As ideias anarquistas ou socialistas, por exemplo, não podem ser sufocadas. Diferentes doutrinas econômicas e sociais têm espaço para serem debatidas pela sociedade. O mesmo vale para os conflitos sociais existentes, decorrentes de disputas por terra, de questões ambientais, de acesso à educação, entre outras. Não podemos confundir esses casos com terrorismo.

O projeto em discussão no Brasil favorece esse tipo de confusão?

O que preocupa é a ambiguidade dos termos usados. Falar em atentado motivado por extremismo político, por exemplo. Imagine a cena: durante um protesto um manifestante atira uma bomba contra a fachada de um edifício do governo. De fato, é uma ação extremista, que gera dano ao patrimônio. Mas podemos dizer que ele era um terrorista? E as demais pessoas que participavam da manifestação? Faziam apologia ao terrorismo? São definições perigosas. O mesmo vale para os trechos do projeto de lei que tratam da preservação de serviços essenciais, instalações militares ou edifícios públicos e privados.

A sociedade democrática precisa ter algum grau de tolerância para não cair em uma repressão desmedida. Danificar a porta de um prédio é delito menor, não justifica o uso da força contra todos os manifestantes nem pode ser comparado ao terrorismo. Já passamos na América Latina por muitas dores de cabeça decorrentes dessa interpretação ampla de terrorismo e segurança nacional. Não faz sentido, após algumas décadas de retorno à democracia, voltarmos a confundir manifestações legítimas com atos terroristas.

O senhor acredita que os recentes atentados praticados pelo Estado Islâmico em Paris podem tumultuar ainda mais esse debate?

Infelizmente, sim. Atos lamentáveis, como os ataques em Paris ou os atentados de 11 de setembro de 2001, suscitam medidas excepcionais, que podem tornar vulneráveis direitos fundamentais, como a privacidade das comunicações ou a livre circulação das pessoas. Devemos estar alertas. Não podemos atentar contra a democracia sob a justificativa de protegê-la, esse é o jogo dos terroristas. Medidas excepcionais precisam estar claramente definidas, com um período de tempo delimitado, prestação de contas e garantias do devido processo legal. Se não houver controle, haverá abusos. Os organismos de segurança podem agir com mais inteligência, com agentes infiltrados, com ações de espionagem. Isso é mais efetivo do que vigiar as comunicações de todas as pessoas. Não é preciso violar os direitos humanos para combater a ameaça terrorista.