No grande sertão, Comissão da Verdade busca as origens das injustiças fundiárias
Por Ana Mendes (texto e fotos)
Da Revista do Brasil
Tiros na boca da noite. Em 1967, um grupo de camponeses no sertão mineiro resolveu resistir e lutar pela terra. Seis foram assassinados. “A gente só queria trabalhar, tudo trabalhador”, conta Ursulino Pereira Lima, o seu Sula, hoje com 94 anos. Além dele, restam poucos para narrar os fatos do episódio que ficou conhecido como o Massacre dos Posseiros de Cachoeirinha, em Verdelândia, norte de Minas Gerais. O velho Jadé de Paula, estirado na cama, com câncer de estômago, quer falar, mas só lhe sai uma palavra por vez – o que cabe em uma tragada de ar. Tinha polícia fardada lá? “Muita.” Jadé morreria dois dias depois de conversar com a reportagem, em 3 de setembro. Mas sua história está agarrada. Enraizou.
Em meio à luta no campo, Jadé e Íris tiveram filhos. Antônio de Paula, de 60 anos, é um deles. Antônio, por sua vez, conheceu Dinalva, e mesmo sob condições adversas tiveram Gustavo. Gustavo Prates Santos tem hoje 25 anos e está com uma bala alojada perto do pulmão. Isso porque com o seu pai e 180 famílias ele reivindica o território quilombola Nativos do Arapuim, que está sobreposto às terras de um latifundiário, nas cercanias da região em que seu avô lutou há mais de 50 anos. O percurso individual desses três homens é representativo do próprio fluxo da história, cíclico. A linha do tempo, que atravessa essas gerações, não é reta, crescente e irrepetível, ela é helicoidal. Infelizmente, a história se repete. E, no caso da questão agrária brasileira, é uma espiral de violência.
Em 2016, a Comissão da Verdade do Grande Sertão, sediada em Montes Claros, começará a trabalhar. Entre os assuntos a serem pesquisados estão os casos de violações no campo. Em nível nacional, ainda é bastante incipiente a organização dessas informações. No final de 2014, a Comissão Camponesa da Verdade (CCV) lançou o primeiro relatório apontando cerca de mil casos, mas sabe-se que há muitos mais.
Sobre a questão indígena, quem se encarregou de concentrar os dados foi a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Nesse aspecto, já existem alguns avanços – o maior foi a anistia dada a 13 indígenas Akeiwara, conhecidos também como Suruí do Pará. Eles passaram a receber indenizações em 2014, pois no período ditatorial foram coagidos a trabalhar para os militares na caçada aos guerrilheiros que se escondiam na região do Araguaia e entorno.
Uma população indígena inteira agonizou durante a famosa Guerrilha do Araguaia. Quem sabe disso? As histórias começam a vir à tona sob um ponto de vista marcadamente incomum, o lavrador rural, por vezes analfabeto, o ribeirinho, o indígena e o quilombola querem contar o que viveram, eles também precisam desenredar os fios da memória.
Entender o momento
É por isso que a comissão que se configura no sertão mineiro, descentralizada dos grandes centros urbanos, vai ajudar a avançar no desenho de um panorama nacional. Algumas histórias já muito conhecidas na região, como o Massacre dos Posseiros de Cachoeirinha (que começou em 1967 e se arrastou por anos – a terra foi homologada apenas em 2014) e o caso de Saluzinho, também em 1967, o posseiro que resistiu durante seis dias dentro de uma gruta, serão revistos. E outras mais aparecerão. É no que acredita Cícero Lima, presidente da Associação Vazanteiros em Movimento: “Nós achamos que essa é a oportunidade de ajudar. Queremos descobrir outros casos para minimizar o que o aconteceu e o que vai acontecer. Sabemos que não há condições de parar (as violações), mas ao menos o povo tá sabendo que existe”.
Revisitar essas e outras histórias ocorridas na época da ditadura tem esse teor: entender o momento atual. “A gente tenta tirar o peso do revanchismo, mas tem sim um acerto de contas histórico a ser feito”, diz a advogada Maria Tereza Carvalho, uma das coordenadoras da Comissão da Verdade do Grande Sertão. A política de distribuição de terra da ditadura, dita reforma agrária, criou latifúndios Brasil afora, e em Minas Gerais não foi diferente. “Se a gente tem hoje fazendeiro dentro de área quilombola, fazendeiro dentro de terra indígena e posseiros que foram expulsos das suas terras, esse período, que compreende os anos 60 e 70, foi essencial pra isso”, explica.
O programa de governo da época, aparentemente, era até “progressista”. Prometia distribuir terras devolutas para pequenos agricultores. Na prática, não foi nada disso. As populações tradicionais e os camponeses pobres viram-se coagidas a entregar sua casa a troco de nada à elite latifundiária. Em Rondônia, no Pará e em outros tantos estados foi assim. A Minas Gerais chegaram ainda levas de gaúchos, financiados pela Fundação Rural Mineira para plantar soja.
Daniel Gomes Ferreira, 47 anos, é o filho mais novo de Saluzinho. A história de seu pai ficou famosa: Salustiano Gomes Ferreira permaneceu vivo escondido em uma pequena gruta durante quase uma semana, em 1967, sem dormir e sem comer, enquanto a polícia jogava bombas de gás e todo tipo de explosivo lá dentro. Ele deu apenas quatro tiros e só saiu quando lhe deram a garantia de que não o matariam. Dizem que o cheiro de gás que exalava de seu corpo causou náusea ao médico que o esperava, na boca da gruta, para prestar atendimento.
Saluzinho passou cerca de quatro anos encarcerado como preso político no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Belo Horizonte. Durante esse período aprendeu a ler um pouco mais e ampliou sua noção sobre direitos humanos. Antes, ele era um posseiro valente e indignado. “Era difícil naquele tempo falar em direito, pobre não tinha direito. Hoje, graças a Deus, nós estamos aqui falando com vocês. Isso é uma honra. Naquele tempo não tinha isso, era bala, cadeia e porrete”, diz Daniel. A história de seu pai tornou-se livro, Saluzinho, Luta e Martírio de um Bravo, escrito (2014, Editora D’Placido) pelo jornalista mineiro Leonardo Alvares da Silva Campos, que traz um apanhado de recortes de jornais com diversas versões sobre o ocorrido.
Essa história já foi fartamente contada – Saluzinho viveu até 2007. Ele mesmo pôde narrar os fatos. Ainda assim, Daniel é um verdadeiro achado da Comissão da Verdade do Grande Sertão, porque ele quer virar o holofote para a história da mulher de Saluzinho, sua mãe. Enquanto o marido estava preso, Dulce Gonçalves de Araújo definhava. Morreu alguns meses depois, em decorrência de torturas. A mesma polícia que lutava na gruta contra Salu pendurou-a de cabeça pra baixo, nua, queimou o bico dos seus seios e introduziu galhos de árvore em seu ânus.
Depois de tudo isso, a alma da mulher adoeceu. O corpo logo se entregou também. Daniel era muito pequeno, mas lembra. “Eu lembro de minha mãe como um sonho. Ela era muito calada, não era de muitas palavras.” Daniel não é mais o menino de 4 anos que perdera a mãe, mas os olhos marejam como se fosse. Revirar as poucas lembranças que tem é uma missão, desde que seu irmão morrera, há cerca de quatro meses. “Se eu não for atrás disso, nunca vou saber o que aconteceu. Eu sou o último. Se eu não falar, a história vai morrer comigo.” Quando é questionado sobre o local do túmulo de Dulce, Daniel tem os olhos verdes inundados outra vez. “Não sei.”
Retomadas
Os acampamentos Mãe Romana, em Matias Cardoso, e Santa Fé, em São João da Ponte, são dois exemplos do que está acontecendo aos montes hoje no sertão mineiro. São as chamadas retomadas. Grupo de populações tradicionais estão retomando para si o local de onde foram expulsos os seus parentes durante os anos 1960 e 1970. Quilombolas, vazanteiros, geraizeiros e outros povos tradicionais estão ocupando fazendas em busca de permanecer no território ancestral. O momento é de ebulição.
“Quando fazemos os relatórios antropológicos entramos nessas fazendas e eles vão apontando ‘aqui tá enterrado fulano’, ‘aqui acontecia tal coisa’, então, fazemos o levantamento do que chamamos de marcos de territorialidade. A historicidade está marcada no espaço que eles ocupavam e que foi expropriado nos anos 60 e 70. Em decorrência de estarem próximos aos seus territórios, ao se reconhecerem no artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias, nos artigos 215/216 da Constituição, esse pessoal partiu pra luta”, relata o antropólogo e professor da Universidade Estadual de Montes Claros, João Batista Almeida Costa, também pesquisador da Comissão da Verdade.
Território para eles não é sinônimo de terra. Território é aquele pedaço de chão em que viveram avós e bisavós, aquele cantinho onde Mãe Piana fez o parto de mais de 2 mil crianças. A terra é consequência. Na terra se planta e colhe, no território brotam histórias. E lá se quer ficar. Porque a memória é algo que nem a mais torpe das ditaduras poderá usurpar.
Afirmação e pertencimento
O antropólogo João Batista Almeida Costa, professor da Universidade Estadual de Montes Claros e pesquisador da Comissão da Verdade do Grande Sertão, fala sobre a “construção política da identidade”.
A Comissão da Verdade do Grande Sertão pretende dar conta desse lugar, o grande sertão. Que território é esse?
A dimensão administrativa do estado não recobre toda a área que temos contato, isto é, a área de pessoas que estão vinculadas à comissão, pessoas dos movimentos sociais locais. Então, a comissão entrará, além do norte de Minas, no noroeste e também no Vale do Jequitinhonha. Decorrente dessa “quebra” administrativa, como então nomear a comissão? Todos nós somos leitores de João Guimarães Rosa, e exatamente quando ele fala de grande sertão, se refere a essa região. Se a gente for cartografar o Grande Sertão de Guimarães, no trecho de Minas Gerais, é exatamente essa área de atuação: um pedaço do centro, o norte de Minas e o Vale do Jequitinhonha. Riobaldo, no seu périplo, nasce no centro, vai pro norte, pro Jequitinhonha e ao final pro noroeste.
Seu trabalho é uma referência para quem quer falar de populações tradicionais do norte de Minas Gerais. Qual vai ser a importância da Comissão para a questão das violações no campo, junto a esses povos?
A Comissão Nacional e a Estadual, quando olham para a realidade, não conseguem recobrir todas as situações. Aqui, o exemplo de Cachoeirinha veio à tona (nos relatórios dessas comissões), mas não a utilização da estrutura repressiva do Estado como aliada no processo de expropriação territorial. Isso ocorreu em todo o país, aqui não seria exceção.
Até a entrada do norte de Minas na área de atuação da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), a grande maioria das terras era devoluta, o tipo de sistema produtivo era a criação extensiva de gado solto. Gado solto na chapada, nos vales e que só era campeado anualmente no período próximo à parição das vacas. Nesse momento se aproveitava para fazer vacinação. O gado criado solto era reconhecido porque era marcado com o ferro de cada proprietário. E não havia cercas impedindo a terra, tanto que tem uma marcha que diz “êta, mundão sem cancela”. O gado transitava por esse mundão e os vaqueiros em busca dele passavam léguas e léguas, grandes distâncias, campeando. A partir da entrada na Sudene, a terra passa a ter valor econômico.
Ao mesmo tempo, há o financiamento da transformação da fazenda em empresa agropecuária. Isso se dissemina. Com o apoio explícito do estado, por meio da Ruralminas (Fundação Rural de Minas) e com o apoio velado, por meio das polícias Militar e Civil e do Dops, as elites (médicos, dentistas, advogados, fazendeiros, comerciantes, professores, pessoal da emergência local) com bandos de jagunços foram terra adentro – terras de quilombos, terras dessas populações.
E sobre os casos de Saluzinho e do massacre dos posseiros de Cachoerinha?
Saluzinho morava no território que hoje pertence a Brejo dos Crioulos (quilombo). Em 1920, um agrimensor que é chamado por um fazendeiro de São João da Ponte para processar a divisão de duas fazendas, a Arapuá e a Ouro Preto. Eles adotaram, então, a seguinte estratégia: criam faixas de terras pras pessoas que viviam ali e entre essas faixas de terras põem glebas, deram o nome de Glebas de Ausentes. Nos anos 1960, quando começa o processo de afazendamento da elite regional, esses agrimensores vão vender essas glebas.
O caso de Cachoeirinha é clássico nesse sentido. Vendem ao coronel Giorgino umas glebas de terra e a Constantino outras. O bando de jagunço, então, começava a pressionar as pessoas a vender as terras. Como eles não conseguem, começam a pôr fogo nas plantações, a matar e roubar o gado. O caso de Cachoeirinha é esse, e o de Saluzinho também. Houve então a revolta de Cachoeirinha em perder a terra, e Saluzinho age isoladamente. Desse jeito, eles conseguiam tomar as terras das pessoas, com violência extrema.
Brejo dos Crioulos hoje é um quilombo.
Cachoeirinha também é historicamente um quilombo. Só que naquele momento a figura de quilombo ainda não tinha sido “inventada” pela Constituição.
Como foi a incorporação dessas leis entre os povos tradicionais e o que isso tem a ver com os atuais processos de retomada?
Historicamente, essas populações vêm lutando pela permanência em seus espaços territoriais desde o processo de expropriação dos anos 60 e 70. Quando trabalhei na Secretaria de Trabalho do Estado como técnico de desenvolvimento rural, viajava a diversas regiões, e a grande reivindicação dessas populações sempre foi a permanência no espaço territorial deles. Para conseguir isso, já “foram” trabalhador rural sem-terra, agricultor, pequeno proprietário, posseiro.
Mas quando se dissemina na região a informação de que havia, no caso dos quilombos, um artigo na Constituição dizendo que o Estado deveria regularizar as suas terras imediatamente, mais de 80 comunidades no norte de Minas, em um espaço de três anos, vão se autoafirmar como quilombo e reivindicar a regularização fundiária. E as outras populações que estão em conflito, na luta contra eucalipto, fazendeiro e mineração, ao tomar conhecimento de que no artigo 215/216 diz que o Estado deve garantir a manutenção do modo de fazer, de viver, de pensar e de criar dos grupos formadores da nacionalidade brasileira demandam então uma assessoria (antropológica) para conseguir a permanência em seus territórios. Aí entra o caso dos vazanteiros, dos geraizeiros, caatingueiros, veredeiros e outros.
É impressionante ver a quantidade de retomadas que há no norte de Minas. Parece similar com o que fizeram os povos indígenas nos anos 80, quando começaram a voltar para os seus territórios sob essa mesma justificativa, a ancestralidade. É isso que está acontecendo com os quilombolas?
Na verdade, eles não saíram. Tem uma categoria que a gente utiliza que é a do “encurralamento”. Eles foram expulsos de suas terras, mas havia sempre uma Terra de Santo nas proximidades. Eles se deslocam pra essas Terras de Santo e permanecem trabalhando. Isso é inclusive uma estratégia dos fazendeiros, porque, então, você tem mão de obra barata pra o trabalho na fazenda. Você tem no entorno da fazenda uma comunidade rural negra.
No caso do Vale do Verde Grande, que a gente chama de Território Negro da Jaíba, tem 82 comunidades que se reconhecem como quilombola. E ficam situadas entre fazendas, em pequenas áreas de terra, um hectare, dois, três. Sendo que toda a terra em volta foi pertencente às famílias deles. Quando fazemos os relatórios antropológicos entramos nessas fazendas e eles vão apontando “aqui tá enterrado fulano”, “aqui acontecia tal coisa”, então, fazemos o levantamento do que chamamos de marcos de territorialidade. A historicidade está marcada no espaço que eles ocupavam e que foi expropriada nos anos 60 e 70.
Em decorrência de estar próximos aos seus territórios, ao se reconhecer no artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias, artigos 215/216 da Constituição, esse pessoal partiu pra luta. O que emerge? A construção política de uma identidade. Se afirmam como vazanteiro, veredeiro, quilombola, apanhador de flor, revisitando o passado pela memória do grupo pra afirmar o seu pertencimento a esse espaço. Isso tem acontecido muito.