Agrotóxicos: veneno na mesa dos cariocas
Por Raíza Tourinho e Graça Portela*
Da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
O agricultor Maicon Miller está isolado, e não só geograficamente. Aos 20 anos, ele cultiva frutas e verduras orgânicas em uma terra emprestada logo abaixo do Parque Estadual dos Três Picos, em Nova Friburgo, a 97 km do município do Rio de Janeiro. “Nessa região têm meu vizinho e eu. 99,8% é (sic) convencional. Meu vizinho é de fora, do Rio.
Eu sou o único da região, da terra, que estou (sic) começando com isso”, diz. Além do vizinho, que o ensinou a técnica, e de uma dúzia de outros produtores orgânicos de Nova Friburgo, todos que Maicon conhecem torcem o nariz para o cultivo sem agrotóxicos. “Nem falo mais com meus amigos [sobre o assunto], porque eles acham que sou maluco”.
Filho de uma família de agricultores, até mesmo a mãe de Maicon prefere o cultivo tradicional, embora não faltem relatos de vizinhos e familiares que passaram mal com os produtos produzidos com agrotóxicos. “Eu acho que eles têm consciência [do perigo dos agrotóxicos] mas só vê (sic) o lado deles, que é mais fácil”, explica Maicon, contando que tem um primo que diz até gostar do cultivo orgânico, mas que prefere usar herbicida para deixar “o mato limpinho”.
A exceção fica por conta da avó, Eleonor Correia, que vê como “normal” a opção de Maicon. Embora ela tenha sempre utilizado agrotóxicos “porque diziam que era melhor”, viu no cultivo do neto um retorno aos métodos utilizados pelos antepassados. “No tempo do meu pai, do meu avô, era tudo assim, não tinha veneno, não tinha nada. A gente plantava, não botava adubo, esterco, nada. E colhia. Depois começaram a dizer que se botasse veneno dava melhor, né?!”
Embora trate naturalmente os agrotóxicos como “veneno”, Leonor não consegue bem associar os possíveis danos à saúde com o uso destas substâncias. Ela acredita que não tem problema utilizar insumos químicos na plantação “para vender” – mas para comer é melhor mesmo as hortaliças sem veneno. Quando questionada sobre se conhece algum problema causado por agrotóxicos, ela nega.
Mas, aos poucos, vai lembrando: do caso da sobrinha que teve que abortar um feto malformado após comer um tomate recém-pulverizado, uma outra que foi internada duas vezes “só pelo cheiro dos agrotóxicos”, dos vizinhos que tentaram se matar utilizando a substância [a associação entre agrotóxicos e depressão é seriamente sugerida por diversos estudos] e até mesmo dos casos, cada vez mais recorrentes, de recém-nascidos com má-formação e pessoas com câncer na região. “Na época dos meus pais não tinha isso. Eles morriam assim…que nem passarinho”, diz.
Abaixo, confira o depoimento de Eleonor.
A pesquisadora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Raquel Rigotto explica que o conhecimento sobre os malefícios em relação aos agrotóxicos ainda não está consolidado entre as populações que o utilizam, dificultando a percepção do nexo causal entre o uso das substâncias e os agravos a ela associados.
“É importante a gente considerar a priori que a baixa escolaridade [do trabalhador rural] não significa pouco conhecimento. Essas pessoas têm um extenso e profundo saber popular e tradicional, mas este saber não incorpora o tema dos agrotóxicos”, diz.
Embora o isolamento que Maicon descreve não o diga, o munícipio onde ele produz foi pioneiro na agricultura orgânica no País, uma década antes do nascimento do jovem. Mas, desde então, houve uma desvalorização da produção agrícola no estado.
Atualmente, o Rio de Janeiro é considerado o estado mais urbano do Brasil, com quase 97% da população vivendo em áreas urbanizadas, segundo o último censo do IBGE (2010). Contudo, esse número desconsidera a agricultura urbana e áreas rurais, como demonstra as 526 mil pessoas que vivem no campo. “Há a ideia de que a agricultura não é muito forte no Estado.
Na verdade, existe uma importância grande em termos de produção de alimentos e da ainda presente monocultura de cana-de-açúcar no Norte [fluminense], que é também consumidora intensa de agrotóxicos”, explica o pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da (Cesteh/Ensp/Fiocruz), Marcelo Firpo.
Nova Friburgo tem forte tradição rural, sendo considerado como um dos maiores produtores de hortaliças, o maior de couve-flor e o segundo maior de flor de corte do País. Com uma população de 182 mil pessoas, segundo dados do Censo 2010, um terço dos trabalhadores friburguense (60 mil) está no Campo (20 mil), de acordo com a Cooperativa de Trabalho, Consultoria, Projetos e Serviços em Sustentabilidade – Cedro.
O município foi pioneiro na produção orgânica do Rio de Janeiro nos anos 1980, quando produtores e técnicos se organizaram para produzir alimentos agroecológicos, sem impactos ambientais, criando a primeira feira orgânica do Brasil e a Abio (Associação dos Agricultores Biológicos-RJ), associação de agricultores orgânicos até então também inédita no País.
Atualmente, a Abio conta com mais de 200 associados e possui onze núcleos no Estado. Embora crescente, a produção livre de agrotóxicos permanece sendo minoritária em território fluminense.
De acordo com o “Panorama da Contaminação Ambiental por Agrotóxicos e Nitrato de origem Agrícola no Brasil”, publicado em 2014 pela Embrapa, há na região serrana do Rio de Janeiro “a presença constante de situações de risco de contaminação ambiental por agrotóxicos”.
O documento destaca a contaminação da água por estas substâncias, especialmente em áreas com cultivo de tomates (uma pesquisa realizada em Paty do Alferes encontrou contaminação em 70% dos pontos hídricos pesquisados).
A publicação destaca ainda dois estudos realizados em Nova Friburgo: um detectou que a presença de agrotóxicos no ambiente, em especial nos rios, impacta na fauna local; enquanto outro encontrou concentrações de agrotóxicos em valores até oito vezes acima do limite permitido pela legislação brasileira, em áreas onde a atividade agrícola era mais intensiva – com as lavouras chegando até às margens do rio.
De acordo com Firpo, o consumo intensivo de agrotóxicos está concentrado nas monoculturas de cana-de-açúcar no norte do estado e na oleicultura [tomate, pimentão e tubérculos diversos] da região serrana, alimentos que são escoados para a Ceasa e abastecem a região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro.
Em um levantamento ainda não publicado feito pela Fiocruz, a pedido do Fórum Estadual de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos no Estado do Rio de Janeiro (Fecia-RJ), foram encontrados resíduos de agrotóxicos em quantidades elevadas em amostras de pepino, goiaba, pimentão, abobrinha e tomate, segundo Firpo. “O morango também, mas este provém de outros estados. Esses dados batem com os números, muito subnotificados, do sistema de notificação de intoxicação”, diz.
Em 2011, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA) da Anvisa, indicou como insatisfatória quatro das cinco amostras de alface; quatro das seis de cenoura; seis das nove de pepino e sete das nove amostras de pimentão. Em compensação, nenhuma das seis amostras de tomate analisadas tiveram resquícios de agrotóxicos acima do permitido ou com o uso não liberado. Já em 2012, o percentual de amostras de alimentos insatisfatórias para consumo no Rio de Janeiro foi de 37,5%.
Dados indisponíveis
O relatório “Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos no Estado do Rio de Janeiro”, divulgado em 2015 pelo Ministério da Saúde, aponta que o RJ ocupa o décimo lugar no ranking de estados que mais consomem agrotóxicos no país.
Segundo a publicação, entre 2009 e 2010, o consumo estadual disparou, passando de 3,40 kg/ha para 125,08 kg/ha, enquanto a área plantada se manteve na ordem de 200 mil hectares.
“Esse valor é bastante alto, sobretudo se comparado às médias regional e nacional de, respectivamente, 33,43 kg/ha e 15,84 kg/ha. Assim, o perfil de consumo de agrotóxicos no estado não se justifica, mesmo levando em consideração o aumento da produtividade agrícola, alcançado graças à introdução de novas tecnologias e ao melhor aproveitamento de insumos”, diz o documento. Já em 2012, esse número chegou a 151,01 kg/ha.
O pesquisador Marcelo Firpo diz que o consumo quilo por hectare eleva o Rio de Janeiro a um dos três principais estados brasileiros na utilização dos agrotóxicos. Ele diz que ainda que este consumo intensivo tem relação direta com os casos de intoxicações.
O município de Sumidouro, a 30 quilômetros de Nova Friburgo, registrou 120 casos de intoxicação por agrotóxico entre 2009 e 2013 – sendo que a estimativa de subnotificação é de que para cada caso existam 50 outros semelhantes não notificados, segundo explica Firpo.
Contudo, os casos de intoxicação em território fluminense não são fáceis de dimensionar. Isso porque há uma subnotificação explícita no estado. Segundo o relatório do Ministério da Saúde, dos 92 municípios fluminenses, somente 16 registraram mais de 10 notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) entre 2007 e 2012 (veja a figura abaixo).
Enquanto 15 municípios, alguns da região serrana, simplesmente não notificaram. São eles: Cachoeiras de Macacu, Cambuci, Duas Barras, Itaocara, Paty do Alferes, Rio Bonito, São João da Barra, São José do Ubá, São Sebastião do Alto, Sapucaia, Seropédica, Tanguá, Trajano de Moraes, Varre-Sai e Vassouras.
O documento ressalta que “o número de notificações provavelmente está aquém da realidade”, considerando que “a incidência de intoxicações não acompanhou o aumento explosivo do consumo de agrotóxicos em 2010, e é a mais baixa da região sudeste”.
Os números do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) e do próprio Sinan corroboram com as conclusões do documento. Segundo dados do Sinitox, em 2012, somente 11 casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola foram registrados no Centro de Assistência Toxicológica de Niterói, único do Rio de Janeiro.
No mesmo ano, Vitória (ES) registrou 857 e Belo Horizonte (MG) 817 intoxicações. Em 2012, em todo o país, foram 4.656 casos de intoxicação por esta categoria de substância. Já o Sinan registrou, em 2012, 70 casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola, enquanto o ES notificou 530 e Minas Gerais 1.161. No total, foram notificados 10.755 no sistema.
A coordenadora do Sinitox, Rosany Bochner afirma que a subnotificação de intoxicações – e não somente de agrotóxicos – é “histórica” no Estado.
“Há uma tradição de notificar pouco”. Para ela, o problema se agravou após o fechamento do centro que funcionava na cidade do Rio de Janeiro, em 2008. “Não chega no Sinitox, mas deveria chegar no Sinan, pois a notificação é compulsória no serviço de saúde”, diz. O Sinitox trabalha com os dados fornecidos pelos Centros de Informação e Assistência Toxicológica, que, por sua vez, nem sempre são acionados em caso de intoxicação.
Bochner declara que está em curso um “desmonte” no sistema de informação. Para tanto, ela cita que o Sinan ficou quase quatro meses indisponível para os usuários externos, entre novembro de 2015 e fevereiro de 2016 – somente nesta segunda (15) a pesquisadora fora informada da volta do sistema, em novo endereço. Rosany Bochner explica que os outros sistemas que notificam as intoxicações por agrotóxicos, o Sistema de Informação de Mortalidade – SIM e o Sistema de Informações Hospitalares – SIH, trabalham com códigos, o que dificulta o acesso da população em geral.
“O leigo não consegue extrair os dados desses dois sistemas. Quem incomoda são o Sinan e o Sinitox que mostram os dados ‘na cara’. Daí como você prova que é um problema? Não tem dado. Não tem óbito, não tem intoxicação, não tem nada. A quem interessa isso estar do jeito que está?”, questiona.
O produtor serrano
Na outra ponta do sistema, está a realidade do agricultor, que muitas vezes se vê preso a uma lógica que exige que a utilização massiva de agrotóxicos. Um molho de couve, por exemplo, sai da roça de um produtor rural da região serrana por R$ 0,15.
Quando o mercado está bom, ele consegue R$ 0,20, explica o agricultor Victor Rolomcherault. “Não é o produtor que dá o preço. É o atravessador e uma lógica de mercado que não agrega ao produtor. Esta mesma couve que sai daqui a este preço chega ao mercado por 70, 80 centavos e às grandes redes de supermercado por R$ 1,50”, diz.
Victor cultiva alimentos agroecológicos em Sapucaia (RJ), mas compreende o processo que leva o agricultor a consumir intensivamente agrotóxicos na região. Segundo ele, o valor tão baixo dos produtos exige que uma produção em grande escala para que o agricultor possa sobreviver, sendo inviável o cultivo sem o auxílio dos produtos químicos. “Ninguém aguenta capinar aquela roça daquele tamanho, sendo tão mal pago”.
“A realidade do produtor orgânico é que ele mesmo faz a comercialização do seu produto. Ou então se junta a um grupo de pessoas que comercializam. Não tem o intermediário. Mesmo quando ele passa para outra pessoa [a couve], passa a R$ 1,00 – R$ 1,20 e chega ao consumidor a um R$ 1,50, que é o preço em média que alcança uma verdura convencional a um mercado grande.
Na feira, conseguimos ter um preço similar a um convencional, só que não oscila como o outro”, compara Victor, assegurando que, por isso mesmo, consumidores de todas as classes sociais adquirem o produto na feira de Teresópolis – e não apenas aqueles com maior poder aquisitivo, como são geralmente os consumidores de orgânicos em grandes metrópoles.
Luciane Barbé, doutora em produção vegetal pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), explica que, na realidade, o problema não está no intermediário, pois muitas vezes o agricultor “não tem como atuar nas duas pontas” [produção e distribuição]. “A gente não pode ver o atravessador como bicho-papão, porque ele compra. O agricultor é vítima deste processo. O problema está na relação estabelecida entre eles”.
Barbé trabalha na assistência técnica rural da Cedro na região serrana e afirma que a utilização massiva de agrotóxicos é uma realidade difícil de mudar na área.
Os donos de lojas de insumos químicos fazem dia de campo para manter a clientela fiel aos pacotes tecnológicos fornecidos pelas multinacionais. “O que dá mais lucro aqui é a semente [que só se desenvolve se for produzida com agrotóxicos]”, diz.
A Cedro atende a 900 famílias na região e os ajuda a desenvolver um manejo agrícola mais sustentável, com redução dos agrotóxicos. Esse trabalho, contudo, não é nada simples. “As pessoas fogem quando ouvem a palavra ‘sustentável’. É muita sensibilização”, desabafa.
*Esta é uma das reportagens da série “Agrotóxicos: a história por trás dos números”, realizada pelo Icict, com matérias sobre uso de agrotóxicos no Brasil. Os depoimentos dos agricultores colhidos nesta série de reportagens foram realizados na Caravana Agroecológica Sudeste – RJ.