“Derramam nosso sangue para a plantação de milho, soja e criação de gado”, denuncia liderança indígena
Por Lizely Borges*
Da Página do MST
Povos indígenas e quilombolas, extrativistas, pescadoras e pescadores de vários estados do país participaram da atividade promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados em comemoração ao Dia Internacional dos Povos Indígenas, neste 09 de agosto, em Brasília-DF.
Povos Gavião, Krikati, Gamela, Guajajara, Kaingang, Guarani Kaiowá, Mbya, Pataxó Hã Hã Hãe e Tupinambá oriundos do Maranhão, Bahia, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Pará e Tocantins afirmaram que a data instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) para visibilizar a importância e contribuição destes povos à sociedade serve, neste período de grave ameaça aos direitos sociais, como reafirmação de luta e resistência.
Para além da luta cotidiana por reconhecimento pelo Estado, pela história e pela sociedade, os 305 povos indígenas, falantes de 274 línguas (Dados IBGE), mal retratados ou ainda invisíveis nos livros escolares, nos veículos de comunicação e no debate público, enfrentam a mesma sorte de problemas e obstáculos para afirmação de direitos desde a colonização do país pelos portugueses: o não reconhecimento das suas contribuições à preservação do meio ambiente, a imposição de uma cultura branca e a atuação de setores conservadores para fragilização das suas identidades e diversidade cultural.
No entanto, segundo lideranças destes povos, neste período se impõe com mais força, a ameaça aos seus territórios pelas ações do governo ilegítimo em exercício, Michel Temer, e pela atuação dos poderes legislativo e judiciário, poderes alinhados aos interesses de grupos vinculados ao agronegócio, à mineração e às empresas multinacionais.
“Nesta data queremos visibilizar que o respeito aos povos indígenas seja de fato realidade. Vivemos ainda a invisibilidade. Lutamos todo dia para mostrar que existimos. É dia de comemorar nossa existência, mas é dia de luta. Luta para que a política pública chegue à aldeia, para que sejamos vistos não como índios, mas como povos indígenas na sua diversidade. Quando atacam nossos direitos, atacam a vida. E o maior de todos os ataques que vivemos agora é a disputa pelo território”, relata a coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara.
Ofensiva legislativa
Os povos indígenas e quilombolas, extrativistas e pescadores artesanais apontam como gravíssima a ameaça ao direito ao território que materializa na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, de autoria de Almir Moraes de Sá (PR-RR), que transfere do Poder Executivo para o Legislativo a atribuição da demarcação de terras indígenas, a titulação de terras quilombolas e a criação de unidades de conservação ambiental.
Mesmo já declarada inconstitucional em 2004 pelo parecer do deputado Luiz Couto (PT- PE), então relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC), a PEC foi reapresentada em 2012 pelo deputado Osmar Seraglio (PMDB-PR) e aprovada na CCJC. Dois anos depois, em 2014, o mesmo deputado apresentou um substitutivo à PEC 215, com novas emendas e a inclusão da possibilidade de reabertura de processos administrativos já finalizados.
Sônia relata que em 2013 mais de mil indígenas ocuparam o Congresso para impedir a provação da PEC 215. “Este foi um marco histórico. Foi a primeira vez que o plenário teve a representação verdadeira dos povos brasileiros. Em 2014 conseguimos arquivar a PEC, mas ela foi retomada com a legislativo de 2015. A primeira medida deles foi desarquiva-la. Aprova-la é decretar a morte dos povos indígenas”, salienta.
Segundo denuncia a coordenadora da APIB, essas ações fazem parte de um acordo no Congresso Nacional entre Executivo e Legislativo, foi uma das moedas de troca na votação pelo impeachment, assim como os projetos de lei da mineração, a flexibilização do licenciamento ambiental para facilitar empreendimentos. A PEC 215 está sujeita à apreciação pelo Plenário a qualquer momento. “Vamos continuar fazendo a luta para impedir que venha a plenário”, complementa.
Como proposta de alteração da Constituição Federal, nos artigos 49 e 231, a PEC 215, para ser aprovada, necessita de voto favorável por três quintos dos deputados, em dois turnos. Ou seja, deve obter 308 votos em duas votações distintas. Depois de aprovada pela Câmara, a matéria segue em dois turnos no Senado. Ali precisa de votos de 49 senadores.
A medida não pode sofrer veto presidencial. A preocupação dos povos tradicionais com a ida da matéria ao plenário decorre pelo grande interesse de parte significativa do Congresso Nacional na apropriação destas terras. Como aponta a Agência A Pública, do total de 513 deputados federais, 207 são da bancada ruralista. No Senado o contexto é semelhante, dos 81 senadores cerca de 32 possuem estreitos vínculos com interesses do agronegócio.
As outras ações que Sônia se refere tratam-se do PL 654/15, do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que flexibiliza o procedimento de liberação da licença ambiental para grandes empreendimentos de infraestrutura. Além dos fortes impactos ambientais, a medida é apontada pelos povos tradicionais, movimentos populares e especialistas como imposição da lógica econômica sobre a terra, a natureza e direitos sociais. Outra medida do Legislativo que preocupa os povos tradicionais é o PL 4059/2012, de autoria da Comissão de Agricultura, Pecuária e Abastecimento Rural da Câmara de Deputados que libera, sem restrições, a aquisição de terras por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras.
O assistente técnico da Fundação Nacional do Índio (Funai), Gustavo Cruz, também destaca a ação articulada entre o Legislativo e Executivo no desmonte das estruturas de atendimento aos povos indígenas nestes quase cem dias de governo interino. A instituição sofre progressiva diminuição do orçamento público para cumprimento de funções, redução de corpo técnico e criminalização dos funcionários.
De acordo com Gustavo, a Funai possui 2400 funcionários. Seria necessário, pelo menos seis mil funcionários para atendimento adequado e cobertura nacional. “Na rotina diária nos colocamos na resistência. Temos três mil processos para acompanhamento por treze funcionários, pessoas trabalhando noite e dia, ameaças de morte, recebendo agressões tanto de órgãos públicos quanto privados”, denuncia.
Gustavo destaca ainda a atuação do capital internacional interessado na terra dos povos tradicionais por direito e defende que a CPI Incra e Funai, com o indiciamento de lideranças de entidades de defesa dos povos e da própria Funai, é uma forma para fortalecer o campo político para aprovação da PEC 215.
Para Alexandre Conceição, da coordenação nacional do MST, a ação da bancada ruralista na apropriação das terras dos povos tradicionais opera pela mesmo lógica da ação contra os agricultores e a reforma agrária.
“É contra nós e contra as nossas lutas pela terra e pela biodiversidade que este governo golpista age. Sem-terra, povos indígenas e quilombolas, extrativistas e pescadores e pescadoras artesanais, precisamos nos unir na resistência conjunta contra este golpe de Estado gestado pelo golpista Temer e a este Estado brasileiro que quer institucionalizar o uso dos recursos naturais, da terra, para as empresas estrangeiras”, relata.
Violência contra os povos
De acordo com o Relatório Conflitos no Campo 2015, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), os conflitos envolvendo indígenas crescem progressivamente. Em 2008 foram registrados conflitos envolvendo 9,5 mil famílias na luta pela terra e para permanecer nela. Em 2015 o número é de 16,8 mil famílias indígenas.
O relatório Violência Contra os Povos Indígenas, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), registra o aumento de 130% no número de índios assassinados em 2014. Naquele ano 138 índios foram mortos. Em 2015 não há dados consolidados, mas as organizações de defesa de direitos dos povos indígenas apontam que o índice está em progressão.
O povo Guarani-Kaiowá é um dos mais vitimados pela ofensiva do latifúndio e agronegócio. “Derramam nosso sangue para a plantação de milho, soja e criação de gado”, declara a liderança indígena Eliseu Lopes Guarani-Kaiowá no evento.
Eliseu recorda o recente massacre em Caraapó, região sul do Mato Grosso do Sul, dia 14 de junho, em que um agente de saúde indígena foi assassinado e seis pessoas ficaram feridas, incluindo um adolescente indígena de 12 anos. “Todo dia sofremos ataque de grupos paramilitares. Querem tomar nossas terras e nos chamam de invasores. Os Guarani é o povo mais violentado pelos fazendeiros e grandes empresas. É um massacre todo dia. O que segura é a nossa resistência.“
A CDHM da Câmara esteve em missão em Caraapó. Segundo o presidente da Comissão, Pe João (PT-MG), foi encaminhado ao Ministro da Justiça do governo em exercício, Alexandre de Moraes (PSDB-SP), um pedido para inclusão das lideranças da região no Programa de Proteção à Vítimas e Testemunhas Ameaçadas de Morte. “Até hoje o ministro não nos recebeu e não foi feita a inclusão. O pedido foi feito há dois meses, isso mostra a serviço de quem ele está”, afirma.
Construção de resistência
As organizações, movimentos populares e povos tradicionais reforçam a necessidade de construção da resistência às ações adotadas pelos poderes instituídos e contra a ofensiva das empresas e latifúndio.
“A luta dos povos indígenas é também dos extrativistas porque somos formados da mesma transcendência”, afirma a vice-presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, Edel Moraes.
“Não precisamos que ninguém valide a nossa identidade, eu tenho a minha família, gerações que validam. Projetos de morte como a PEC 215 tem que ser combatida. Não aceitamos esta compreensão. Os povos originários já estavam aqui quando as pessoas chegaram, construímos riqueza neste pais e não desfrutamos nada, desfrutamos a sarjeta e a violência”, diz a representante da Articulação Nacional de Quilombos (ANQ), Maria de Fatima Batista Barros.
*Editado Por Iris Pacheco