Agricultura familiar e o cultivo do fumo: mais de três séculos de dependência econômica
Por Patrícia Fachin
Da Revista IHU Online
Fotos: Raul Spinassé
Apesar de 20 mil famílias no Nordeste e 170 mil na região Sul estarem envolvidas com o plantio de fumo no Brasil, garantindo a exportação de 85% da produção brasileira, essa cultura é “altamente controlada por um reduzido número de indústrias fumageiras, algumas poucas produtoras de cigarros”, diz Amadeu Bonato à IHU On-Line.
De acordo com ele, o que “explica” a adesão desses agricultores familiares ao plantio de fumo é o “contrato de integração” com as empresas fumageiras, “que garante os insumos dentro da propriedade, assistência técnica, mercado garantido e sem que haja preocupação com o transporte do produto e, para uma parcela, garante boa renda”. Entretanto, ressalta, atualmente “a maioria” dos agricultores que cultiva fumo no país “consegue sobreviver”, mas “para um grupo de mais de 30% das famílias a renda líquida do fumo é inferior a dois salários mínimos mensais”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Bonato defende a “diversificação” de culturas para a agricultura familiar e argumenta que, independentemente da relevância econômica, “o cultivo do fumo é um grande mito se observado a partir da ótica da agricultura familiar”, porque além de o fumo não ser um alimento, é “altamente tóxico” e gera “graves consequências para as pessoas envolvidas no processo produtivo”.
Amadeu Bonato é coordenador do Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais – Deser, onde é responsável pelas áreas das políticas sociais e desenvolve pesquisas, estudos e assessoria às organizações, movimentos, entidades e instituições vinculadas à agricultura familiar.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que percentual da produção agrícola brasileira hoje é destinado ao plantio de fumo? Nesse sentido, qual é o peso dessa cultura na agricultura brasileira?
Amadeu Bonato – A cultura do fumo, no Brasil, é bastante antiga, sendo que no século XIX e início do século XX predominava na região Nordeste. Tanto que, no brasão da República, aparecem um ramo de café (potencial de produção do Sul-Sudeste) e um ramo de fumo (potencial de produção do Nordeste). Com o avanço do cigarro industrial, especialmente a partir da Segunda Guerra, a região Sul começa a se destacar, atualmente produzindo 97% das cerca de 850 mil toneladas de fumo que são produzidas no Brasil, em aproximadamente 400 mil hectares. É uma cultura que tem uma grande importância no quadro das exportações, uma vez que 85% da produção brasileira é exportada, o que representa atualmente US$ 2,5 bilhões.
Outra importância do fumo pode ser verificada na quantidade de famílias envolvidas, uma vez que se trata de uma cultura que ocupa pequena área de terra, com ainda baixo uso de mecanização e, por consequência, exige grande quantidade de mão de obra. Ou seja, trata-se de um produto tipicamente da agricultura familiar, envolvendo aproximadamente 20 mil famílias no Nordeste e 170 mil na região Sul. No Sul, em torno de 20% da agricultura familiar produz fumo. Mas é uma cultura altamente controlada por um reduzido número de indústrias fumageiras, algumas poucas produtoras de cigarros e outros derivados e outras que realizam exclusivamente a exportação de folhas. O principal instrumento de controle sobre as famílias produtoras é o sistema de integração, concretizado por meio de um contrato de compra e venda firmado anualmente entre a família e a indústria.
IHU On-Line – Por que o senhor afirma que é um mito dizer que o fumo é o produto que mais dá renda na agricultura? Qual é a lucratividade do cultivo de fumo em relação a outras culturas?
Amadeu Bonato – Apesar da sua importância social e econômica, o cultivo do fumo é um grande mito se observado a partir da ótica da agricultura familiar, por diversos motivos. O primeiro é que o fumo não só não é alimento, mas também um produto altamente tóxico, com graves consequências para as pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, no processo produtivo. Em segundo lugar, como a sociedade está cada vez mais se conscientizando de que o ato de fumar deixou de ser um charme para ser um imenso problema de saúde pública, é clara a tendência de redução do consumo de produtos fumígenos. Isso já está afetando a produção e o futuro dos atuais produtores.
Por terceiro, a boa renda oriunda do cultivo de fumo é restrita a um grupo bastante seleto de famílias, em torno de 25% delas. A maioria consegue, no máximo, sobreviver com a renda do fumo, e para um grupo de mais de 30% das famílias a renda líquida do fumo é inferior a dois salários mínimos mensais. Em termos de renda per capita, para 61% das famílias a renda mensal é inferior a um salário mínimo. E ainda, é possível afirmar com toda certeza que a renda do fumo não produz desenvolvimento humano e sustentável, pois grande parte dos municípios com forte dependência da cultura do fumo apresentam um Índice de Desenvolvimento Humano – IDH baixo.
IHU On-Line – Apesar das críticas feitas a esse tipo de cultura, pequenos agricultores continuam investindo na plantação de fumo. Quais são os grandes atrativos que justificam o plantio do fumo entre eles?
Amadeu Bonato – É importante constatar que, assim como o fumante é um dependente químico do cigarro e da nicotina, as famílias produtoras de fumo são altamente dependentes economicamente desta cultura. Em torno de metade das famílias produtoras de fumo, particularmente as que produzem o fumo Virginia, também conhecido como fumo de estufa, depende exclusivamente da renda do fumo, produzindo em pouca terra e, muitas vezes, dependendo de terra arrendada de outros.
O contrato de integração sem dúvida é um atrativo, pois garante os insumos dentro da propriedade, assistência técnica, mercado garantido e sem que haja preocupação com o transporte do produto e, para uma parcela, garante boa renda. Mas o sistema de integração é uma forte amarra, pois vincula a família ao pacote tecnológico da indústria, incluindo processos contínuos e permanentes de endividamento. Nossos dados indicam que três quartos das famílias produtoras de fumo deixariam este cultivo se tivessem oportunidade e condições de sobreviver a partir de outros cultivos.
IHU On-Line – Muitos justificam a manutenção do plantio de fumo alegando que várias famílias, especialmente no interior do Rio Grande do Sul, por exemplo, se sustentam desse cultivo. Como o senhor avalia esse tipo de argumentação? Por que o fumo tem sido atrativo para alguns agricultores?
Amadeu Bonato – É claro que essa justificativa existe e é real. Para um grupo de famílias, de fato, o fumo tem sido uma boa fonte de renda. Para outro grupo de famílias, especialmente naqueles municípios onde o fumo é a principal produção, este produto é a única forma visualizada pelas famílias como possível para a sobrevivência na agricultura. No entanto, já se observa que muitas destas famílias começam a perceber que o custo em termos de saúde, de trabalho e vida digna e de sustentabilidade não compensa o dito sustento apresentado pelo cultivo do fumo. A ausência de uma política de desenvolvimento local sustentável, a falta de opção de alternativas viáveis e a dificuldade de programas sólidos que garantam comercialização, renda e apoio permanente fortalecem as justificativas explicitadas.
IHU On-Line – Segundo a Associação dos Fumicultores do Brasil – Afubra, entre 2011 e 2015 o faturamento do setor deixou de crescer até começar a cair. Alguns alegam que a política antifumo tem impactado o cultivo. O senhor concorda? Ou a que o senhor atribui essa queda?
Amadeu Bonato – Além da alegação apresentada pela Afubra de queda no faturamento, há um processo irreversível de queda no consumo interno e queda nas exportações brasileiras, em função da também tendência de queda no consumo nos principais países importadores do fumo brasileiro. Isso está significando queda na demanda de produção. E esse cenário é irreversível: a produção de fumo não será eliminada, mas cairá, reduzindo o número de famílias produtoras. A implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco e o conjunto de programas visando à redução drástica do tabagismo, que é uma doença e uma dependência causadora de inúmeras outras doenças, tendem a se fortalecer e estão causando e causarão ainda mais impactos sobre os produtores e sobre o lucro das empresas, cujas perdas são imediatamente repassadas para uma redução de renda das famílias produtoras.
Mas há outros aspectos que precisam ser considerados, sendo que o principal é o processo estimulado pelas indústrias de concentração da produção, eliminando famílias sem condições e capacidade de adotarem, de forma rápida, outros sistemas produtivos. A seletividade de produtores para ampliação dos investimentos, estimulados por uma melhor renda, e os avanços tecnológicos estimulam tal concentração, que poderá ser definitivamente agravada com a introdução já em curso da colheita mecânica.
IHU On-Line – O que seria uma alternativa ao plantio de fumo hoje?
Amadeu Bonato – Não existe “o produto milagroso” que possa ser apresentado como alternativa. Nós defendemos uma estratégia de diversificação, que respeite a história, a cultura, as aptidões e as capacidades existentes na família, na comunidade e no espaço local. Uma estratégia de diversificação que inclua, sim, novas culturas, novas fontes de renda, mas que compreenda mais que isso, ou seja, diversificação dos modos de vida, incluindo renda (inclusive de fontes não agrícolas), valorização das pessoas e de seu viver com dignidade e qualidade, sustentabilidade ambiental, cooperação entre as pessoas e organização social.
Do ponto de vista de renda, os processos que há vários anos estão sendo desenvolvidos e, a partir de 2006, com apoio do Programa Nacional de Apoio à Diversificação estão demonstrando que as possibilidades são inúmeras, desde que passem a considerar a família e, particularmente, as mulheres e a juventude como protagonistas do processo, pois as soluções mágicas implantadas de cima para baixo fracassaram e tendem ao fracasso.
IHU On-Line – Em termos de políticas de incentivo, como o Estado brasileiro tem atuado em relação à cultura de fumo?
Amadeu Bonato – O Programa Nacional de Apoio à Diversificação, criado em 2006 e até recentemente implementado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, particularmente no que se refere à política de Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER tem sido importante e com um sucesso respeitável. Esperamos que não apenas haja continuidade, mas também seu fortalecimento. Mas os cenários que vislumbramos são, no mínimo, temerosos.
Gostaríamos que, articuladas ao serviço de ATER, várias outras ações fossem realizadas, como a implementação de programas sólidos de comercialização, apoio ao fortalecimento do cooperativismo de economia solidária, crédito orientado, capacitação profissional, educação, saúde, entre outros. Gostaríamos que houvesse maior articulação e participação efetiva das três esferas de governo. Mas tememos que uma interrupção ou redução do que até agora foi feito seja mais um elemento de frustração para as famílias. Mas, no que estiver ao nosso alcance, lutaremos para que isso não aconteça.
*Editado por Rafael Soriano