Da burla à restauração conservadora
Por Roberto Amaral
Ilustração de capa: Vitor Teixeira
Nada de novo sob o sol do planalto. A ópera bufa, grotesca, de extremo mau gosto, montada no Senado Federal pela maioria governista com atores liliputianos, senadores de voto ferrado e vontade negociada, travestidos de juízes, fechou as cortinas do teatro de fantoches com a deposição da presidente Dilma Rousseff, condenada antes do julgamento adrede concertado. Como anunciado, como prometido. Chegamos, assim, ao ponto culminante do golpe de Estado que, com o impeachment, decretou o fim do regime inaugurado em 1988, com a Carta que Ulisses Guimarães, em momento de justificada euforia, batizou de ‘cidadã’, para caracterizar os avanços sociais prometidos pelo pacto nascido nas lutas contra a ditadura.
O espetáculo tragicômico oferecido pelo Senado, porém, revelou, em toda a sua dimensão, a grandeza de estadista da presidente Dilma Rousseff. Na medida em que mais crescia sua imagem aos olhos da sociedade – sua grandeza, sua coragem, sua força de vontade, seu desprendimento – mais se tornavam irrelevantes para a História as figuras pequenas, medíocres, covardes, de seus algozes de hoje.
É a grande liderança que surge na última cena do último ato da farsa.
A nova ordem mergulha o país na insegurança político-social, e ao invés de avanço aponta para o retrocesso e o aguçamento dos conflitos sociais. Carente de legitimidade, a vida institucional se aparta da vida real e sem sustentação social tende à crise que já se desenha e cuja solução nos encaminha para a ruptura, cujos contornos nem os deuses olímpicos podem antecipar, pois o impasse político rapidamente transita para a crise constituinte, que não encontrará alternativa fora do pronunciamento popular, posto que a ilegitimidade é incurável.
A ordem decaída pede uma nova ordem.
Com uma só decisão, o Senado Federal, travestido de tribunal de júri de fancaria, cassou, sem crime de responsabilidade (a única possibilidade admitida pela Constituição para justificar o impeachment presidencial) o mandato da presidente Dilma Rousseff, surrupiou um mandato legítimo, violentou a soberania popular e mandou às favas a força do voto. Ao fim e ao cabo, o que realmente fez foi revogar a obrigatoriedade da disputa eleitoral como único instrumento para a chegada ao poder na democracia. E assim, com uma só e irresponsável penada, pôs por terra os fundamentos da democracia representativa ao tempo em que instaurou perigoso regime de insegurança jurídica a perseguir, doravante, como espada de Dâmocles, todos os titulares de mandatos executivos, mandatos que estarão, assim, como esteve e por isso naufragou, o de Dilma Rousseff, à mercê das chantagens das maiorias parlamentares ocasionais. Contrariar os Eduardos Cunhas que pululam em nossos parlamentos nos seus três níveis passa a ser operação de alto risco.
Foi dado o aviso.
Retrocedemos a 1955 quando a UDN (o PSDB de então) tentou impedir a posse de Juscelino Kubitscheck e inviabilizar seu governo, e retrocedemos a 1961, quando a mesma UDN, aliada a militares insubordinados, tentou impedir a posse de Jango. Em ambas oportunidades o atraso foi contido pela mobilização popular na defesa da legalidade e a democracia representativa sobreviveu.
A virada se dá agora, com o assalto ao poder por meio de golpe parlamentar logrado graças à associação dos derrotados de sempre (relembro as eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014) àqueles que, por puro oportunismo, deslavada deslealdade, ominosa covardia, desembarcaram do governo a tempo de abocanhar nacos ainda maiores de sesmarias. E assim, o PMDB, que perdeu todas as eleições realizadas desde a redemocratização, finalmente conquista o governo, sem um só voto a contabilizar.
Mas ainda não é esta a história toda desse golpe atípico, de implantação gradual, e auto-reprodução continuada. Consabidamente, esse golpe, que ainda não se completou de todo, começou a efetivar-se quando o STF, por intermédio de seu líder, o inefável ministro Gilmar Mendes, julgando mandado de segurança com pedido de liminar, impediu a presidente da República, em pleno presidencialismo, de nomear livremente o ministro chefe da Casa Civil. O golpe prossegue por meio de manobras cotidianas, nos vazamentos seletivos da Lava-Jato, nas tentativas policiais-judiciais de atingir o ex-presidente Lula e seus familiares, o Partido dos Trabalhadores e, agora, o Instituto Lula. Nesse contexto, a condução coercitiva de Lula por obra de um juiz de primeira instância foi apenas um ‘detalhe’.
O outro lado do golpe, o mais profundo, é a imposição, ao arrepio do processo eleitoral, contra a vontade manifesta da nação, de um projeto de sociedade fundado na desnacionalização, na privatização desenfreada, no desmonte das políticas sociais (inclusive a luta contra o analfabetismo!), na derrogação da legislação trabalhista e no abandono da política externa que privilegia a integração regional, a abertura para a África e a inserção soberana no mundo, para voltarmos ao colo dos interesses hegemônicos dos EUA.
Esse programa, já em execução, não se sustentaria se submetido ao voto e só poderá ser implantado e sustentado por um governo sem dependência da soberania popular. Sua efetivação representará uma ruptura mais profunda que a de 1964, e como esta o foi, só poderá ser levada a termo por um governo autoritário, fundado num direito autoritário que o atual Congresso, sujeito no golpe, não titubeará em legislar. Em outras palavras, esse governo antinacional e antipopular precisa da força e da coerção para se impor e, assim como tivemos um golpe atípico, teremos uma ‘ditadura atípica’, fundada numa legislação repressora e autoritária, mas com ‘todas as instituições funcionando normalmente’.
Assim, da farsa e da burleta sem humor caminharemos lenta mas firmemente para uma ‘ditadura constitucional’.
Presidente sem voto, Michel Temer chefiará um governo autoritário, mas ele próprio será o que já é, um mamulengo, prisioneiro de suas próprias circunstâncias e do roteiro ditado pelos seus criadores, senhores absolutos dos cordéis que movimentam seus passos. Sua pequena margem de manobra — pois não é o chefe da maioria parlamentar que decretou o impeachment, nem muito menos um líder popular –, verá, a partir de 31 de dezembro, ainda acossado pelo temor das delações premiadas por enquanto contidas, seu campo de atuação visivelmente reduzido. A partir de então estará inteiramente à mercê de seus construtores de hoje, seus prováveis algozes de amanhã. Por qualquer deslize será defenestrado, com ou sem crime de responsabilidade, como foi Dilma Rousseff, pelo mesmo Senado que hoje lhe está outorgando o poder a que não tem direito. A ameaçá-lo não está apenas a possibilidade de um impeachment, pois o sistema real de poder dispõe de outros meios e um deles é o julgamento do pedido de impugnação do (PSDB) da chapa Dilma-Temer, em tramitação no TSE.
Está nas mãos do incontinenti Gilmar Mendes, ora presidente do TSE e agente em todo o processo golpista.
Temer não é, nem jamais foi sujeito nesse processo. Se a cassação da presidente Dilma se revelou uma necessidade para a maquinação reacionária, a ascensão do vice não passou de uma contingência, posta a serviço de um projeto maior: a conquista (sem voto) e conservação do poder. O projeto não é nem nunca foi simplesmente depor uma presidente sem maioria congressual, mas, a partir dessa deposição, instaurar um governo conservador rejeitado nas urnas e cuja base econômica radica nos rentistas da avenida Paulista e suas adjacências, no agronegócio, historicamente alheio à questão nacional (desde a Colônia) e à democracia (devoto que sempre foi do escravismo), pelo capital financeiro cuja articulação multinacional é hoje a principal ameaça ao conceito de Estado-nação e pelas igrejas pentecostais. Articulados, social e culturalmente pelo discurso construído por uma imprensa exógena, monopolizada ideologicamente, a serviço dos piores interesses da classe dominante.
É assim que as eleições de 2018 representam uma contingência que poderá ser mantida, na medida em que não represente ameaça de alternância de poder. O sonho de sempre é um parlamentarismo à la Alemanha, no qual a existência de um presidente da República seja irrelevante ao ponto de permitir sua eleição popular. A alternativa a esse projeto – alcançado em 1961 mas derrotado em seguida pela resistência popular expressa no plebiscito que mandou restaurar o presidencialismo– pode ser um ‘presidencialismo mitigado’ com o fortalecimento do parlamento, mediante, por exemplo, a entrega ao Senado da escolha dos ministros da Fazenda e das Relações Exteriores além do presidente do Banco Central. Mas em qualquer hipótese é preciso afastar o risco de eventual candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, destruindo o político e o símbolo, destruindo seu partido, destruindo junto ao povo a imagem de grande presidente. E esse objetivo, quando atingido, absolverá todos os crimes e justificará todos os métodos.
A sociedade, porém, tem sede de mudança, e não parece disposta a aceitar a interrupção dos avanços sociais.
Nessas circunstâncias é hora de as forças populares e democráticas, que se manifestaram através da Frente Brasil Popular, da Frente Brasil sem Medo, do MST, do MTST, da UNE, do movimento sindical, dos artistas e intelectuais engajados e dos partidos que lutaram contra o impeachment da presidente Dilma, manter a estratégia de unidade e Frente na luta política e principalmente na luta social, que não pode ensarilhar armas, que não pode sair das ruas nem abandonar, a partir do chão de fábrica, a luta pela defesa da sociedade e do país que defendemos, democrático, plural, progressista, soberano, rico, desenvolvido e empenhado no combate às desigualdades sociais. O que está em jogo agora é o Brasil das próximas décadas, o Brasil dos nossos filhos e netos.
*Editado por Rafael Soriano