“Não existem políticas públicas no Haiti. Este é um dos países mais pobres e desiguais do mundo”
Por Iris Pacheco
Da Página do MST
Entre os dias 3 e 4 de outubro a passagem do furacão Matthew, no Haiti, afetou mais de 1,5 milhão de pessoas. O impacto das enchentes e do vento foi devastador principalmente no sul e no oeste do país, que ainda não tinham se recuperado do terremoto de 2010.
De acordo com informações enviadas por organizações campesinas no país, a situação dos camponeses haitianos é alarmante. Nas zonas afetadas as famílias perderam tudo, 80% dos cultivos foram devastados e os produtos armazenados levados pelas águas em fúria.
Durante todos esses anos de intervencionismo externo, o Estado haitiano foi transformado em um Estado mínimo incapaz de gerenciar qualquer crise. Quem nos apresenta essa leitura é o grupo da Brigada Dessalines, organizada pela Via Campesina Brasil, e que há oito anos contribui com o povo haitiano.
“O capitalismo predatório tem colocado não apenas o Estado haitiano no desamparo, mas também massacrado o povo haitiano que sofre com a inexistência de políticas públicas básicas que garantam seus direitos humanos”.
Em entrevista para a Página do MST, os militantes da Brigada Dessalines comentam a atual situação do país, após mais uma catástrofe e reafirmam a necessidade dos Movimentos populares se manterem em solidariedade permanente com o Haiti.
O grupo, batizado em homenagem ao libertador haitiano Jean-Jacques Dessalines, está no Haiti desde 2009 e surgiu em resposta à proposta de cooperação militar por meio da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah).
Em 2004, quando foi anunciado o deslocamento de tropas estrangeira ao Haiti, movimentos sociais haitianos fizeram um apelo às organizações populares da América Latina, para a criação de outro tipo de cooperação, de caráter humanitário, em contraposição à ocupação militar.
Confira abaixo na íntegra.
Quais os principais impactos do furacão Matthew para o povo haitiano, em especial os camponeses?
Além das vidas que foram perdidas, muitas pessoas perderam tudo que tinham, casas e pequenos comércios. No caso dos camponeses, o impacto é ainda maior. Há dois anos, o Haiti vinha enfrentando uma forte seca e esse ano como está chovendo eles estavam tentando recuperar o que haviam perdido. Porém, com a passagem do furacão, tudo foi destruído.
Devido à catástrofe, outro forte impacto na vida do povo haitiano será o aumento dos preços dos alimentos e, consequentemente, o crescimento da população que vive abaixo da linha de miséria.
Comente a atual situação do país em termos de políticas públicas para garantir os direitos básicos, como saúde e educação, mesmo antes da recente catástrofe.
Não existem políticas públicas no Haiti. Este é um dos países mais pobres e desiguais do mundo, sem saúde, educação, nem segurança de nenhum tipo. Existem pouquíssimas escolas e o acesso a elas é um privilégio de poucos. A maioria da população haitiana que queira estudar precisa pagar uma escola particular, considerando que em grande parte dessas escolas não há estrutura adequada ou profissionais capacitados para lecionar.
No caso da saúde a situação é ainda pior, pois mesmo em hospitais considerados “públicos” é preciso pagar para ter acesso a serviços básicos como consultas e internação. Com exceção dos médicos cubanos e alguns hospitais filantrópicos que atendem gratuitamente, se você não tem dinheiro espera a morte chegar em casa.
Entre os camponeses, mais de 98% não têm acesso a créditos ou assistência técnica. O único projeto do governo é o chamado “modernização da agricultura”, cuja única função é de transferir terras para grandes empresas e assim expulsar os camponeses dos seus territórios.
Quais os impactos do intervencionismo externo para o Estado e o povo haitiano?
Durante todos esses anos de intervencionismo externo, o Estado haitiano foi transformado em um Estado mínimo incapaz de gerenciar qualquer crise, de realizar eleições ou qualquer obra sem o apoio de algum órgão externo. Quiçá construir um projeto político de desenvolvimento.
Tudo o que se pensa em fazer no país passa pela discussão inicial sobre qual organização internacional vai financiar. É assim com escolas, hospitais, estradas e até o pagamento de funcionários públicos depende de ajuda externa. Ou seja, o capitalismo predatório tem colocado não apenas o Estado haitiano no desamparo, mas também massacrado o povo haitiano com a inexistência de políticas públicas básicas que garantam seus direitos humanos. Como denunciou o escritor uruguaio Eduardo Galeano, “a história do assédio contra o Haiti, que em nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental”.
Como o povo latino-americano tem se solidarizado com o país?
O povo latino-americano tem se solidarizado de várias formas. Cuba sempre mantém uma brigada de médicos, alfabetizadores, agrônomos e veterinários que trabalha com o povo haitiano. A Venezuela tem construído escolas, hospitais, estradas através do fundo Petrocaribe. E em vários países do continente existem comitês de solidariedade com o Haiti e contra as tropas da Minustah.
De que forma a Brigada Dessalines tem atuado?
A Brigada Dessalines atua de forma diferente das inúmeras organizações internacionais que estão no Haiti. Trabalhamos com o povo haitiano através da solidariedade entre os povos e os movimentos sociais, especialmente com os camponeses. Nosso objetivo é colaborar na reestabilização do povo haitiano por meio da troca de conhecimentos e experiências. Nesse sentido, todo brigadista que chega ao país tem a obrigação de aprender a língua crioula haitiana.
Atualmente a brigada está trabalhando com os movimentos sociais em quatros frentes: produção agroecológica, formação política, gênero e juventude. Além disso, apoiamos e nos solidarizamos com o povo na luta contra a ocupação militar, a expropriação de terras dos camponeses, na luta por moradias, educação e saúde.
Confira a nota de solidariedade emitida pela Alba
*Editada por Geanini Hackbardt