Arbitrariedade dos agentes de segurança pública atenta contra instituições de ensino e seus sujeitos

Em comum, a ação policial nas escolas públicas do DF e ENFF valeu-se de abuso de autoridade, ameaça à integridade física e psicológica e violação de processos legais

 

Em audiência pública na Câmara do Distrito Federal, secundaristas denunciam a ação policial nas desocupações. Foto Mídia Ninja.jpg
Em audiência pública na Câmara do Distrito Federal, secundaristas denunciam a ação policial nas desocupações. Foto Mídia Ninja

Por Lizely Borges
Da Página do MST

O uso da força policial nas ações de desocupações das escolas públicas no Distrito Federal foi tema de audiência pública realizada na tarde desta segunda-feira (07), na Câmara Legislativa do DF, em Brasília. Convocada pelo deputado distrital Wasny de Roure (PT) e pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Casa, Ricardo Vale (PT), a atividade teve a participação de secundaristas, parlamentares e organizações de defesa e apoio às ocupações dos estudantes.

Contrários à Medida Provisória (MP) 746/2016 para reestruturação do ensino médio e à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55/2016 que estabelece um congelamento dos gastos com políticas primárias, como saúde e educação, e pela defesa de uma educação pública plural e diversa, os estudantes do Distrito federal acompanharam o movimento nacional de resistência às medidas de austeridade do governo federal e se somaram às mais de mil instituições de ensino ocupadas, entre universidades e escolas públicas, sob controle dos estudantes.

Segundo o coletivo de organização estudantil que articula as ações no DF, o Grêmio Estudantil, nas últimas duas semanas os estudantes ocuparam cerca de 50 das 86 escolas do ensino médio instaladas na capital e cidades-satélites.

As ações de desocupação pela Polícia Militar, com forte apoio de grupos reacionários, ocorreu mais intensamente na última semana, por determinação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Desde então, os estudantes tem denunciado os excessos da ação dos agentes do Sistema de Justiça na repressão ao movimento.  

Durante a audiência pública e coletiva de imprensa realizada no dia 02, eles enumeraram um conjunto de violações de direitos à livre expressão e auto-organização e à integridade física e psicológica dos adolescentes. 

“Não tem necessidade da ação policial de ser feita. Teve helicóptero em Planaltina [cidade-satélite] sobrevoando escola, por exemplo. A gente está lidando com estudantes ou criminosos que precisam ser isolados da sociedade?”, problematiza a liderança da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), Thais de Oliveira.

Paralelo com Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF)

A atuação do Sistema de Justiça do Distrito Federal, nas suas diversas frentes, encontra paralelos com a intensificação da repressão aos movimentos populares. Defensores de direitos humanos e os estudantes identificam semelhanças entre práticas autoritárias do Estado nas desocupações estudantis e na ação da Polícia Civil de São Paulo na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), localizada em Guararema (SP), na última sexta-feira (04). A prática policial na escola de formação do MST foi diversas vezes citada na audiência pública como exemplo da progressiva ação de repressão do Estado brasileiro.

Sob a justificativa do cumprimento de ordem judicial de prisão, oriunda do Juízo de Direito da Comarca Quedas do Iguaçu- PR, a polícia invadiu a sede da Escola sem apresentar mandado judicial físico, apenas uma imagem no celular, o que viola processos legais para tal ação.

A ação truculenta da polícia civil, batizada de “Castra”, envolveu três estados, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, e teve como principal objetivo prender e criminalizar as lideranças dos Acampamentos Dom Tomás Balduíno e Herdeiros da Luta pela Terra, militantes assentados da região central do Paraná.

“Os abusos policiais praticados nas desocupações forçadas nas escolas, incluindo práticas ilegais autorizadas pelo Judiciário, guardam estreita relação com fatos ocorridos na ENFF em que policiais sem mandado judicial invadiram a escola e praticaram diversos abusos, ameaçando, agredindo e prendendo várias pessoas no local”, analisa um dos advogados responsáveis pelo caso, Diego Vedovatto, no relato sobre violações praticadas na ação.

Para ele, a atuação da polícia militar em espaço reservado à construção do conhecimento e a não garantia de proteção ao cidadão, sejam adolescentes ou defensores de direitos humanos, revelam a inversão do papel do Estado na proteção social – de agentes protetores para violadores de direitos. “As escolas, tanto as secundaristas quanto a ENFF, são espaços para promoção dos valores democráticos, que precisam ser protegidos e não violados. Isso revela o avanço do Estado de exceção no país”, complementa.

Violências físicas e psicológicas

De acordo com o estudantes, a ação violenta da polícia militar foi intensificada após a determinação, no dia 30 de outubro, do juiz da Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), Alex Costa de Oliveira, de criação de contexto de “restrição de habitabilidade” nas escolas como forma de pressionar a desocupação do Centro de Ensino Asa Branca (Cemab), em Taguatinga. A medida incluía a suspensão do fornecimento de àgua, gás e energia, o impedimento de acesso de parentes e conhecidos dos estudantes à escola, a interrupção de fornecimento de alimentos e o uso contínuo de instrumentos sonoros.  Segundo a liminar assinada pelo juiz, estas seriam “técnicas [que] servirão para auxiliar no convencimento à desocupação”.

No dia seguinte (31), os alunos relatam que sofreram um conjunto de violações. “Alunos do movimento de desocupação atacaram a escola com coquetel molotov, bombas, armas brancas, ameaças de armas de fogo. Teve violência física aos alunos que estavam na escola e a polícia só interviu depois que o movimento Desocupa estava dentro da escola”, relata o estudante Francisco Franco. O jovem destaca a desproporcionalidade na ação da polícia e número de estudantes na ocupação. “A gente é estudante, éramos cinquenta estudantes dentro de uma escola e tinham mais de trezentos policias do Bope, com tática de guerra para cima de 50 estudantes. A gente está lutando por educação, a gente está dentro da nossa escola, agora uma tática de guerra contra 50 estudantes que estão ali por um ideal”, questiona.

A autorização pelo juiz Alex foi estendida para outras escolas por decisão do juiz do TJDFT, Newton Mendes Aragão Filho. Estudantes que ocupavam o Centro Educacional Gisno, localizado na Asa Norte, relatam que na madrugada do dia 02 deste mês uma viatura do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) estacionou na escola, pessoas percorreram os corredores e faziam intimidações verbais ao alunos que dormiam em uma das salas. “Parou um carro da polícia, as luzes foram desligadas às 4h da manhã, e tinham pessoas circulando pela escola, a gente escutava a batida dos sapatos. Foi isso que a gente teve que lidar cotidianamente”, conta o estudante do Gisno, Marcelo Vinicius. Ambas escolas foram desocupadas nos dias 01 e 04 de novembro, respectivamente.

Um grupo de senadores interpôs junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) uma ação contra o juiz Alex, ao enquadrar a medida do magistrado como prática de tortura. Durante a audiência o deputado distrital Chico Vigilante (PT) reforçou a necessidade de levar o caso para o CNJ. “Um juiz de direito que cuida da Vara da Infância e Adolescência e manda torturar alunos, jovens, com restrições e buzinas intermitentes é tortura (…) Temos que ter coragem de fazer representação, (…), temos q saber se os ministros concordam com essa arbitrariedade”, anuncia.

Ação da polícia civil na Escola Florestan Fernandes. Foto acervo MST.jpg
Ação da policia civil na ENFF, em Guararema, São Paulo. Foto: MST

O uso da força policial também esteve presente na invasão da PM na ENFF. Em depoimento à Delegacia de Polícia de Guararema, o professor e morador da Escola de Formação, Ronaldo Valença, de 64 anos, relatou que, ao ser solicitada pela PM a apresentação dos documentos de identificação às pessoas presentes na entrada da escola, e diante da resposta de Ronaldo de que iria buscar seu documento, o professor conta que um dos policiais pulou a janela de acesso à ENFF, declarou voz de prisão ao professor e o algemou, lançando-o com força ao chão.

Com Parkinson, Ronaldo teve uma costela fraturada constatada por exame de raio-x no posto de saúde local, em decorrência de socos e pontapés de PMs quando já estava imobilizado. O professor ainda relata que, neste momento, foram disparados tiros pela polícia como forma de afastar pessoas que tentarem prestar socorro a ele. Na ocasião mais uma integrante da Escola foi ferida.

Os advogados do caso destacam o fato da polícia portar armas letais contra pessoas desarmadas, apresentando riscos à integridade física de crianças, adultos e pessoas idosas presentes no ato da invasão. Mesmo diante da ausência de resistência por parte das pessoas, a polícia também fez ameaças verbais aos presentes. “Eu acho que vocês vão perder. Eu acho que alguém vai sair morto daqui. Pode ser nós, pode ser vocês”, intimida um policial não identificado em vídeo veiculado pela imprensa.

Violação de processos legais

A ação na Escola Florestan Fernandes apresenta, segundo o corpo juridíco, um conjunto de práticas ilegais. O descumprimento de normas legais de atuação incluem: a não apresentação de mandado judicial físico determinado pelo Juízo local –  foi apresentado aos advogados presentes na escola apenas imagem de um celular -, a violação de domicilio e o fato dos policias não estarem devidamente identificados, cujo objetivo final é criminalizar a luta popular no país.

Os estudantes relatam que não foi apresentado a eles mandados de reintegração no Gisno, Elefante Branco e Centro de Ensino Médio Setor Oeste (Censo). Na desocupação no Cemab tivemos que sair sem direito a presença e advogados e falaram que a gente tinha uma hora para sair. Quando os advogados chegaram já tínhamos desocupado. Eles só leram o mandado porque pedimos”, diz a estudante, Jéssica Beatriz.

Resposta da segurança pública

Em nota divulgada no dia 04, a Polícia Civil de Mogi das Cruzes, responsável pela ação, informou que o comando foi recebido na ENFF com violência. O comunicado ainda diz que “cerca de 200 pessoas que estavam presentes tentaram desarmar os agentes”. O conteúdo da nota contradiz imagens da câmera de segurança da Escola Nacional, veiculadas nas redes sociais, fotografias registradas e o depoimento de Ronaldo, que relata que não houve resistência à ação ou agressão aos agentes de segurança, ainda mais em decorrência da fragilidade física.

Comanda policial na desocupação da escola em Taguatinha. Foto Correio Brasiliense.jpg
Comanda policial na desocupação da escola em Taguatinha.
Foto Correio Brasiliense

Há contradição também nas versões dos estudantes e poder público do DF. Durante a audiência pública a fala da Secretaria de Segurança Pública do DF foi contestada por estudantes e defensores de direitos humanos. A secretária de Segurança Pública, Márcia de Alencar Araújo, disse de que a orientação do governador Rodrigo Rollemberg (PSB) foi a de “que não fosse feito uso progressivo da força” e que “a presença da polícia foi feita exclusivamente para acompanhar as reintegrações”. Em resposta á fala, os estudantes deram detalhes dos contextos de violência que sofreram e apoiadores mostraram áudio de aluno solicitando socorro. “A secretaria disse aqui não houve violência –  ou desconhece o que ocorreu nas escolas ou está mentindo”, denuncia o conselheiro tutelar, Vinicius Lobão.

Construção de diálogo

O secretário de educação do DF, Júlio Gregório, anunciou a realização de fóruns nas 14 regionais de ensino neste e no próximo ano para debate com estudantes, professores e gestores sobre reorganização do ensino médio – uma das demandas defendidas com intensidade pelos adolescentes. Segundo a assessoria da Secretaria a primeira atividade deve ocorrer no dia 24 de novembro, em Ceilândia. Em consulta, os estudantes disseram desconhecer a atividade, no entanto valorizam a ação. Eles também afirmar lamentar que o desenho da consulta não tenha incluído as contribuição dos adolescentes.