“O que observamos é uma banalização da violência, onde há decisões policiais e não judiciais”, diz juiz

A Renap do Rio Grande do Sul realizou um encontro estadual para debater o estado de exceção, manifestações públicas e formas de resistência
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Por Catiana de Medeiros
Da Página do MST

 

Na medida em que avançam as repressões policiais e de governos contra os protestos populares no país, diversas organizações têm discutido a liberdade de expressão e a luta dos povos pela manutenção de direitos. Somando a esse tipo de iniciativa, a Rede de Advogadas e Advogados Populares (Renap) do Rio Grande do Sul realizou, dias 18 e 19 deste mês, um encontro estadual em Porto Alegre para debater o estado de exceção, manifestações públicas e formas de resistência. O evento, coordenado pelo advogado Jacques Alfonsin, envolveu, entre outras representações, movimentos populares, juízes, estudantes que ocupam universidades e professores.

Nana Sanches, militante do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e coordenadora da Ocupação Lanceiros Negros, no Centro Histórico de Porto Alegre, destacou o papel que o povo organizado teve para frear a crise econômica brasileira e, ao mesmo tempo, garantir o acesso de famílias sem teto à moradia. Ela afirmou ainda que poucas prefeituras brasileiras conseguiram desapropriar prédios que foram ocupados nos últimos anos e que os movimentos populares são “motores do progresso real” ocorrido no país.

“O MLB já enfrentou reintegração de posse com partidos de esquerda e direita. Na Lanceiros Negros estamos conseguindo segurar, mas não é fácil porque, de forma geral, ainda existem poucos defensores da classe trabalhadora. Se não fosse a organização popular, provavelmente, ainda estaríamos na ditadura. Temos que retomar o trabalho de base e nos organizarmos para continuarmos as ocupações”, apontou Nana.

A militante Sem Terra Rosana Fernandes, da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em São Paulo, também participou da mesa de abertura, ocasião em que falou do encontro dos movimentos populares com o Papa Francisco no início deste mês e a importância da organização dos povos de todo o mundo no enfrentamento ao capitalismo, na luta pela democracia e no acesso à terra, teto e trabalho. “A indignação é um valor humano. Precisamos nos indignar contra qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo”, completou.

 

Rosana tratou da criminalização que os movimentos populares, como o MST, vêm sofrendo, especialmente por meio de ações da grande mídia e da polícia, que, respectivamente, tem negado o protagonismo da luta popular e atuado de forma truculenta e arbitrária nas manifestações. Ela relatou a invasão policial ocorrida no último dia 4 de novembro na ENFF e a conclusão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao libertar no mês de outubro o preso político Valdir Misnerovicz, de que o MST é um movimento legítimo e tem direito de lutar pela democracia e a reforma agrária. “Criminalizar os movimentos populares significa criminalizar a luta. E nós dizemos que lutar não é crime, é um direito”, disse.

Ela também manifestou o apoio dos Sem Terras aos estudantes que estão ocupando escolas, universidades e institutos federais contra os retrocessos na área da educação, como o Projeto Escola Sem Partido, a Reforma do Ensino Médio e a PEC 55/241, que congela investimentos públicos por 20 anos.

“O projeto de escola do capitalismo é sem consciência crítica e tem fortalecido visões de mundo preconceituosas, que colocam estatísticas acima da valorização do ser humano. Pensar escola sem partido é o mesmo que retirar processos de formação humana, é valorizar a competitividade e a individualidade”, argumentou.

O juiz de direito Roberto Arriada Lorea declarou que o que preocupa a Associação Juízes para a Democracia (ADJ), da qual faz parte, é a atuação do poder judiciário, que “está longe de ser técnica”, e da polícia, que tem agido com repressão nas manifestações populares.

“O que observamos é uma banalização da violência, onde há decisões policiais e não judiciais. Isso compromete a cidadania e coloca em xeque o Estado Democrático de Direito. Nós, juízes, não temos sido capazes de usar a Constituição com a devida eficácia, de modo a prevenir o retorno desse estado de exceção que estamos vivendo, que incentiva os policiais a se sentirem à vontade para invadir uma escola e agir de forma violenta. Muitos juízes também estão sendo perseguidos por defenderem a liberdade de expressão e de colocarem o seu serviço a favor da cidadania”, denunciou Lorea.

José Carlos Moreira, criminalista e ex-integrante da Comissão de Anistia e da Verdade do Ministério da Justiça, reforçou a necessidade de manter viva a “memória da dor e da resistência”, que foi construída ao longo dos anos contra todas as formas de repressão social.

“A modernidade acaba invisibilizando a sua própria origem, mas um projeto de sociedade que não dá valor à repressão que sofreu é frágil. Não podemos esquecer o nosso passado, principalmente o mais traumático. A modernidade apresenta a exceção como se fosse exceção, mas ela é regra. O genocídio, o colonialismo e o preconceito são regras. Temos que parar de pensá-los como exceção e começar a pensá-los como regra que acontece o tempo todo. A nossa saída é a luta nas ruas contra a retirada de direitos”, finalizou Moreira.