Sobre a liberação da venda de terras para estrangeiros no Brasil
Por Luiza Dulci
Do Brasil Debate
Terra, capital e trabalho compõem a clássica tríade dos fatores de produção que embasam as análises e cálculos econômicos desde a Economia Política, não havendo, portanto, atividade econômica que prescinda da combinação destes fatores. Na atual conjuntura de mudanças que se abate sobre o Brasil e o mundo, muito tem se falado dos movimentos do capital e seus impactos sobre o trabalho. Entretanto, a questão da terra – tanto rural quanto urbana – é pouco discutida, apesar de ser peça-chave para a compreensão da dinâmica capitalista contemporânea.
Além de ser a guardiã de riquezas imateriais e tradições culturais, a terra possui relação direta com três dimensões fundamentais da soberania nacional: alimentar; hídrica; e energética. Todas elas encontram-se sob ameaça em função das recentes medidas tomadas pelo governo ou de outras em discussão no Congresso Nacional. Até o momento, o maior ataque foi a entrega do Pré-Sal. Mas a venda do patrimônio e das riquezas nacionais segue com o projeto de liberação das normas que versam sobre a venda de terras para estrangeiros.
A legislação brasileira em vigor sobre este tema, a Lei 5.709/1971, impõe limites à compra de terras por estrangeiros, inclusive para empresas brasileiras com controle acionário estrangeiro. A Constituição de 1988 tratou da matéria – em seu art. 190 – mas ela nunca veio a ser regulamentada, dada a complexidade do tema e da multiplicidade de interesses em jogo.
Anos mais tarde, em 1998, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu parecer que reinterpretou a orientação da lei de 1971 e abriu a possibilidade de compra de terras brasileiras por empresas nacionais com controle estrangeiro. Este entendimento veio a ser revisto em 2010, por solicitação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e resultou em novo parecer da AGU que retomou as restrições da comercialização de terras para estrangeiros no país.
A regulamentação da questão via atualização da legislação está em discussão no Congresso Nacional por meio do Projeto de Lei (PL) 2.289/2007, ao qual encontram-se apensados outros PLs, dentre eles o PL 4.059/2012, que propõe a liberação quase que irrestrita da aquisição de imóveis rurais a estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas. O PL de 2012 foi destacado como uma das prioridades da Frente Parlamentar Agropecuária e apresentado ao presidente Michel Temer, ainda na condição de interino, como uma das questões em negociação com a bancada ruralista na negociação do impeachment. Atualmente ele encontra-se em regime de urgência para votação na Câmara dos Deputados.
O interesse do atual governo em regulamentar e ampliar a presença de estrangeiros nas operações de compra e venda de terras no Brasil não se vê descolado de movimentos contemporâneos nos mercados globais de terra, os quais têm sido chamados de land grabbing.
Devido a conjunção das crises econômica, hídrica, climática, energética e alimentar, desde os anos 2000 e mais intensamente após 2008, a busca por terras cresceu em todo o mundo. Dados do Banco Mundial mostram que, antes de 2008, a comercialização global de terras crescia em média 4 milhões de hectares por ano. Entre 2008 e 2009, foram mais de 56 milhões de hectares agrícolas comercializados, sendo cerca de 70% concentrados na África.
Estudos sobre a América Latina e o Brasil apontam na mesma direção. Dados do Incra de 2008 (anteriores ao período de maior intensificação da corrida por terras) apontam que estrangeiros detinham cerca de 34 mil imóveis rurais no país, sendo 34% detidos por pessoas jurídicas. Os 34 mil imóveis somavam à época 4.037.667 hectares de terras, sendo mais de 83% classificados como grandes propriedades (acima de 15 módulos fiscais). Os dados são, contudo, imprecisos, em função das dificuldades de produção e disponibilização de informações territoriais por parte do Incra e da relação deste com os cartórios que registram as informações de posse. Soma-se a isso toda a sorte de manobras que sempre envolvem laranjas e grileiros.
A expansão das fronteiras agrícolas ou a reconfiguração dos espaços rurais têm sido marcadas pelo cultivo de commodities e pelo advento das chamadas flex crops, plantios flexíveis, que tanto servem à alimentação ou à produção de biocombustíveis, como é o caso da cana-de-açúcar. A produção de alimentos (food), fibras/ração (fiber/feed), floresta (forest) e combustível (fuel) – os 4 Fs em inglês – sintetizam o caráter da agricultura de exportação, diretamente associada ao capital internacional e à corrida mundial por terras.
Além da produção primária, o mercado de terras torna-se rentável pelo desenvolvimento de outras partes da cadeia produtiva das commodities e atrai empresas de maquinário agrícola, pesticidas, infraestrutura em geral, empreiteiras e construtoras de estradas e hidrovias. Acrescenta-se a estas dimensões produtivas, o aspecto da especulação, propriamente financeiro, que hoje é componente fundamental do setor agrícola.
Tradicionalmente tida como um ativo pouco líquido, bancos, fundos de pensão e outros agentes financeiros têm tido na terra fontes rentáveis para seus investimentos. Outros atores e interesses que têm tido protagonismo nas transações comerciais de terra no Brasil incluem capitais do próprio setor do agronegócio; capitais de setores sinérgicos e convergentes no agronegócio; capitais não tradicionais no agronegócio como empresas de petroquímica, automobilística, logística e construção; capital imobiliário em resposta à valorização das terras; Estados ricos em capital, mas pobres em recursos naturais; fundos de investimento; investimentos em serviços ambientais e empresas de mineração e prospecção de petróleo, conforme mapeamento de Wilkinson, Reydon e Di Sabbato (2012).
A abertura de nosso mercado de terras a estrangeiros, pessoas jurídicas e até mesmo Estados nacionais, têm consequências drásticas para o país. O ataque à soberania é somente um dos aspectos. Ressalta-se, ainda, os potenciais impactos desta abertura sobre a dinâmica de preços das terras do país.
E ainda as pressões sobre a agricultura familiar e a reforma agrária, indígenas, quilombolas e outros segmentos de povos e comunidades tradicionais, com reflexos diretos sobre a produção de alimentos saudáveis e os direitos das populações do campo. Por fim, destaca-se a reprodução de um dos maiores mecanismos de perpetuação da desigualdade no Brasil, a concentração da terra, que é também concentração de riquezas e poder.
* Luiza Dulci é economista (UFMG), mestre em sociologia (UFRJ) e assessora do deputado federal Patrus Ananias (PT/MG).