“As feiras são resultado de um processo organizativo do MST e um traço muito forte da cultura do nosso povo”
Por Leonardo Fernandes
Da Página do MST
Foto: Brigada de Audiovisual Eduardo Coutinho
Entre os dias 4 e 7 de maio de 2017, o Parque da Água Branca, na zona oeste de São Paulo, dará lugar à 2ª Feira Nacional da Reforma Agrária, realizada pelo MST.
A primeira edição do evento ocorreu entre os dias 22 e 25 de outubro de 2015, na capital paulista e reuniu cerca de 800 trabalhadores e trabalhadoras rurais de 23 estados do país, mais o Distrito Federal. Ao todo, foram vendidas 220 toneladas de produtos de 80 cooperativas e associações ligadas ao MST. O evento também contou com a praça de alimentação ‘Culinária da Terra’, que serviu mais de 10 mil pratos típicos das regiões do Brasil, além de shows culturais e espaços de debate. Mais de 150 mil pessoas passaram pelo Parque da Água Branca durante os quatro dias de atividades.
Esse ano, a Feira Nacional da Reforma Agrária retorna à maior cidade do país, para promover a agricultura camponesa, a luta pela Reforma Agrária e a alimentação saudável.
Débora Nunes, do setor de produção do MST, explica em entrevista como o movimento se prepara para o evento, e quais são os fundamentos da proposta.
Confira:
Qual o objetivo da realização da 2ª Feira Nacional da Reforma Agrária?
Realizar uma feira, sobretudo em um grande centro urbano como São Paulo, significa possibilitar a aquisição de produtos oriundos dos assentamentos e acampamentos da Reforma Agrária de todo o Brasil, produzidos de forma agroecológica, em diálogo com o meio ambiente. Isso também faz com que as pessoas conheçam outras dimensões da Reforma Agrária, da luta pela terra e percebam que é a integração de todas essas dimensões o que garante a realização de uma feira dessas proporções. Então, a feira não é só um espaço de comercialização, mas é um espaço de reafirmação da importância da luta pela terra, da luta pela Reforma Agrária e como isso se relaciona com questões estruturais no conjunto da sociedade.
Quais são essas outras dimensões da vida no campo, da luta pela Reforma Agrária, e que estarão representadas na Feira?
Além da comercialização, a feira possibilita trazer outros aspectos do que existe nos assentamentos, nos acampamentos e na luta pela Reforma Agrária como um todo. Isso implica na comercialização da produção, mas também na educação, na saúde, na cultura que produzimos nos nossos assentamentos. Enfim, é uma expressão da diversidade dos sujeitos que compõem o cotidiano Sem Terra em cada canto do país. Dessa forma, a feira também traz a expressão cultural do Movimento através da culinária da terra e de outras formas de cultura, reunindo em torno dela a própria diversidade que existe no Brasil.
Trata-se de um evento de grandes proporções. Como o MST se prepara para ele?
As feiras são resultado de um processo organizativo do MST, mas, também são um traço muito forte da cultura do nosso povo. A Feira Nacional reúne as diversidades de todas as regiões do país para serem partilhadas aqui em São Paulo. Mas outras feiras já acontecem ao longo do ano em vários municípios de vários estados. Até porque esse é um dos nossos principais canais de diálogo com a sociedade. É uma forma de, primeiramente, eliminar a figura do atravessador, mas também de estabelecer um diálogo com a população das cidades. A decisão de fazer a Feira Nacional em São Paulo foi justamente no sentido de intensificar, ampliar esse diálogo. Para isso, existe todo um processo organizativo que ocorre nos estados, para mobilizar e preparar o povo Sem Terra para esse momento.
E como se trata de um elemento cultural muito forte do nosso povo, a feira já faz parte não só do calendário, mas da mística do movimento. Então há todo um processo de preparação, de envolvimento, de construção coletiva, para que de fato nós consigamos expressar através da feira o que já construímos através da nossa luta, e o que ainda queremos construir.
De que maneira a Feira dialoga com o projeto que o MST tem para o campo?
Quando nós trazemos para São Paulo a Feira Nacional, com produtos agroecológicos, e outras dimensões da nossa luta, nós também estamos reafirmando que temos um projeto para a agricultura, que há um modelo que defendemos, ou seja, um projeto de Reforma Agrária popular, que possa resolver questões estruturais do campo, como a preservação do meio ambiente, a defesa da biodiversidade, a produção de alimentos saudáveis. Mas também é uma forma de dizer que será a realização da Reforma Agrária que possibilitará resolver problemas estruturais do conjunto da sociedade. Esse é um processo organizativo que já existe, e que é intensificado com a Feira Nacional. Uma forma de partilhar aquilo que há de melhor, construído pela nossa organização.
Esse projeto do MST para a agricultura tem a alimentação saudável na centralidade do debate. Porque?
Hoje, falar de alimentos saudáveis é falar de saúde pública. As pessoas têm adoecido, têm morrido de doenças como o câncer, e não temos dúvida que essa situação tem uma relação direta com aquilo que a gente come. Por isso é uma tarefa política do MST produzir alimentos saudáveis e promover esse debate com toda a sociedade. Porque o alimento saudável não pode ser um privilégio de um segmento que tem poder aquisitivo que lhe permite aceder a esse ou aquele produto. Por isso, não se trata só de produzir alimentos saudáveis, mas também de dialogar com o conjunto da sociedade sobre esse tema. O estado precisa deixar de financiar o agronegócio, o modelo que destrói, que não distribui renda, não gera trabalho, e priorizar um modelo que realmente beneficie a todos. Nesse sentido, a Feira Nacional não comercializa mercadoria, mas oferta à sociedade alimentos que carregam toda a simbologia política da luta, da organização, e da possibilidade de mudança do modelo de agricultura e de sociedade.
Como e de que forma surge o debate sobre a alimentação saudável dentro do movimento?
Em sua origem, o MST surge a partir de uma demanda social, que naquele momento era o direito à terra. Com o avanço da luta, e de acordo com outras necessidades que foram surgindo, sobretudo por causa das contradições do modelo hegemônico de agricultura, o movimento foi compreendendo que precisávamos ir na direção contrária desse modelo. Não só no que se refere à democratização da terra, mas também sobre o uso que daríamos a essa terra. Nesse sentido, a produção de alimentos saudáveis tem sido a nossa principal tarefa, porque acreditamos que essa é a melhor forma de dialogar com a sociedade. Muitas vezes, quem está na cidade não consegue fazer essa relação, mas há um encontro cotidiano de quem está na cidade com os camponeses, com os Sem Terra, no momento em que tomamos café da manhã, quando almoçamos, quando jantamos. Essa reflexão nem sempre é feita: “de onde vem a nossa comida?” E nós só conseguimos propor um modelo diferenciado se também produzirmos um alimento diferenciado. Por isso o modelo agroecológico é prioridade dentro da nossa estratégia.
Quais são os projetos de agricultura que estão em disputa?
Nós temos no Brasil um modelo tido como hegemônico, que é o modelo do agronegócio. Um modelo que concentra terra, que produz através do uso intensivo de veneno, que não gera trabalho, não fixa o trabalhador e a trabalhadora no campo. Um modelo que gera profundas desigualdades sociais, que destrói o meio ambiente, e que é priorizado pelo estado, pelos governos. Ou seja, é um modelo que não traz benefícios para o conjunto da sociedade, pelo contrário, o agronegócio tem gerado problemas estruturais como o êxodo rural, que por sua vez gera o inchaço das cidades, o problema da mobilidade urbana, etc.
E tem o modelo da pequena agricultura, da Reforma Agrária, da agricultura camponesa, que vai justamente no sentido contrário ao agronegócio. É um modelo que pressupõe a democratização da terra, que estabelece outra forma de relação com os bens da natureza, com a biodiversidade, com os recursos naturais. Um modelo que produz alimentos para alimentar a sociedade, que possibilita a geração de vida no campo, e que contribui efetivamente para a solução de problemas estruturais. Por isso, a nossa feira busca dialogar com esse aspecto, ou seja, com o modelo de agricultura que queremos para o nosso país. E como a Reforma Agrária pode dar solução a esses problemas.
Há um evidente caráter político na realização da Feira Nacional, para além do benefício econômico dos agricultores e agricultoras?
Claro. Há uma questão muito interessante, que é o fato de que nem sempre as pessoas conseguem vincular a Feira da Reforma Agrária ao processo de luta dos trabalhadores do campo. Muitas pessoas dizem: “ah, eu gosto daqueles Sem Terra que vendem produto agroecológico, barato, mas aqueles Sem Terra que ocupam, que fecham estradas, que fazem a luta pela Reforma Agrária, esses não”. Ocorre que é o mesmo sujeito. Então é preciso reafirmar esse caráter político da Feira da Reforma Agrária. Não se trata somente de um espaço de comercialização.
É um espaço de reafirmação da necessidade da Reforma Agrária, pois só é possível realizar uma Feira Nacional, ou as diversas feiras regionais, porque houve um processo de luta e de organização. Houve ocupação de terra, derrubada de cerca, ou seja, uma construção coletiva do movimento, para que pudéssemos produzir esses alimentos, uma vez que o estado não cumpre com a sua tarefa. Então a Feira é o espaço no qual dizemos para a sociedade que precisamos fazer a Reforma Agrária para resolver o nosso problema, dos trabalhadores Sem Terra, mas também para resolver o problema de quem vive nas cidades, e que também precisa enfrentar os problemas estruturais que atingem a toda a sociedade.
O que a população de São Paulo deve esperar da 2ª Feira Nacional da Reforma Agrária?
Do dia 4 ao dia 10 de maio a população de São Paulo vai ter a oportunidade de desfrutar do sabor, do cheiro, da cultura e da diversidade do nosso país, do campo, da roça. Não só através da aquisição dos alimentos produzidos pelos Sem Terra de todo o Brasil, mas também poderão experimentar da cultura, conhecer os nossos processos de educação, a nossa história, a luta do povo Sem Terra. Será uma ótima oportunidade para que todos se somem a essa luta que é de toda a sociedade.