“O argumento de eleições indiretas tem base conservadora”, afirma Moroni
Por Lizely Borges
Da Página do MST
Foto: Lydiane Ponciano
Na manhã desta quarta-feira (31) a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 67/2016), de autoria do senador Reguffe (sem partido-DF), que prevê a realização de eleição direta para presidente e vice-presidente da República nos casos em que os cargos fiquem vagos ainda nos três primeiros anos do mandato presidencial.
A medida, apoiada pela oposição ao governo de Michel Temer (PMDB), é uma das grandes apostas para devolver à população o direito de escolha dos cargos representativos, diante de um contexto de grave crise institucional, crise esta, potencializada pela delação de um dos donos do grupo JBS, Joesley Batista, à Procuradoria-Geral da República (PGR). Na deleção, o empresário revela o envolvimento do presidente no pagamento do silêncio do deputado cassado e ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e do operador Lúcio Funaro, ambos presos na Operação Lava-Jato.
Envolvida em uma série de denúncias, a bancada de apoio ao governo tem argumentando que a realização de eleições diretas fere a Constituição.
Em entrevista à Página do MST o membro do colegiado do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, José Antônio Moroni, aponta que os argumentos de inconstitucionalidade da medida “tem base conservadora”, e que apenas eleições diretas e amplas, dirigidas ao conjunto dos poderes instituídos, pode conferir legitimidade a um “sistema político falido”. Moroni também trata nesta conversa da necessidade da reforma política, já visto a tradição autoritária do sistema político e a imposição dos interesses econômicos sobre os populares.
Confira a entrevista completa:
MST: O senhor falou recentemente que o nosso sistema político está falido porque não é alicerçado na vontade popular, mas no poder econômico. Dado os fatos recentes, com a delação pela JBS e as reações no Congresso Nacional, em quais posturas fica evidente que nosso sistema político é alicerçado nos interesses econômicos?
Moroni: Todo o nosso sistema político envolvendo a questão da representação, comunicação e judiciário, está a serviço dos interesses econômicos dos grandes grupos. Basta ver a questão da crise política como o judiciário, mídia, a academia, parlamentares – a maioria, colocam em primeiro lugar a economia. Vemos isso no discurso de que “o país não pode parar”, o “país começou a andar”, que a “substituição do Temer neste momento prejudicaria a economia”. Fica então evidente que o todo o estado está organizado para atender interesses do mercado e não da política, no sentido de bem comum. [Durante o Fórum de Investimentos Brasil 2017, na segunda-feira (30), em São Paulo, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou aos empresários presentes que a propostas da Câmara estão em sintonia com a agenda do mercado financeiro].
Vemos isso no debate sobre reformas previdenciária e trabalhista. Você tem uma crise econômica e quem vai pagar a conta não são os ricos ou as grandes empresas com o aumento de impostos. Vão mexer na Previdência, que é a defesa da proteção social. Assim, são os trabalhadores que têm menor poder aquisitivo que pagarão a conta. Ao flexibilizar as leis trabalhistas, o estado vai tirar recursos desta parcela da população para dar ao mercado, e com isso garantir o pagamento da dívida externa. Para você realmente alterar essa lógica deveria ser sustado o pagamento da dívida. Ela é hoje o principal instrumento de transferência de renda ao inverso, que transfere renda dos mais pobres aos mais ricos.
O senhor também declarou que temos uma tradição de interromper o andamento dos mandatos presidenciais de modo que o último período de 27 anos foi uma exceção. Esse caráter autoritário do sistema política brasileiro é algo tão cristalizado e natural a ponto da população brasileira, muitas vezes, nem se dar conta desta característica do sistema político?
O autoritarismo do estado e das instituições se naturalizaram no país. É como se fosse natural desrespeitar o elemento básico da democracia – o respeito ao voto, ou seja, quem ganhou a eleição que governe até entregar a gestão ao próximo eleito. Nem isso no Brasil é respeitado. Toda vez que, nesta democracia burguesa, setores começam a colocar em xeque os privilégios das elites brasileiras, esta elite, formada pelo agronegócio, tradicionais latifundiários e o sistema financeiro, se articula para, sem nenhum pudor, romper com o voto. É uma elite extremamente autoritária e utilitarista, porque se vale do discurso democrático quando lhe convém, quando não afeta em nada seus privilégios. No último período, as ações de combate ao machismo, racismo, homofobia foram uma afronta a eles. Ter na universidade negras e negros, um espaço que eles entendem como deles, ainda que seja uma instituição estruturada com recurso público.
Dentro desta crise institucional, potencializada após delação da JBS, temos como saídas a cassação da chapa pelo TSE, aprovação de PECs de eleições diretas e a aceitação pela Câmara dos Deputados dos pedidos de impeachment, embora sejam processos mais morosos. O senhor declarou que a opção de menor impacto para o conjunto da população é a renúncia de Michel Temer, mas o governo já demostrou pouca preocupação com a baixa aprovação popular – menos de 4%, e atendimento à demandas populares. Como pressionar um governo para sua renúncia quando ele pouco se preocupa com interesses populares?
A característica de um governo fruto de um golpe é o não compromisso com setores populares ou mesmo preocupação com a repercussão internacional de seu mandato. Vemos que este governo foi colocado naquele lugar, neste momento, para dar andamento às reformas e fragilizar as políticas sociais. Um governo que nem se propõe a disputar as próximas eleições, tal é o compromisso com o capital financeiro. Diante desta conjuntura, só temos duas possibilidades: ou os movimentos populares demarcam nas ruas, quase beirando a convulsão social, ou é realizada uma ruptura interna deste bloco. Como eles já estão avaliando que o Temer não vai conseguir entregar o que ele prometeu, o governo já se esforça na defesa das eleições indiretas, uma transição conservadora.
Do nosso ponto de vista, só as eleições diretas podem devolver alguma legitimidade ao sistema político. Eu defendo que seja incluída nessa proposta de diretas não apenas a eleição para presidente, mas também para Congresso e governadores porque todo o sistema está contaminado, não é só o executivo.
As críticas às PECs (67/16, no Senado e 227/16, na Câmara) que tramitam no Congresso sustentam-se no argumento de que são medidas inconstitucionais. Já os defensores afirmam que não violam a Constituição Federal porque não ofendem à nenhuma cláusula pétrea. Na sua avaliação, PECs de adiantamento das eleições são inconstitucionais?
Qual das eleições – diretas ou indiretas – é cercada de maior caráter constitucional? As eleições diretas resgatam o princípio básico de que todo o poder emana do povo, como determina o artigo 1º da Constituição Federal. O argumento de que é inconstitucional tem base conservadora, que é ter um sistema político não alicerçado na vontade popular. Hoje, neste contexto de crise, não temos um mecanismo institucional para exercício da soberania popular; ficamos reféns da justiça ou do parlamento. A única possibilidade é as ruas, mas este não é um mecanismo institucional. Somos então totalmente alijados da solução da crise. Uma eleição indireta fragiliza e muito o processo democrático. Independentemente de quem for eleito, não sairá com legitimidade, e será uma continuidade do processo do golpe. Eleito por esse parlamento, não terá legitimada e reconhecimento como governo.
Vemos um levante progressivo das ruas, mas parte significativa da população está distante por um descrédito da política profissional, ainda que sofra com as medidas de austeridade do governo. Como podemos reaproximar o cidadão da política para que se reconheça como participante da construção do debate público?
Não é apenas no Brasil que vemos o descrédito da questão pública pelo cidadão, infelizmente é um processo mundial. Nesse processo, é tirada complementarmente a noção da dimensão pública, de coletividade. Tudo fica centrado no individual, sustentado na lógica de esforço individual e prosperidade. E nesta conjuntura, em que você tem o descrédito da ação pública somado à ideologia neoliberal [doutrina que defende a absoluta liberdade de mercado e o estado mínimo] há dificuldade em mobilizar as pessoas, já que não veem na política a solução dos problemas, mas no seu esforço pessoal próprio. Vence o discurso de que venceu “porque estudou, se esforçou” e perde-se a dimensão do coletivo. Para que a gente tenha uma mobilização mais ampla, vamos ter que primeiro entender como o mecanismo individualismo se impõe, para então combatê-lo. Um processo que remete a um longo prazo e a uma ampla mobilização política.
Os movimentos e organizações retomam a defesa de uma Constituinte Soberana e Popular e ganha força o trabalho da Plataforma pela Reforma do Sistema Político, com base na crítica de que a proposta de reforma política em tramitação na Comissão Especial na Câmara, do relator Vicente Cândido (PT-SP), é insuficiente. Quais são as bases de uma reforma política efetiva que resultará no fortalecimento do sistema político?
Para a questão do processo eleitoral, um dos blocos da reforma política, é fundamental o fim do financiamento empresarial de campanhas. Outra demanda é que o sistema de votação enfrente a sub-representação das mulheres, da juventude, de indígenas, de camponeses, da população negra, para que as instâncias de poder, não apenas o parlamento, não seja como a que temos hoje: um poder branco, masculino, heterossexual, de poder repassado de família para família. Mas só estas alterações não são suficientes. Se não for associado ao debate público, e à reorganização partidária sobre outras formas reorganização partidária política, inclusive para entender a dinâmica da sociedade. Outro bloco da reforma diz respeito à soberania popular, a políticas públicas e a um sistema político baseados nos interesses populares. E nisso os mecanismos de participação direta são fundamentais porque tiram o poder da representação e coloca nas mãos do povo. Assim, em determinadas questões como privatizações, concessões, grandes projetos, você pode submeter a decisão ao povo por meio de uso de instrumentos institucionais como referendos, plebiscitos e o voto popular. Assim, você reorganiza o processo de decisão e vai rompendo com a hierarquização das instituições.
Como a população pode ficar atenta, acompanhar e participar dos rumos da política nacional, considerando que a gente tem um ritmo muito acelerado de ações e blindagem a certas informações?
O ritmo acelerado das reformas inviabiliza que a população, de maneira geral, saiba o que está acontecendo. Os meios de comunicação desempenham um papel fundamental nessa sensação. Vemos um pensamento único nos veículos e favoráveis às medidas, não há voz diferente disso. Eles trabalham também com a desinformação. É possível ver isso na reforma trabalhista, sobre a qual os veículos usam do argumento de que a reforma gerará mais empregos. Desde quando a precarização do trabalho deve gerar mais empregos? Nunca. Pelo contrário, a proteção do trabalho é que gera empregos.
As pessoas que estão na luta cotidiana, procurando emprego, que levam duas horas para ir e voltar do trabalho, muitas vezes não têm tempo para acesso à informação e para pensar nessas medidas. Eu acredito que a gente deva caminhar para estratégias de ruptura. Não adianta pensar a solução para a crise que vivemos, através do sistema político que temos hoje. É acompanhar, denunciar e pressionar parlamentares sim, mas temos que criar uma força na sociedade com novas leituras, novos coletivos com força política, capazes de provocar a ruptura da propriedade da terra, dos meios de comunicação, do machismo, do racismo. Ficar apenas com processos de negociação, via parlamento, a gente já viu que não dá certo.
*Editado por Leonardo Fernandes