A história do colégio que ficou sem terra
Por Cristina Chacel
Do Projeto Colabora
Hoje à noite tem aula no campo
Seu Antônio, pele preta e cabeça branca, vai estudar. Ele é um dos inscritos na escola inaugurada na quarta-feira, 16 de agosto, no acampamento do Movimento Sem Terra (MST) no município de Coronel Pacheco, na Zona da Mata Mineira. Seu Antônio sabe chegar. Conhece de cor e salteado o caminho da escola. A vida inteira ele trabalhou ali, naquele chão, de sol a sol, na fazenda do patrão. Por isso não estudou. Hoje, ele é um dos camponeses que ocupam a Fazenda São José, parte de um latifúndio improdutivo que tem o nome de Liberdade. Analfabeto, beirando os 70 anos, Seu Antônio vai, enfim, estudar.
Matrículas abertas
Mais de 50 alunos, entre 20 e 70 anos, se apresentaram para frequentar a primeira escola de Minas Gerais autorizada a trabalhar com as diretrizes da Educação do Campo em um acampamento Sem Terra. Escola inédita e legal, reconhecida pela Secretaria Estadual de Educação para funcionar como uma unidade da EJA – a Educação de Jovens e Adultos. Os professores, todos eles camponeses do Assentamento Dênis Gonçalves, ali vizinho, no mesmo município, são contratados e remunerados pelo estado. Foram formadas três turmas. Duas do Ensino Fundamental, divididas entre os anos iniciais e os anos finais, e uma do Ensino Médio. O tempo é o dos supletivos. De um ano e meio a dois, dependendo do segmento. O diploma é concedido pela Escola Estadual Maria Ilydia Resende Andrade, de Juiz de Fora.
Teve céu estrelado na noite de inauguração
A festa começou com uma assembleia, para explicar o funcionamento de tudo. Quem a conduziu foi a professora Elisângela Carvalho, a Elis. Depois teve roda de conversa, quando quem se inscreveu para estudar deu um passo à frente e contou sua história. Como seu Antônio, que nunca estudou. E ainda teve canto, bandeira e grito de ordem: “Educação do campo. Direito nosso, dever do Estado”.
A alegria durou pouco
No dia seguinte, 17 de agosto, a má notícia se espalhou como rastilho de pólvora entre as 315 famílias que há três meses acampam na Fazenda São José, no latifúndio que tem, por ironia, o nome de Liberdade. Em última e definitiva decisão, o colegiado de desembargadores de Belo Horizonte concedeu a reintegração de posse ao proprietário da terra, Horácio Dias. Sem apelação, a ordem é de despejo. Em que prazo, ainda não se sabe.
A luta continua
Assentada no Dênis Gonçalves, Tatiana de Souza Gomes, a Tati, da Coordenação Regional do MST na Zona da Mata de Minas, acompanha de perto o processo. É dela a memória: a ocupação aconteceu na madrugada de 4 de junho e, já no dia seguinte, o proprietário entrou com o pedido de reintegração de posse. Entrou errado, numa vara criminal, por isso o pedido levou uma semana para chegar à Vara de Conflitos Agrários do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Mas foi só chegar e o juiz auxiliar Pedro Candido Fiuza Neto não perdeu tempo. Em menos de 24 horas, no dia 12 de junho, concedeu a reintegração de posse. Sem oitiva ou diligência. O outro lado simplesmente não foi considerado.
Favas contadas
O juiz titular da Vara Agrária de Minas, a primeira do Brasil, criada em 2002, é Octávio de Almeida Neves – casualmente primo do senador Aécio Neves. Uma rápida pesquisa no Google vai mostrar a quem quiser saber que o meritíssimo não tem apreço pela causa agrária. É um campeão de ordens de despejo. Assumiu o posto em janeiro de 2013 e, em poucos meses, proferiu nada menos que 53 ordens de despejo, sem que ritos constitucionais tivessem sido cumpridos. Foi formalmente acusado pelo Ministério Público, INCRA, Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo e Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas de descumprir regras processuais na concessão de liminares para a reintegração de posse de terras ocupadas por trabalhadores rurais. Pelo visto, fez escola. Desde janeiro deste ano, Octávio Neves dá expediente com substituto na 15ª Câmara Cível do TJMG, estando as causas agrárias a cargo do auxiliar Fiuza.
Mesa de diálogo
O derradeiro canal de entendimento é a Mesa de Diálogo para a resolução de conflitos. Nela, o MST vai apresentar projetos e realizações que fortalecem a ocupação e constrangem Executivo e Judiciário de Minas a negociarem uma solução digna para as famílias acampadas. Além da Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, também a Prefeitura de Coronel Pacheco está diretamente envolvida na disputa, uma vez que 30 crianças do acampamento, de 1 a 12 anos, frequentam a creche de Educação Infantil e as escolas do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, de responsabilidade da municipalidade.
Despejo
À frente do grupo, Tati, da coordenação regional do MST, mantém a firmeza ao comentar o provável desfecho desfavorável para os camponeses do Acampamento da Fazenda São José, pedaço de terra do Complexo Liberdade: “A reversão da decisão é improvável. Mas a luta pela terra é um processo. Às vezes, a reintegração de posse faz parte. O despejo é a pior parte, muito doído. Mas a gente não pode recuar. A gente não pode se desmobilizar”, diz. “Independentemente do despejo, as famílias têm que ser assentadas. Mas elas não podem ir para a rua. E nós não vamos para a rua. A luta não para”.
Em Brasília, tempo fechado
Se em 2013, com o PT no poder e a causa agrária abrigada em ministério, a luta já era dura, agora o tempo fechou de vez. Com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário pelo governo de Michel Temer, o processo de seleção e homologação de beneficiários da reforma agrária está parado. “Não existe mais reforma agrária”, queixa-se Tati.”O TCU alega ter encontrado uma série de irregularidades na seleção e homologação das famílias e isso serviu para interromper os trabalhos. Nas superintendências regionais, informam que não saíram novos critérios para o processo de seleção e homologação e nem cadastramento. Parou tudo”, afirma ela.
Fecharam a porta de entrada e abriram a de saída
O programa de reforma agrária acabou na antessala da Presidência da República. Desde 30 de maio de 2017, funciona sob o guarda-chuva da Casa Civil. Cortes orçamentários e a publicação da Medida Provisória 759, às vésperas do Natal de 2016, indicaram uma mudança radical na política agrária brasileira. Em todo o país, fecharam a porta de entrada na reforma agrária – ninguém entra – e abriram a porta de saída: por determinação do presidente Temer, é ação prioritária do INCRA, em escala nacional, expedir a titulação das terras de famílias assentadas. Assim, as famílias que hoje têm a concessão de uso são obrigadas a pagar pela terra. Quem não pagar, em 20 anos, perde a propriedade. Sem acesso aos créditos e benefícios do programa de reforma agrária, que está parado, e com o país em severa recessão, o epílogo dessa história é previsível. A titulação em massa, como quer o governo, em substituição ao Contrato de concessão de Uso, devolve as terras à lógica do mercado. As famílias assentadas são forçadas a vender seus lotes e, de quebra, o MST, asfixiado, sente o golpe.
Como se não houvesse amanhã
Enquanto isso e, todas as noites, as aulas prosseguem no acampamento da Fazenda São José. Tudo indica que a nova escola, por ironia, ficará sem terra. Mas uma escola não é feita de terra ou de paredes, é feita de gente. E assim ela vai continuar, itinerante. Para onde os alunos forem, a escola vai junto. Não pode e não vai parar de funcionar. Alunos e professores continuam vinculados à Secretaria Estadual de Educação. Sem mais recurso na esfera judicial, o processo volta à Vara Agrária para execução. O desafio, agora, é obter do juiz Fiuza prazo razoável para resolver a situação das 315 famílias que ocupam a Fazenda São José.
*Editado por Leonardo Fernandes