Entenda o contexto da luta pela água em Correntina-BA
Do Site do MAB
Não é de hoje que as riquezas naturais da região do Oeste da Bahia estão em disputa. Populações ancestrais de ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas, comunidades tradicionais de “Fechos de Pasto” têm enfrentado todo o tipo de violência para defender seu território, o cerrado, a vida e sua própria existência.
Nos anos 70, em meio a ditadura militar, grupos de pistoleiros, forasteiros, grileiros já andavam por aqui, ameaçando a população, sempre contando com a proteção do estado e em muitos casos da própria polícia, uma vez que muitos dos oficiais de justiça na verdade eram os próprios capatazes mandados pelos grandes fazendeiros.
“Primeiro, eles chegaram cercando as áreas, aos poucos, sem cultivar nada, só pra marcar presença, logo em seguida começaram com as monoculturas. A primeira delas foi o eucalipto”, afirma seu Zé, 75 anos, morador de uma das comunidades dos “Fechos de Pasto”, nascido e criado na região, estima-se que sua família esteja por aqui há mais de 300 anos.
Não demorou pra que o povo se mobilizasse em defesa do território. “Quando eles chegaram com o eucalipto foi o momento em que o povo percebeu o que estava ocorrendo e começou a se mobilizar, os enfrentamos sem medo”, afirma seu Zé.
De lá pra cá, o território em que vive hoje encontra-se com menos de 5% da área original.
A guerra travada por aqui já derramou muito sangue. Um dos maiores mártires desta terra foi o advogado Eugênio Lyra, grande defensor dos direitos dos camponeses desta região.
Setembro de 1977, um dia antes de seu depoimento na CPI da grilagem, em Salvador, levou um tiro na testa quando estava à porta de uma barbearia da cidade baiana de Santa Maria da Vitória e ao lado de sua esposa grávida.
Neste contexto, dois grileiros tiveram destaque na tentativa de tomar os “Fechos de Pasto” das Comunidades da região, o Sr. João Branco e o Sr. José Cavalcanti, marcados pela violência, por anos tiraram o sossego dos moradores. Hoje, outro nomes cumprem o mesmo papel.
Em 2012, revoltados com a demora da justiça, posseiros chegaram a prender treze pessoas que atuavam como “seguranças” das empresas, acusados de grilar mais de cinquenta mil hectares de terras nas regiões de Lodo, Morrinho e Gado Bravo. O povo organizado ocupou a sede da fazenda, prenderam os pistoleiros e os levaram para a Delegacia de Correntina. Em pouco tempo foram liberados.
A ameaça das Usinas Hidrelétricas
O contexto da luta se acirrou quando os projetos do grande capital atingiram outros patamares e a cobiça dos grandes empresários se voltou para a geração de energia. Os rios da região passaram a ser vistos como fonte extraordinária de lucro já nos anos 2000.
O projeto envolve a construção de cerca de 39 PCHS (Pequenas Centrais Hidrelétricas), com potencial de mais de 100, um verdadeiro crime do ponto de vista ambiental e social, como avalia Temóteo Gomes, coordenador do Movimento dos Atingidos Por Barragens.
“Se estes projetos forem aprovados, irão inundar uma área de milhares de hectares. Aqui é uma área de cerrado, totalmente preservada, as comunidades que vivem aqui terão toda a sua história, sua cultura ancestral, totalmente inundada. Não vamos permitir”, afirma.
No início de 2015, policiais começaram a distribuir mandatos que permitiam os estudos das áreas para a construção das PCHS, antes mesmo de qualquer estudo técnico, caso não aceitassem, seriam obrigados a pagar uma multa de R$500 por dia.
A ação da polícia, como de costume, foi desproporcional, intimando camponeses, os fazendo assinar documentos, muitos dos quais analfabetos. A falta de informação e as ameaças eram constantes.
“Foi um tempo muito difícil, a polícia vinha em casa e nos forçava a assinar documentos. Eu não tenho estudo, tive que colocar minha digital em um documento que nem sabia o conteúdo”, afirma Dionísio.
Em resposta, ribeirinhos organizados resistiram e acamparam por dias, impedindo as entradas que davam acesso à comunidade. Na ocasião, mais de 100 pessoas disseram não a empresa Data Traffic, responsável pelo projeto da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Arrodeador, no Rio Formoso.
A luta do povo sempre foi em defesa do rio, uma riqueza sem valor, como explica o agricultor que nasceu e se criou ali:
“O rio pra mim é tudo, é a minha vida. Não tem preço não e por ele vamos lutar até o fim de nossas vidas. Nossa luta principalmente é por nossos filhos, nossos netos, que herança vamos deixar pras próximas gerações?”, indaga Seu Dionísio, um dos ribeirinhos que mais sofreu com a repressão policial e o processo de criminalização da luta.
A água em disputa
O agronegócio, já instalado na região, sempre cobiçou o bem mais preciso dos ribeirinhos: a água.
Dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra) apontam que pelo menos 17 riachos do Rio Arrojado já estão totalmente secos. Empresas como a Sudotex, Celeiro, BrasilAgro e Igarashi, por exemplo, com investimentos oriundos de outros países como Nova Zelândia, Estados Unidos, Japão, vem avançando cada vez mais sobre os rios. Somente a Igarashi, multinacional de origem japonesa, consome hoje uma quantia equivalente a cem vezes do que todo a sede do município de Correntina.
“Só na região de Jaborandi, temos instalados mais de 117 pivôs centrais (forma de irrigação utilizada pelo agronegócio, que consume um volume altíssimo de água). Em todo o Oeste da Bahia são mais de 160 mil hectares irrigados, tem empreendimentos com 12 bombas de captação de água ligadas 24h. A maioria é monocultura, grãos para exportação, nada fica pra região”, reforça Temóteo.
Segundo ele, a pauta de reivindicações hoje está focada no cancelamento imediato das outorgas que autorizam a livre exploração do agronegócio na região.
“Nossa pauta hoje é pela suspensão das outorgas para as grandes empresas que vem desmatando, secando os rios e violentando essa população há tantos anos”, conclui.
*Editado por Rafael Soriano