BioNatur celebra 20 anos de resistência na produção de sementes agroecológicas
Por Catiana de Medeiros
Da Página do MST
Celebrar os 20 anos de resistência de um projeto que respeita a vida e promove a soberania alimentar foi um dos objetivos da Rede de Sementes Agroecológicas BioNatur ao realizar neste final de semana uma grande festa no Assentamento Roça Nova, em Candiota, na região da Campanha do Rio Grande do Sul. O evento reuniu centenas de pessoas de mais de 20 estados brasileiros e de outros países, numa programação que envolveu desde debates, oficinas e apresentações culturais, até uma feira de produtos da Reforma Agrária e de movimentos populares amigos do MST.
A mesa de abertura foi composta por Alcemar Adílio Inhaia, presidente da Cooperativa Agroecológica Nacional Terra e Vida (Conaterra), que é responsável pela marca BioNatur; João Pedro Stédile, da Direção Nacional do MST; Ângela Cordeiro, engenheira agrônoma; e Adriano dos Santos, prefeito do município de Candiota. Todas as manifestações evidenciaram a importância do trabalho desenvolvido pelas 200 famílias assentadas, que produzem em média 100 a 150 toneladas ao ano de aproximadamente 200 variedades de sementes varietais e crioulas no estado gaúcho e em Minhas Gerais.
Conforme Stédile, hoje, a BioNatur é referência nacional e internacional para o movimento camponês, e através da sua produção e apropriação de sementes, se tornou uma ferramenta de resistência consistente na batalha contra o capital e na promoção da soberania alimentar. “Ela se soma a outras experiências que há pelo Brasil afora e mostra que os camponeses como classe, os agricultores como profissão e os agrônomos como ciência e pesquisadores somente conseguirão derrotar o capital se controlarem as sementes e as mudas, porque esta é a base de todo o controle do processo produtivo de alimentos”, ressaltou.
Stédile destacou que a BioNatur é motivo de orgulho para o conjunto de trabalhadores do MST e que ter alcançado 20 anos de resistência, com muitas vitórias, e de enfrentamento ao capital tem um “valor inexplicável”. Segundo ele, agora é momento dos assentados se organizarem para espalhar iniciativas semelhantes pelo país. “Já que esta é a forma de resistir e avançar, temos que olhar daqui para frente. Quantas BioNatur, sem este nome, nós vamos espalhar pelo Brasil? Como vamos fazer nas outras regiões? Como vamos derrotar o capital por este caminho? Inclusive, temos que avançar mais sobre a produção de mudas e árvores frutíferas”, apontou.
Numa abordagem mais ampla, Ângela socializou as dificuldades encontradas pelo movimento agroecológico mundial, em especial no Brasil, na luta para reassumir o controle das sementes, os desafios superados nas últimas décadas e aqueles que ainda deverão ser encarados nos próximos anos. A engenheira agrônoma explicou que a legislação é um dos campos de enfrentamento permanente, onde desde o início dos anos 90 já se teve muitas derrotas, mas que, por outro lado, se conseguiu manter espaços que permitiram algumas conquistas. Um exemplo dado por ela é a Lei de Proteção de Cultivares, que queria retirar o direito dos agricultores de manter as suas próprias sementes. “Foi uma briga. Conseguimos manter alguns artigos que possibilitaram, num período mais recente, que programas como o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] tivessem condições de poder adquirir sementes crioulas”, disse. No entanto, de acordo com Ângela, ainda há dezenas de projetos no Congresso Nacional para acabar com as conquistas nas legislações que tratam das sementes.
Outra questão compartilhada pela engenheira agrônoma é a contaminação por transgênicos dos campos de produção de sementes crioulas, especialmente depois de 2003, quando ocorreu a liberação do uso dos organismos geneticamente modificados no Brasil. “Nosso país é líder dos transgênicos, está acima dos Estados Unidos e da Europa. Nós tivemos uma grande derrota neste sentido e hoje há situações de grandes contaminações de sementes crioulas, mesmo dentro de espaços e de redes que vêm fazendo este trabalho de resistência, resgate e conservação”, revelou.
Porém, na visão de Ângela, o movimento agroecológico não pode se imobilizar ou acreditar que não há saídas para o problema. “Temos que ser criativos e pensar que, ao planejar nossa rede de guardiões e guardiãs de sementes e de campos de produção, teremos que utilizar outros tipos de inteligência, com o olhar mais voltado para o território, e trabalhar com ferramentas mais sofisticadas que estão hoje no celular, como o georreferenciamento, para localizar áreas que estão mais protegidas dos transgênicos e somá-las às nossas estratégias na produção de sementes”, avaliou.
Ângela defendeu ainda que no planejamento do campos de produção devem ser consideradas as mudanças climáticas e os diferentes ciclos das variedades que são cultivadas, a fim de garantir a diversidade genética. Também acrescentou que, além de resgatar as sementes crioulas e de construir a infraestrutura necessária para melhorar as condições de armazenamento, os agricultores devem pensar uma estratégia de salvamento de sementes. “Muitas localidades que tradicionalmente eram berço de diversidade não têm mais sementes por falta de água. Então temos que considerar a variável da questão climática, porque ela exerce grande influência na produção de sementes”, alertou.
Desafios da BioNatur
Em seus 20 anos de história, a rede BioNatur tem em seu legado o pioneirismo na produção de sementes agroecológicas e a referência nacional e internacional no desenvolvimento da cadeia produtiva. As famílias ligadas a ela produzem em cerca de 200 hectares, localizadas em 20 municípios e 18 assentamentos, diversas variedades de sementes de hortaliças, grãos, forrageiras e plantas ornamentais. Este patamar é resultado da tomada de consciência por parte dos agricultores sobre os diferentes projetos de agricultura, além de muita determinação para concretizar objetivos coletivos.
“A BioNatur tem uma particularidade que a distingue das outras iniciativas e que a coloca como exemplo de exercício para fazermos algo diferente. Ela tem que trabalhar nesta parceria com as instituições de pesquisa e gerar demandas que são diferentes daquelas que a indústria tradicional de sementes faz. Isto é bastante positivo, porque ela gera uma demanda para se manter, desenvolver materiais e trabalhar com critérios e prioridades de melhoramento que são distintos”, sintetizou Ângela.
Ela disse ainda que a BioNatur é uma das iniciativas mais importantes e estratégicas para o movimento agroecológico do país, uma vez que, se não há sementes orgânicas, a produção de quem está na ponta do processo, como os agricultores que fazem feiras ecológicas, fica numa “situação delicada”. Neste sentido, para Ângela, a BioNatur deve trabalhar a construção de redes de produtores pelo país, além de se organizar economicamente para que a iniciativa garanta renda às famílias. “A nossa atenção e o nosso esforço de toda a natureza tem que ser voltado para garantir que a BioNatur possa construir essa sustentabilidade econômica para os próximos anos, porque ela é um arranjo que nós gostaríamos que pudesse existir no sistema de abastecimento de sementes”, declarou.
Comemoração
Todas as conquistas obtidas pela BioNatur nestas duas décadas foram celebradas neste final de semana com uma série ações. Contudo, segundo Inhaia, para além de comemorar, o intuito foi reunir lideranças sociais, agricultores e demais pessoas envolvidas no processo de produção de sementes, oriundas inclusive do Uruguai e da Itália, para discutir os próximos passos da rede. “Neste cenário de crises em que vive o país, algumas questões acabam ficando confusas e o povo pode nos ajudar a apontar alternativas e estratégias, por isto fizemos oficinas e momentos em plenária para debater a nossa relação com as sementes”, contou o assentado.
Dona Olália Fátima da Silva, que é guardiã de sementes crioulas, participou de todas as atividades do evento. Produtora de sementes orgânicas há 17 anos, desde que conquistou um lote de terras no Assentamento Conquista do Cerro, em Candiota, ela diz sentir-se honrada por fazer parte da história da BioNatur. “É muito gratificante fazer esse trabalho de preservação, porque o agricultor pode até ter um pedacinho de terra, mas se ele não tiver sementes crioulas para plantar ele não tem nada”, disse.
Por conta desta mesma consciência sobre a importância de cuidar das sementes, é que a camponesa Lourdes Feliciana da Silva, que mora no Assentamento Conquista da Liberdade, no município de Piratini, na região Sul gaúcha, foi homenageada durante o evento com o lançamento da variedade de tomate Bio Feliciana, que já está no Registro Nacional de Cultivares do Ministério da Agricultura (MAPA). Do tipo cereja graúdo, sua semente tem grande capacidade de produção e potencial de adaptação para sistemas orgânicos e agroecológicos. Os seus frutos geram bom rendimento em sementes e polpa.
Dona Feliciana resgatou com amigos e preserva há 25 anos a variedade de tomate. Por ser a guardiã, a semente do fruto leva o seu nome. “Me sinto muito agradecida e feliz, porque gosto de produzir, cultivar e cuidar da agroecologia. No nosso lote, onde nunca usamos venenos e químicos, a agroecologia é prioridade. Cuidamos dela como se fosse uma relíquia e produzimos os cultivares legitimamente. É uma questão de consciência”, admitiu.
Confira fotos do evento
*Editado por Leonardo Fernandes