Camponeses se formam em Direito por meio do Pronera na Bahia

“A turma Eugênio Lyra é a expressão da luta dos movimentos sociais e sindicais por uma educação do campo", afirma Erica.

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Por Wesley Lima
Do Brasil de Fato

 

Após cinco anos de estudo, trabalho, coletividade e compromisso militante com os 11 movimentos sociais de luta pela terra ao qual fazem parte, 44 estudantes da turma de Direito Social do Campo Eugênio Lyra concluíram os estudos. A cerimônia de Colação de Grau pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) aconteceu na noite deste sábado (16), no Centro de Treinamento da Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), localizado em Itapuã, Salvador.

A turma é símbolo de resistência e não está desassociada da luta travada por cada movimento que os estudantes estão inseridos. Isso é reflexo, inclusive, do formato do curso, tendo em vista que é uma iniciativa construída através do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), cujo objetivo é garantir o acesso à educação pública e de qualidade às famílias assentadas e acampadas.

De acordo com dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), atualizados em 2016, 5.347 alunos foram graduados com o Pronera e mais 1,5 mil hoje possuem uma pós graduação. Para os movimentos sociais, os números apontam uma conquista importante, porém ainda é pouco diante da demanda e a expressiva necessidade de levar a escolarização para todos os setores onde a sociedade se organiza, entre eles o campo.

“A turma Eugênio Lyra é a expressão da luta dos movimentos sociais e sindicais por uma educação do campo que realmente dialogue com a nossa realidade […] é colocar o nosso povo na universidade para que possamos potencializar a luta por direitos defendidos por cada movimento que compõe esse curso”, explica Erica Macedo, estudante da turma e integrante da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura da Bahia (Fetag – BA).

Ela acredita também, que a turma possui uma tarefa importante, diante do atual momento de instabilidade democrática e avanço de pautas conservadoras através do governo ilegítimo de Michel Temer (PMDB). “É um avanço chegarmos até aqui, ocuparmos a universidade e erguer nossas bandeiras em mais um latifúndio que é o do conhecimento. Nossa próxima tarefa é garantir que nossas lutas tenham um suporte jurídico comprometido com a defesa de nossos direitos”, pontua Macedo.

Histórias de luta

Assim como Erica, mulher e militante do campo, existe uma diversidade de histórias e contextos que apresentam o compromisso político que a turma possui na defesa dos direitos sociais conquistados pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras.

Codó, como é popularmente conhecido José Castro, por conta do município de Codó, localizado na região dos cocais no estado do Maranhão, é um dos formandos e militante do Movimento Sindical da Agricultura Familiar. Residente de uma comunidade quilombola, ele destaca que o acesso à educação sempre foi um desafio, tendo em vista o histórico de conflitos travados entre os pequenos agricultores pela posse e uso da terra como um direito.

“Desde criança sempre vivenciei a ofensiva do latifúndio na disputa pela terra. Vi meu pai, muitas vezes, enfrentando pistoleiros. Eu fui crescendo nesta luta e em 1986, a gente já grande, falamos com nosso pai que seria importante buscar outros meios de sobrevivência, por conta do acirramento dos conflitos que permaneciam vivos na luta pela terra, mas nosso pai sempre resistiu. A partir de 1992, nosso pai pensou em desistir e fomos nós [os filhos] que seguramos as pontas e demos continuidade aquela luta. Só depois que nos unimos com outras comunidades conseguimos conquistar o pedaço de chão que minha família tem hoje”.

 

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Codó conta também que o processo de participação nos movimentos sociais foi consequência de uma luta histórica protagonizada por sua família e foi através dessas organizações que ele ficou sabendo do curso de direito. “Para mim foi um desafio essa tarefa de estudar, até porque só aprendi a desenhar meu nome com 14 anos. Quando eu tive condições de provar que eu sabia ler e escrever, eu já tinha 34 anos de idade. Na época, como o Maranhão é um dos estados piores na educação, como vários dados apontam, surgiu um programa chamado de supletivo, onde a pessoa fazia a inscrição, depois uma prova e foi aí que consegui fazer o 1º e 2º grau, isso aconteceu em 2001. Em 2008 eu consegui concluir o ensino médio”.

Ele afirma ainda que o sonho de estar dentro da universidade se realizou e que o seu objetivo de vida é permanecer na luta pela sua família, mas também por todos os trabalhadores e trabalhadoras que não são representados nas diversas esferas da sociedade.

As experiências vivenciadas por Codó se assemelham a da jovem Tatiara de Jesus (28), que é militante do Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas (CETA) e filha de moradores do Assentamento Anativa, no município de Marcionílio Souza, Bahia. Tatiara tornou-se mãe durante o curso e hoje carrega em seus braços o pequeno Pietro.

 

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“Eu sempre convivi com o meio rural. Lembro que quando era pequena ajudava meus pais na lavoura e no cuidado com os animais. Para mim não foi fácil iniciar o curso de Direito Social do Campo porque tive que sair do ambiente que conheço, como minha casa e família, para ir para outro totalmente desconhecido e competitivo que é a universidade. Agora estamos aí com o bebê já no final do curso”, contextualiza.

“Nós, enquanto turma, temos uma tarefa importante. Infelizmente, o povo do campo a vida toda foi muito oprimido e a gente nunca teve pessoas dispostas a está batalhando pelas pessoas do campo. Para termos qualquer coisa hoje é fruto de muita luta e o latifúndio sempre empeirou. Temos a obrigação, de junto com os movimentos de luta pela terra, de estarmos auxiliando os nossos movimentos, as pessoas que precisam de um pedaço de chão, na luta desses processos que não tem sido fáceis”, conclui Tatiara.

Homenagens

Apesar de histórias tão distintas, mas com objetivos de luta consolidados, ao homenagear o advogado Eugênio Lyra, que foi morto com 30 anos de idade no dia 22 de setembro de 1977, por conta de sua dedicação na defesa dos trabalhadores rurais, dos posseiros ameaçados pela grilagem da terra no Além São Francisco, a turma rememora essa história e impulsiona o compromisso militante.

Nesse mesmo sentido, outro grande homenageado foi o estudante do curso João Conceição dos Santos, que a veio a falecer num acidente de carro no dia 04 de julho deste ano. João era militante do Movimento Negro e integrava a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (CONAQ).

Com o legado desses dois nomes na centralidade da mística da turma, a formatura foi mais que um ato solene, foi um espaço de luta e conquista, reafirmada por cada militante, advogado e camponês, que acabam de ser legitimados com a tarefa de fortalecer a luta da classe trabalhadora.

 

*Editado por Leonardo Fernandes