Projeto “Sim, Eu Posso!” atende 1,8 mil indígenas no Maranhão e tem lista de espera
Por Cristiane Sampaio*
Do Brasil de Fato | Enviada especial ao Maranhão
Fotos: Leonardo Milano/Mídia Ninja
A Jornada de Alfabetização no Maranhão tem, entre os grupos atendidos, um segmento especial: o dos indígenas. Na região central do estado, cerca de 1,8 mil deles tomam assento em uma das turmas do Projeto Sim, Eu Posso nos municípios de Jenipapo dos Vieiras e Itaipava do Grajaú. Um público que, mesmo após meio século de violência e exploração, resiste à exclusão social, abraçando a possibilidade de mergulhar no universo da língua portuguesa.
Baseado num método cubano e adaptado para o Brasil pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o projeto é desenvolvido em parceria com o Governo do Estado do Maranhão desde 2016. O estado é o terceiro em número de analfabetos no Brasil, com 840 mil pessoas nessa condição, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Confira o Especial “Sim Eu Posso! – A revolução que vem das letras”, do Brasil de Fato.
Na aldeia Urucu, zona rural de Itaipava do Grajaú, o entusiasmo do alunos sobrevive às adversidades do espaço, que tem iluminação fraca e ventiladores quebrados. “Eu estou achando bom esse programa e eu quero aprender a escrever e ler”, diz Iran Costa Guajajara, 33 anos, já ensaiando algumas palavras em português.
“Quando começamos a fazer as matrículas e acompanhar as aldeias de perto, o cotidiano deles, descobrimos que eles nem escreviam na língua guajajara”, conta o militante do MST Elitiel Guedes, mencionando a etnia predominante na região.
No campo da antropologia, prevalece o entendimento de que as populações indígenas deveriam ser alfabetizadas, em primeiro lugar, no idioma tradicional. A concepção está relacionada ao direito humano à educação e também à valorização da cultura indígena.
Mas, de modo geral, a formação na língua materna ainda é uma dívida do poder público: em muitas aldeias, as comunidades cultivam a tradição oral, mas não conseguem repassar às novas gerações os conhecimentos na forma escrita. Já o ensino do português fica aguardando a vontade política de algum gestor.
O descaso é um dos responsáveis pela constante desconfiança dos indígenas, que contam com a dedicação dos professores do projeto para vencerem o medo de ingressar nos estudos. “Não é fácil porque eles são muito tímidos. Tem que saber agradar”, relata a educadora Marta Oliveira da Silva.
Ao que parece, as estratégias têm funcionado, segundo a avaliação do vice-cacique da aldeia, Edelson Paulino. “Eu estou achando que esse serviço está indo certo”, celebra ele, arranhando no português.
Longe dali, na aldeia Criuli, zona rural de Jenipapo, a vice-cacica Julia Maria Guajajara, 60 anos, conta que melhorou a escrita do próprio nome e aprendeu a dos dois filhos somente no ano passado, quando foi apresentada ao Sim, Eu Posso.
Hoje ela está repetindo o curso pra melhorar a grafia porque precisa “andar mais pra frente”. “Enquanto eu estou viva, tenho ao menos um pedacinho de esperança”, diz, iluminando o olhar.
Na pequena aldeia comandada por ela, pode faltar tudo, de água encanada a energia elétrica, mas não falta essa tal de esperança. Quem conta é a professora da comunidade, Renata Santos, que todo dia percorre 16 km – a maior parte numa estrada de terra por onde não é possível passar quando chove – para chegar aos 40 alunos da aldeia.
“Não tem coisa mais gratificante aqui do que quando eu chego na minha moto que eles correm e vêm todos pra porta pra me esperar passar. Eles querem mudar a história deles”, conta.
Empoderamento
Segundo o professor e pesquisador indígena Gersem Baniwa, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o domínio do português tem um múltipla relevância para os povos indígenas na atualidade.
Primeiro, evita que eles sejam enganados no comércio cotidiano com madeireiros e afins; segundo, porque traz consigo os números, e o conhecimento da matemática também ajuda a prevenir eventuais golpes; terceiro, favorece o aprendizado da informática, importante para que eles possam exercer atividades que vão desde o manuseio do celular até a escrita de correspondências dirigidas a gestores públicos, entidades e outros atores com os quais sintam necessidade de se comunicar.
Baniwa destaca que é sobretudo uma questão de empoderamento. “Ao longo de todo o processo de colonização, essa interação sempre foi mediada – por assessores, antropólogos, missionários, aliados – porque eles dependiam da língua. Hoje, a luta por um bom domínio do português é também uma maneira de consolidar um protagonismo, uma autonomia”, explica.
Demanda
Não é à toa que, em Itaipava do Grajaú, por exemplo, mais de 400 indígenas estão matriculados no Sim, Eu Posso e outros 320 aguardam a reabertura de matrículas para iniciar os estudos na jornada. A quantidade de alunos que esperam uma vaga daria para formar pelo menos 15 novas turmas, de acordo com a coordenação do projeto. A procura não era esperada nem mesmo pelo governo do estado, segundo afirma o secretário de Educação, Felipe Camarão.
“No início da jornada, houve um certo descrédito. O sucesso foi uma surpresa”, conta o gestor, acrescentando que uma terceira etapa está prevista para 2018 e que a ideia é transformar o projeto numa política de Estado.
A indígena Marta Rosa Guajajara, 49 anos, sabe bem a importância do curso. Formada em uma das turmas do ano passado, ela relata que se abriu para o mundo extra-aldeia quando teve a oportunidade de aprender o português. “Eu estou aqui na presença de vocês, estou falando um pouco. Não sei falar bem não, mas eu estou falando”, disse, para demonstrar o aprendizado.
A empolgação que tomou conta da aldeia com a chegada do Sim, Eu Posso hoje é algo que aponta para o futuro, na perspectiva de contagiar aqueles que ainda não têm nem tem idade para participar do projeto. “Nós estamos dando conselho pras crianças aprenderem também”, finaliza a falante Marta.
*A repórter viajou com apoio do Governo do Estado do Maranhão e do MST
**Editado por Camila Maciel e Vívian Fernandes no Brasil de Fato