O veneno que vem pelo céu: estação ecológica e assentamento no interior de SP são contaminados pela pulverização aérea
Do Coletivo de Comunicação do MST-SP
Para Página do MST
O avião passa, uma névoa branca e fétida adentra o assentamento e toma conta do ar. Conforme a neblina vai chegando, coceira, náusea e dor de cabeça são alguns dos sintomas apresentados pelos moradores e moradoras. Em poucos dias as hortas e roças amarelam, os frutos das agroflorestas caem e as flores secam sem fertilização.
Essa é uma situação frequente no assentamento Luiz Beltrame de Castro, Gália-SP, que sofre com a pulverização aérea de agrotóxicos das fazendas que faz divisa, denominadas Brinco de Ouro e Revolta. As pulverizações começaram no ano passado e tem ocorrido com a periodicidade aproximada de 50 dias.
É como se eles estivessem passando aqui no lote, como se o veneno estivesse aqui mesmo. Porque o avião quando faz a curva, parece que tá passando em cima da minha casa, e aí vem aquela fumaça branca e fica no ar, relata D. Neta, assentada cujo lote faz divisa com uma das fazendas.
Muitas pessoas têm apresentado quadros clínicos de intoxicação, na última vez que [o avião] passou eu só consegui dormir depois que veio a chuva.. não tinha condição de dormir com o cheiro do veneno, o gosto do veneno na boca, dentre os incômodos “a boca resseca, preciso tomar água toda hora por causa do suor”.
A biodiversidade do local também está sendo ameaçada, pois ao lado do assentamento se situa a Estação Ecológica Caetetus, uma área de quase 1000 alqueires de mata preservada e onde muitas espécies em extinção são protegidas, mas que também recebe o veneno que dispersa das fazendas. No ano de 2016, o levantamento das espécies de aves no local, realizado em parceria com a Unesp de Botucatu, apontou para mais de 70 variedades, dentre elas algumas raras e em risco de extinção.
Histórico do Assentamento
O assentamento Luiz Beltrame é uma conquista da luta dos trabalhadores Sem Terra, organizados pelo MST, na regional de Promissão – SP. O nome é uma homenagem ao grande poeta e incansável lutador pela reforma agrária que faleceu aos 107 anos: “Seu Luiz”.
O acampamento iniciou sua luta em 2009 sendo alvo de despejos violentos, da truculência do Estado e da polícia. No entanto, as famílias não cederam na luta pela terra e avançaram firmemente na resistência, com ocupações, reocupações, acampamento em beira de estradas, participando ativamente das jornadas de luta até a conquista da terra, a fazenda Portal do Paraíso 1 e Fazenda Recreio Gleba 3-conhecida como Santa Fé-, quando estas duas áreas foram declaradas improdutivas, falidas e transformadas em assentamento. Foram assentadas em 2013, cerca de 77 famílias que estavam acampadas nas proximidades da fazenda.
O assentamento se situa no rol de “assentamentos precarizados”, sem investimentos em infraestruturas próprias da política de reforma agrária atual, como por exemplo: estradas, créditos, recurso para a construção das moradias, etc. Ainda assim, as famílias seguem no processo de resistência para organizar a produção com bases nos princípios da agroecologia.
Nestes quatro anos de consolidação, apesar de não acessar nenhuma política pública, foram construídas 27 unidades de sistemas agroflorestais (SAFs) com ênfase em fruticultura, e realizadas formações, vivências e cursos sobre agroecologia para os assentados e público em geral.
Hoje as pessoas estão sendo contaminadas pelo o que estão comendo[..]. E aqui [no assentamento] estamos comprovando na prática que é possível produzir qualquer coisa, legumes, frutas, sem a utilização de venenos, de agrotóxicos", observa Ângelo Diogo, assentado e militante do MST. Para ele, o direito dos assentados e assentadas à produção agroecológica está sendo fortemente violado pela prática das fazendas vizinhas, que exercem um modelo de produção alinhado com o agronegócio, visando ganhos de produtividade e acumulo de capital.
A Faculdade de Medicina de Marília acompanha o assentamento por meio da Extensão Universitária em saúde do campo, e vem orientando as famílias sobre como proceder nos dias de pulverização e outros diversos temas pertinentes. Desta parceria já foi publicada a cartilha ‘Terra, saúde e luta’, que relaciona a questão agrária, o modelo produtivo do agronegócio e as condições de saúde das populações do campo a luz da divisão social do trabalho, e como determinantes para a criação da saúde e da doença.
Legislação
No Brasil, a pulverização aérea é regulamentada pela Lei 917, de 07/09/1969, decreto 86.765, de 22/12/1981, e pela Instrução Normativa nº02/2008 que define, entre outras coisas, que as empresas e pilotos de aviação agrícolas precisam estar cadastrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e devem submeter relatório operacional de suas atividades às superintendências do estado onde atuam, informando data, horário, local, produto usado, etc.
Além disso, existem restrições para a aplicação de agrotóxicos que devem ser observadas. Áreas localizadas até 500 metros de povoações, cidades, bairros, comunidades rurais, vilas, ou que agreguem mananciais usados para captação de água não podem sofrer pulverizações aéreas.
Em alguns casos observados no assentamento, a distância entre o cultivo coberto pelo veneno e as casas dos assentados não ultrapassa 200 metros. Justamente entre a divisa dos territórios existe uma represa, e as famílias costumam usar a água quando há problemas de abastecimento nos poços artesianos recém inaugurados.
Em 2004, a Embrapa divulgou estudos que apontam que a dispersão de agrotóxicos neste tipo de pulverização pode atingir 19% para o ar e áreas próximas e 49% para o solo, mesmo com os equipamentos adequados. Devido ao alto nível de dispersão, vários municípios já proibiram a prática e muitos outros analisam a possibilidade.
Chuva de veneno
A periodicidade das pulverizações é alta em monoculturas, já que as mesmas só se tornam viáveis com o uso de muito agrotóxicos para eliminar as plantas que nascem no solo descoberto, e também as “pragas” que se proliferam com facilidade nessa forma de cultivo extensivo.
Desde o ano passado as famílias assentadas registram em vídeos, fotos e textos as ocorrências, com o objetivo de documentar e denunciar a agressão direta que os agrotóxicos têm representado para as pessoas e ecossistema.
Leia o relato de uma das pulverizações, escrito pela assentada e dirigente do MST, Selma Santos:
“No dia de 11 de outubro de 2017, entre as 10:00 horas da manhã e 13:30 da tarde, um avião de pulverização agrícola, jogou veneno na fazenda vizinha ‘Brinco de Ouro’, fazendo manobras em cima do assentamento. A fazenda faz divisa e o vento fazia a neblina adentrar e espalhar-se pelo assentamento, desconsiderando o fato de muitas famílias morarem no local, inclusive muitas crianças. Certamente houve a contaminação de pessoas, nascentes de rios, da terra, mata ciliares, e também animais domésticos e silvestres, bem como, aves em extinção que habitam o local.
Enxames de abelhas tem constantemente aparecido mortos, e a potencial produção de mel está comprometida pelo excesso de veneno aplicado na agricultura nas fazendas vizinhas. Durante todo o dia até o anoitecer um forte odor de veneno invadiu as residências das famílias provocando náuseas entre outros sintomas.
Outra ocorrência foi as 11:30h da manhã quando as crianças do assentamento, que se deslocavam para a escola, tiveram que passar pela estrada que corta a fazenda dentro do transporte escolar, inalando aquela neblina de venenos que era jogada do avião. Médicos da FAMEMA [Faculdade de Medicina de Marília] orientaram sobre os danos à saúde e a urgência de procurar atendimento médico caso ocorresse alguns sintomas típicos: náuseas, vômitos, alergias, problemas respiratórios, sudorese, etc.”
Assista aqui o vídeo produzido pelas assentadas em conjunto com o Setor de Comunicação: