Lucro dos grandes supermercados aprofunda desigualdades no campo
Por Lu Sodré
Da Brasil de Fato
O modelo de negócios dos grandes supermercados, cuja propriedade está concentrada nos Estados Unidos e na Europa, perpetua uma estrutura de exclusão social entre os produtores de alimentos que vivem e trabalham na América Latina, África e Ásia.
A constatação é de um estudo global lançado nesta quinta-feira (21) pela Oxfam – Oxford Committee for Famine Relief (Comitê de Oxford de Combate à Fome, em inglês), uma confederação de instituições voltadas ao combate à fome e à pobreza –, que revela uma cadeia de produção baseada na exploração de milhões de pequenos e médios agricultores ao redor do mundo.
Apenas em 2016, as maiores cadeias de supermercados no mundo movimentaram US$ 1 trilhão, obtiveram US$ 22 bilhões em lucros e distribuíram US$ 15 bilhões a seus acionistas. Em alguns casos, as grandes redes chegam a ficar com 50% do valor que os consumidores gastam nas lojas, enquanto a parcela que fica com os trabalhadores rurais chega a ser menor que 5%.
O relatório “Hora de Mudar – Desigualdade e sofrimento humano nas cadeias de fornecedores dos supermercados” aponta, por exemplo, que um trabalhador que atua no processamento de camarão na Tailândia ou Indonésia levaria 4 mil anos para ganhar o mesmo que um executivo de um supermercado estadunidense recebe em dividendos em doze meses.
Com grande atuação nos Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e Alemanha, grandes supermercados como Walmart, Whole Foods, Jumbo, Aldi, Morrisons, Albertson&”39;s e Sainsbury&”39;s, entre outros, são citados no relatório. No Brasil, grandes grupos estrangeiros como Pão de Açúcar (do grupo francês Casino), Carrefour e Walmart dominam 46 % do setor.
Pobreza no campo
Segundo Gustavo Ferroni, assessor de políticas da Oxfam Brasil, o estudo desnuda algumas das principais engrenagens das desigualdades sócio-econômicas relacionadas ao campo.
“Essa nova pesquisa ajuda a concretizar como a desigualdade acontece. Ela não é à toa, é resultado direto e indireto de políticas que as empresas e os governos adotam, ou de quando se omitem. A desigualdade não é acidental e está ligada a maneira que as grandes empresas estruturam suas cadeias produtivas também”, afirma Ferroni.
O estudo apresenta a análise de cadeias de valor de 12 produtos comuns fornecidos a supermercados de todo o mundo a partir de uma variedade de países produtores, abrangendo os continentes asiático, africano e latino americano. Entre elas, a produção do café na Colômbia, do cacau na Costa do Marfim, do chá na Índia, da uva na África do Sul, do Camarão no Vietnã, do tomate no Marrocos, do feijão verde no Quênia e da laranja no Brasil.
Em nenhum desses exemplos a renda média dos pequenos agricultores ou trabalhadores é suficiente para que tenham um padrão de vida confortável.
Nas Filipinas, 66% dos produtores de banana afirmaram não ter suficiente para comer durante o mês. Já na África do Sul, mais de 90% das trabalhadoras entrevistadas em fazendas de uva disseram não ter tido alimento suficiente no mês anterior.
Na Tailândia, a estatística se repetiu e mais de 90% de produtores entrevistados em unidades de beneficiamento de frutos do mar relataram também ter ficado sem comida. Apenas 10% do que os três maiores supermercados dos Estados Unidos pagaram a seus acionistas em 2016 seria o suficiente para pagar um salário digno a 600 mil trabalhadores que atuam no processamento de camarão no país.
Caso brasileiro
Os pequenos agricultores de laranja ganham menos de 5% do valor da fruta exportada a partir do Brasil, o que, para a Oxfam Brasil, é muito preocupante.
“O que constatamos é que de 1996 até hoje, o valor da laranja brasileira vendida aos mercados americanos e europeus aumentou 50%, enquanto que o valor final recebido pelo trabalhador caiu de 17% para 4%. Há um grande descompasso. Os mercados têm abocanhado uma fatia maior, o valor tem aumentado pros consumidores finais, e quem está arcando com essas diferenças são os pequenos agricultores”, diz Ferroni.
O assessor da organização comenta que em locais onde há interferência do governo, os produtores se aproximaram mais das referências de salários justos, já que há o estabelecimento de salários mínimos de pelo menos metade do PIB per capita mensal. Isso acontece no Vietnã, Equador, Marrocos e Peru.
Se o Brasil adotasse o mesmo sistema, o salário mínimo giraria em torno de R$ 1.300, uma diferença expressiva para o valor atual de R$ 954. Mesmo assim, a cifra ainda é bem distante do que o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) defende como salário mínimo ideal para o sustento de uma família de quatro pessoas: R$ 3.752,65.
Agrotóxicos e injustiça fiscal
Na avaliação de Kelli Mafort, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o relatório da Oxfam reafirma a importância de debater políticas públicas para o campo brasileiro. Ela ressalta que “a comida do mundo está concentrada na mão de poucas pessoas em toda sua cadeia”.
“Cerca de 60% dos insumos, relacionados aos agrotóxicos e fertilizantes, estão na mão de Bayer, Monsanto, Dupon, ChemChina e Syngenta. O mercado de commodities também, 70% dessa receita de está concentrada em quatro empresas: DM, Cargill, Bungee e Louis Dreyfus”, exemplifica a dirigente.
“Apenas 50 fabricantes de alimentos no mundo controlam 50% das vendas no setor. Isso mostra a importância de fortalecer, por meio de políticas públicas, o pequeno agricultor, o assentado, o indígena e o quilombola, porque se não, as grandes massas que vivem nos centros urbanos não vão ter acesso à alimentação”, alerta.
O estudo também apresenta informações de pesquisa recente da Comissão Europeia que apontou que 96% dos fornecedores das cadeiras de alimentos sofrem com pelo menos uma forma de prática comercial injusta. Os trabalhadores recebem menos do que gastam com a produção, por exemplo. A cobrança de taxas por espaço nas prateleiras de supermercados e o atraso de pagamentos também é muito comum.
“São práticas que a gente escuta por aqui [no Brasil] também. Mercados que forçam a entrega de produtos na última hora, quando o produtor já não tem opção, ou ele vende ou perde tudo. Esse desequilíbrio de poder acaba fragilizando muito, principalmente os agricultores familiares e, por consequência, os trabalhadores”, explica Ferroni.
Kelli Mafort defende que é urgente realizar esse debate no Brasil. “Nós também estamos lutando para que nesse pleito eleitoral, a gente faça o embate do tipo de campo que a gente quer e consiga sensibilizar mais pessoas, inclusive pessoas da cidade, para a importância de defendermos uma plataforma pro campo brasileiro que tenha como base principal a reforma agrária e o desenvolvimento dos pequenos agricultores”.