“Nosso projeto é produzir alimentos saudáveis e acessíveis a todo o povo”, destaca dirigente do MST
Da Página do MST
Aproximando-se da 19ª edição da Feira da Reforma Agrária em Maceió, o MST prepara por mais um ano a ocupação da capital alagoana com os frutos da luta pela terra entre os dias 5 e 8 de setembro, na Praça da Faculdade, no bairro do Prado.
Em entrevista, Débora Nunes, da coordenação nacional do MST, destaca o papel das feiras na construção do projeto de Reforma Agrária Popular defendido pelo MST, além dos desafios da luta dos camponeses e camponesas na tarefa da produção de alimentos saudáveis.
“Muito do que se faz, produz e chega às Feiras é resultado do compromisso das famílias que vão buscando formas e alternativas para irem tentando organizar a produção”, destacou a dirigente que também integra o Setor de Produção do MST.
De acordo com Nunes, a Feira é a expressão do que o Movimento defende na perspectiva da Reforma Agrária Popular, em suas diversas dimensões. “Tudo que construímos na Feira é a expressão daquilo que queremos enquanto projeto de sociedade. E não é tarefa pequena e nem apenas dos Sem Terra.”
Confira a entrevista na íntegra:
Já são 19 anos de realização da Feira em Maceió, consolidada com os Sem Terra, mas também com a sociedade. O que levou o MST a impulsionar a iniciativa da comercialização da produção da Reforma Agrária na capital?
A principal tarefa é a de dialogar, diretamente, com a sociedade. Mesmo que há 19 anos não tivéssemos uma estratégia política tão nítida quanto temos hoje, esse já era o principal motivo que levou o Movimento a vir para Maceió realizar as Feiras da Reforma Agrária, pois a Feira permite ocupar a cidade de uma maneira diferente do que habitualmente fazemos nas marchas, mobilizações e ocupações. Ambas são importantes, inclusive são complementares, pois só é possível realizar as Feiras porque antes tiveram processos organizativos de luta e pressão que vai forçando o Estado e os governos a realizarem a Reforma Agrária. E esse diálogo foi construindo essa perspectiva da Feira que temos hoje, também como produto a pressão e da luta dos Sem Terra.
Convocando a sociedade para compreender a necessidade e importância de realizar-se a Reforma Agrária no intuito de resolver problemas estruturais que afetam diretamente quem está na cidade, como o inchaço e aumento das favelas decorrente do êxodo rural, desemprego, desigualdades sociais e problemas de infraestrutura geral das cidades. Além do aumento expressivo no número de habitantes das cidades sem habitação, acesso a educação, saúde e outros serviços e políticas públicas.
De que maneira a Reforma Agrária dialoga com a resolução desses problemas estruturais que vivem os centros urbanos?
A Reforma Agrária tem o papel de garantir trabalho para as famílias, renda, acesso à moradia, educação, saúde… Cada família que fica no campo, corresponde a, pelos menos, quatro pessoas a menos nas cidades. Ter a terra e as condições para nela trabalhar, crédito, infraestruturas sociais e produtivas é a garantia de produção de alimentos diversificados e saudáveis que vão chegar à mesa de quem está na cidade.
Além disso, a inversão nas questões subjetivas de passividade frente às questões que são direitos e que são negadas. Na luta pela construção da reforma agrária popular os sujeitos – homens, mulheres, sujeitos da diversidade sexual, crianças, jovens, idosos – aprendem que precisam ser protagonistas das mudanças que são necessárias para melhorarmos as nossas cidades, o nosso estado, o nosso pais e as nossas vidas. A compreensão na vida prática do que é dignidade, do que é cidadania.
Alagoas em pleno século XXI, por exemplo, ainda hoje se têm marcas e práticas do Brasil colônia, sobretudo no que se refere a tida como principal atividade econômica que é a cana-de-açúcar, que concentra a terra, expulsa o homem do campo, produz profundas desigualdades e concentra riqueza, que definiu não apenas a sua formação histórica, mas as relações de poder e toda a sua dinâmica social e política. Este modelo é o responsável pelos péssimos indicadores sociais que o estado apresenta. Ao longo da nossa história, o estado foi campeão em mortalidade infantil, analfabetismo e violência, tendo os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), longevidade, saúde, etc. Problemas que afetam toda a sociedade nas diversas classes e segmentos sociais.
Sem dúvida, são reflexos daquilo que ocorreu, como o êxodo rural, e também do que não aconteceu no campo, a exemplo da Reforma Agrária. Esse é um grande desafio: como fazer para que a sociedade entenda que os problemas estruturais vivenciados “nascem” no campo.
Com a consolidação da Feira, em seus 19 anos em Maceió, é comum ouvirmos o pedido de realização de mais edições na capital no ano. Hoje, quais seriam os principais limites para avançar nessa perspectiva?
Quando o Estado brasileiro não cumpre a constituição destinando as terras que não cumprem a função social para a reforma agrária se constitui aí o primeiro entrave de avançarmos nas Feiras, seja em frequência, qualidade ou diversidade de produtos.
A Feira é o resultado de diversos processos: a ocupação da terra, a conquista do assentamento, o acesso ao crédito, às condições pra se produzir, as políticas de comercialização, etc.
As políticas agrícolas também são entraves, pelo fato de não garantirem que se estabeleça um processo de transição agroecológica na produção, possibilitando a produção de alimentos saudáveis com créditos específicos. Os limites estruturais, falta mecanização na produção para aumentar a escala, diminuir custos, as estradas dos assentamentos são intransitáveis no inverno, não existem agroindústrias para beneficiamento da produção. Além do crédito ser limitado, burocratizado e vinculado a um pacote tecnológico que reproduz a lógica dominante do agronegócio.
Têm famílias que passam cinco anos, já depois que a área se torna assentamento, para saberem onde serão os lotes. Mais três a cinco anos para terem crédito. Então muito do que se faz, produz e chega às Feiras é resultado do compromisso das famílias que vão buscando formas e alternativas para irem tentando organizar a produção.
Como a comercialização dos produtos abaixo do preço convencional do mercado dialoga com a concepção do projeto de Reforma Agrária Popular do MST?
A comercialização abaixo do valor estabelecido nos mercados é uma decisão do Movimento e que temos buscado garantir ao longo dos anos, inclusive com uma metodologia de fazer cotação de preços previamente nas feiras locais em vários municípios e nos principais supermercados e feiras livres de Maceió. A partir destas cotações fazemos uma tabela referência para a Feira da Reforma Agrária de maneira que seja acessível a quem vem comprar e que o assentado também não tenha prejuízos.
Fazemos isso, pois a Feira não pode ser um espaço de especulação ou de revenda através de atravessadores, só pode vender mais barato quem produz e a Feira é o espaço de comercialização restrito de quem faz a produção.
A nossa compreensão é que toda a sociedade, em especial, as mais pobres têm o direito de alimentar-se bem com produtos saudáveis, livres de agrotóxicos, sem veneno. Mas com alimento caro é praticamente impossível que isso ocorra. Assim, nosso projeto é que com a Reforma Agrária Popular tenhamos condições de produzir alimentos saudáveis, baratos e acessíveis a todo o povo.
Claro que ter produtos mais baratos está diretamente ligado à superação dos limites e entraves que tratamos anteriormente, com uma política agrária e agrícola de Estado que priorize a agricultura camponesa. Por isso a necessidade de toda a sociedade se somar a luta pela realização da Reforma Agrária.
De que outras maneiras a Feira expressa o projeto de Reforma Agrária Popular em suas dimensões?
O projeto de Reforma Agrária Popular é uma construção coletiva do MST, de um modelo de agricultura para a sociedade brasileira. Sua concepção parte da constatação de que o estágio de desenvolvimento das forças produtivas no campo, com o avanço do capital não mais comportaria a realização da Reforma Agrária Clássica, sobretudo com a hegemonia do agronegócio que tem o Estado ao seu serviço. E da nossa compreensão de que seria necessário que os camponeses, os trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra, apresentassem uma alternativa que pudesse resistir e enfrentar a hegemonia do capital na agricultura.
Uma proposta do MST para o campo brasileiro capaz de enfrentar e se contrapor ao modelo do agronegócio, apresentando condições para resolvermos problemas estruturais de toda a sociedade brasileira, especialmente com a missão de produzir alimentos saudáveis que atenda às necessidades do povo brasileiro e recuperando e cuidando dos bens naturais – terra, sementes, biodiversidade, a água, enfim, tudo que é necessário para a vida dessa e das próximas gerações e que tem sido apropriado, mercantilizado e destruído pelo agronegócio.
Assim, a Reforma Agrária Popular se propõe a resolver questões fundamentais dos camponeses, mas também de toda a sociedade, aí está o caráter popular da sua necessidade e construção.
Dentre as questões fundamentais estão as condições necessárias para desenvolver um modelo de produção em equilíbrio com a natureza. A mudança de modelo tecnológico de produção com a agroecologia, produzindo em escala e qualidade o alimento que chegará nas cidades, a agroindustrialização do campo, garantia de educação em todos os níveis, garantir as diversas dimensões da vida humana, a cultura, o lazer, a saúde, dos sujeitos camponeses.
O desafio de construí-la vem também para a Feira, quando trazemos as diversas dimensões do que é a vida no campo, mesmo que ainda tenha muitos desafios a serem superados, para que as pessoas tenham a possibilidade de refazer a leitura que os grandes meios de comunicação fazem.
Tudo que construímos na Feira é a expressão daquilo que queremos enquanto projeto de sociedade. E não é tarefa pequena e nem apenas dos Sem Terra. Todos estão convidados a serem construtores deste projeto.