Agroecologia e o MST
Por Luiz Zarref *
Da Página do MST
Amar o campo, ao fazer a plantação,
não envenenar o campo é purificar o pão.
Amar a terra, e nela plantar semente,
a gente cultiva ela, e ela cultiva a gente.
A gente cultiva ela, e ela cultiva a gente.
Zé Pinto
Através do trabalho consciente, nessa interação dos seres humanos com a natureza, nós vamos nos construindo e reconstruído enquanto seres sociais emancipados, como bem nos mostra a música do querido
companheiro Zé Pinto.
Essa talvez seja a melhor forma de explicar a agroecologia dentro do MST. Uma caminhada que vem lá do início e, a medida que fomos amadurecendo, produzindo mais alimento, fazendo mais cooperação, fomos também nos transformando enquanto organização. Mas, antes de falarmos do MST, vamos voltar um pouco ao passado. É
curioso – e pouca gente sabe – mas desde o momento em que a Reforma Agrária apareceu de fato como projeto para o campo brasileiro, lá nos idos anos de 1950 e 1960, ela já era associada com a utilização mais racional
dos bens naturais. Entre Luiz Carlos Prestes, em 1946, e Leonel Brizola, em 1963, várias propostas de reforma agrária foram apresentadas, buscando responder à mobilização camponesa feita principalmente pelas Ligas
Camponesas. Em todas elas a reforma agrária é apresentada como solução frente à destruição ambiental promovida pelo latifúndio, especialmente em se tratando de cuidado com os solos. No âmbito acadêmico-científico, Artur e Ana Primavesi pesquisavam e publicavam obra pioneira orientadora ao manejo ecológico de solos, em 1965. Emerge e se desenvolve no Brasil um expressivo movimento crítico de pesquisadores, professores, profissionais técnicos e estudantes das ciências agrárias e agricultoras e agricultores, culminando nas distintas vertentes da agricultura alternativa, orgânica, biodinâmica, natural, a agroecologia, permacultura, e outras.
Quando o MST surge e elabora suas primeiras definições, resgata esse objetivo da reforma agrária e o atualiza, reconhecendo o campesinato como guardião das florestas, das sementes, das nascentes, dos rios e da fauna. Podemos, então, dizer que desde o início o MST entende que o território conquistado tem uma função com a sociedade e com o planeta de produzir alimento, mas também cuidar da natureza.
É verdade que, nos primeiros 15 anos de organização dos assentamentos, via o Sistema Cooperativista dos Assentados, o MST empreendeu um esforço gigantesco para desenvolver as melhores formas de garantir novas
relações sociais de produção no território conquistado. Nesse período que nascem iniciativas muito avançadas para a realidade agrária brasileira, como as Cooperativas de Produção Agropecuária (CPAs). Em geral, ao longo desse processo reproduzíamos as tecnologias da Revolução Verde em nossos sistemas de produção, entendendo que nossa tarefa era socializar todos os meios de produção que eram dominantes até então.
Porém, ao mesmo tempo, várias iniciativas vinham se desenvolvendo em diferentes assentamentos, como práticas de agricultura orgânica, hortos medicinais, agroflorestas, sementes crioulas. Junto com aliados e parceiros de instituições públicas de pesquisa, ensino e extensão rural, fomos nos apropriando das técnicas de produção sustentável.
A constituição da CLOC/Via Campesina e a participação intensa do MST em intercâmbios, seminários, brigadas internacionalistas também elevou o nível de consciência coletiva de nossa organização, ao mesmo tempo em
que possibilitou conhecer práticas agroecológicas consistentes e organizadas pelos camponeses de diferentes partes do mundo.
No início dos anos 2000 o agronegócio foi se consolidando como nova forma do capitalismo no campo e suas tecnologias foram se tornando mais agressivas, como agrotóxicos mais venenosos e a introdução dos transgênicos. Diante disso, foi ficando claro para nós, MST, que a concentração da terra, o controle da produção e circulação pelas transnacionais, a monocultura e a base tecnológica da revolução verde eram elementos de um mesmo projeto de morte para o campo brasileiro.
Nesse momento que decidimos que a única possibilidade para a agricultura brasileira que responda aos anseios e necessidades do povo passa não somente pela reforma agrária, mas também pela soberania alimentar e pela agroecologia. Esses elementos aparecem em nosso IV Congresso Nacional, em 2000, se consolidam no V Congresso Nacional, em 2007 e adquirem caráter de programa agrário em nosso VI Congresso, em 2014.
Assim, entendemos que a reforma agrária só voltará a ser reconhecida como uma necessidade estrutural para nosso país no momento em que ela voltar a ter importância fundamental para a classe trabalhadora. E isso
só é possível com as famílias assentadas e acampadas assumindo a tarefa de produzir alimentos saudáveis, diversificados e a preços justos para produtores e consumidores. Essa articulação entre o campesinato e a
classe trabalhadora urbana chamamos Reforma Agrária Popular.
E é dentro da Reforma Agrária Popular, que interessa não somente aos Sem Terras, mas também à população que está nas cidades, que a agroecologia encontra sua possibilidade mais concreta. Por agroecologia entendemos a práxis social e produtiva dos camponeses, onde a partir do trabalho, do estudo, da reflexão e da organização popular criamos e manejamos sistemas produtivos diversificados, que tem a natureza como aliada, não como inimiga. A agroecologia é uma coevolução entre o sujeito social do campo e o meio ambiente ao seu redor, sua natureza exterior. A medida em que produzimos agroecologicamente na terra conquistada, com cooperação, com novas relações sociais, estamos reconstruindo nós mesmos, nossos coletivos e nossos territórios. E, com os frutos desse processo, alimentando as famílias trabalhadoras brasileiras.
Mas… o que de fato avançamos na agroecologia nesses tantos anos de trabalho?
Podemos começar pelas experiências de cadeias produtivas mais consolidadas, como as sementes de hortaliças, o arroz e o café. No caso do arroz, somos hoje os maiores produtores de arroz agroecológico das américas. Produzimos cerca de 27 mil toneladas de arroz por safra, que em sua maioria vão para a alimentação escolar de dezenas de cidades de médio e grande porte de todas as regiões do país.
A Bionatur, por sua vez, é uma pioneira da agroecologia no MST. Quando ainda nem era uma definição política central da organização, algumas famílias assentadas da região sul decidiram mudar a produção de sementes de hortaliças convencionais para sistemas agroecológicos, há 21 anos atrás. O resultado foi a criação da Bionatur, também referência no continente americano. Hoje são mais de 80 variedades de diferentes espécies que produzem cerca de 12 toneladas de sementes agroecológicas por safra.
Já o café é um esforço de anos que, mais recentemente, temos conseguido consolidar. Após várias experiências de transição agroecológica e diversas dificuldades, há três anos um processo de intercooperação entre famílias assentadas de Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná e Bahia tem possibilitado o beneficiamento de 6 toneladas de café agroecológico, que são vendidas para prefeituras de todo o país, além de parte ser exportado.
Mas a agroecologia não é materializada apenas nesses sistemas produtivos mais consolidados. Ela está presente em todas as regiões do país, em quase todos os assentamentos. Segundo estimativas internas do Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente, somos mais de 50 mil famílias produzindo agroecologicamente em nossos assentamentos. São Agroflorestas, que tem em São Paulo, Bahia, Paraná, Pará e Rondônia suas
experiências mais consolidadas; quintais produtivos, agroflorestais, diversificados, que tem transformado a reforma agrária no semi-árido brasileiro; sistemas de produção animal como o Pastoreio Racional Voisin, presente nos três estados brasileiros do sul, além de Mato Grosso do Sul e São Paulo, produzindo leite e seus derivados e carne; produção e manejo de sementes crioulas; sistemas de produção de cana de açúcar, com produção de açúcar mascavo, melado, cachaça; produção de erva mate; hortos medicinais, casas de sementes, agroextrativismo… enfim, inúmeras práticas que articulam conhecimento popular e acadêmico, formas organizativas coletivas e muita luta.
Para chegar a esse nível de desenvolvimento, organização e capilaridade da agroecologia, um elemento fundamental foi a formação. Muitas atividades e ações foram desenvolvidas nos acampamentos, assentamentos e centros de formação para transformar a agroecologia de acordo com cada realidade. Mas a ação mais ousada foi a implementação dos cursos técnicos, tecnólogos, de graduação, especialização e mestrado em agroecologia.
Esses cursos foram construídos pelo MST em parceria com várias universidades e institutos federais, voltados para as famílias assentadas. O objetivo é claro: construir um corpo de técnicos populares que dominem a práxis agroecológica e a construa em seus territórios de atuação.
A forma mais consolidada dessa iniciativa foi a rede de Institutos Latino Americanos de Agroecologia – IALAs – sendo a primeira experiência a Escola Latinoamericana de Agroecologia (ELAA), criada em 2005, no Paraná, com o curso de Tecnólogo em Agroecologia. Logo após segue-se a criação do IALA Amazônico, no Pará e, mais recentemente, a Escola Popular de Agroecologia Egídio Brunetto, na Bahia. Sem contar as diversas escolas e centros de formação que temos nos vários estados brasileiros.
Desde então uma diversidade de mais de 40 cursos formais ocorreram nas várias regiões do país, formando mais de 2.000 técnicos. Com o avanço da internalização da agroecologia no interior do MST os desafios também aumentam. E não ficam somente no aspecto produtivo. Nos últimos anos, graças à luta do MST, a agroecologia tem entrado na vida das crianças e jovens não apenas em suas casas, mas também na escola. A agroecologia passou a estar presente como disciplina, em alguns casos, como tema transversal, em outros, sempre articulada com as práticas de cada realidade.
Desse processo tem nascido novos currículos, novas iniciativas pedagógicas e, principalmente, tem fortalecido a
Educação do Campo como projeto político para a educação. Também avançamos no diálogo com a sociedade, apresentando a Reforma Agrária Popular e seus resultados como contraposição ao projeto de morte do capital para o campo, o Agronegócio. Por um lado, lutando pela ampliação e universalização das políticas públicas de compra e aquisição de alimentos agroecológicos, fornecendo alimento saudável para escolas, hospitais, asilos e presídios.
Por outro, procurando dialogar com as famílias trabalhadoras da cidade por meio de milhares de feiras que ocorrem nos municípios onde temos assentamentos e das feiras estaduais da reforma agrária, que já são patrimônio de muitos estados. Nos últimos cinco anos nos lançamos a novos desafios, criando os Armazéns do Campo, que comercializam alimentos agroecológicos em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, além de outros que logo mais abrirão em novas cidades. E, como não poderia faltar, as nossas feiras nacionais da reforma agrária, que estão em sua terceira edição, por onde passam, todos os anos, mais de 200 mil pessoas, e com as quais compartilhamos nossos produtos, nossa culinária, nossa cultura.
Podemos seguramente afirmar que hoje o MST está em uma marcha histórica – e sem volta – rumo à transição agroecológica em todos seus territórios. Esse não será um processo simples, rápido e sem contradições. Mas, sem dúvidas, é a tarefa que a história nos colocou nesse momento: reconstruir o projeto para a sociedade brasileira, onde as famílias camponesas e trabalhadoras retomam a soberania sobre seus territórios, sua alimentação, sua capacidade produtiva e, com isso, estabelecem uma nova relação com a natureza, baseada no trabalho e na compreensão das dinâmicas ecológicas.
“AgroecologiaÉOCaminho
*Luiz Zarref é integrante do setor de produção do MST.
** Editado por Maura Silva.