Sétima arte e a luta pela Reforma Agrária

Foi por meio do cinema que Camila Freitas e a diretora Julia Mariano se apaixonaram pelo MST

 

Por Solange Engelmann
Da Página do MST 

 

A cineasta e diretora de fotografia, 35 anos, Camila Freitas e a diretora e produtora de documentários, 37 anos, Julia Mariano conheceram o MST em períodos diferentes, mas foi por meio do cinema que se aproximaram dos Sem Terra e puderam compreender a importância da luta pela terra e Reforma Agrária no país.

Julia conheceu o MST por meio do audiovisual, na década de 1990, com o filme “O sonho de Rose”, mas conta que só durante a pesquisa para um documentário sobre o bispo Dom Pedro Casaldáliga visitou um assentamento pela primeira vez. “Fiquei muito impressionada com a força do movimento e dos camponeses, lembro que em
especial a força das mulheres me chamou a atenção”, relembra.

Já Camila teve informação da existência dos Sem Terra, com a notícia do Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, quando 21 trabalhadores foram assassinados pela Polícia Militar do Pará. Ela estabeleceu um contato mais próximo com o MST em 2001, durante um Acampamento Nacional do Movimento Sem Terra, em Brasília,
época em que cursava cinema na Universidade de Brasília (UnB).

“Eu tinha acabado de entrar no curso de Cinema e, durante uma greve, eu e outros companheiros decidimos ‘transferir’ o curso pro acampamento. Tentamos fazer um filme. Filmávamos com o que tínhamos”, conta Camila. Ainda segundo ela, o grupo realizou algumas filmagens de marchas que o MST realizou pela Esplanada dos Ministérios, durante àquele período de acampamento.

O que Camila e Julia têm em comum?

 

JuliaMariano.jpeg
Julia Mariano/Arquivo pessoal

A paixão pela sétima arte e a experiência em trabalhar com produções de cinema que tratam de temas políticos e sociais como a luta pela terra e a Reforma Agrária. O maior conhecimento da cineasta e da diretora sobre o MST, se propícia, justamente, por meio do contato na produção cinematográfica. Julia dirigiu dois filmes curta metragem, com assuntos relacionados à questão agrária: o documentário: Ameaçados (22 min), lançado em 2014 e “Do corpo da terra” (24min), de 2017.

Segundo a diretora, no primeiro curta foi realizada uma abordagem sobre o conflito agrário e a violência no campo, denunciando as ameaças de mortes sofridas por trabalhadores rurais na regiões Sul e Sudeste do Pará. As filmagens tiveram como base o relatório de Conflitos no Campo publicado pela CPT e o apoio financeiro do Grupo de Erradicação do Trabalho Escravo (GAETE).

O curta &”39;Ameaçados&”39; recebeu quatro prêmios de público em 2014, além de desempenhar uma função político-social importante, chamando atenção para a violência no campo, em torno da terra no Estado do Pará. “Essa função é muito interessante porque ela abre outras possibilidades, não só de exibição de filme, mas de entendimento do que a gente pode transformar a partir do cinema”, explica Julia.

Já o documentário &”39;Do Corpo da Terra&”39;, teve como foco o resgate da sabedoria popular na área da saúde e sua aplicação na vida cotidiana dos camponeses. Abordou-se a relação entre saúde e qualidade de vida, demonstrando como a Reforma Agrária pode melhorar a qualidade de vida das pessoas, e indiretamente, sua
saúde e a relação com o próprio corpo. Julia conta que foi uma experiência muito interessante. “Os membros do Coletivo de Saúde tem muito conhecimento de medicina tradicional popular. A relação que estabelecem com os Postos de Saúde (SUS) locais também é muito importante”.

A cineasta Camila está produzindo o filme “Chão”. O longa metragem documental começou a ser gravado em 2014, a partir da vivência da diretora com o MST e as ocupações de terra na região Centro-Oeste: Goiás, Brasília e Mato Grosso. Segundo ela, é o que chamamos às vezes de “filme de processo”, pois envolve os processos de convivência, pesquisa e filmagem que se confundem e se transformam junto com o próprio objeto do filme. 

Screen Shot 2018-12-05 at 22.14.08 (1).png
Filmagens realizadas no acampamento do MST, na região Centro-Oeste

“O filme busca pensar a luta por reforma agrária a partir das novas relações que se estabelecem entre as pessoas e a terra ocupada, em que elas se reinventam junto com a paisagem. Tentamos lançar um olhar próximo e, claro, parcial, sobre esse organismo complexo que é o MST”, ressalta.

A cineasta explica ainda que durante as experiências vivenciadas junto ao MST e as famílias acampadas pode perceber “o quão complexa, extensa e imprevisível é a luta, e o quão batalhada é cada conquista.” Diante disso, o foco do filme foi deslocado dos resultados de uma ou outra disputa específica na luta pela terra para elementos mais sutis acerca da experiência de luta e da resistência cotidiana em uma ocupação de terra. A equipe iniciou as gravações na ocupação Dom Tomás Balduíno, que reuniu cerca de 3500 pessoas no município de Corumbá (GO). Em seguida, passou a filmar na ocupação Leonir Orbak, em Santa Helena de Goiás, onde 600 famílias acampam desde 2015 as terras da usina Santa Helena.

As contribuição do cinema
 

Há décadas que a sétima arte reforça determinados comportamentos sociais e inspira outras formas de ver, pensar e viver no mundo. Julia acredita que o cinema é um instrumento potente de comunicação para o MST, já que por meio dele é possível mostrar os benefícios da Reforma Agrária em diferentes narrativas e humanizar a luta. “É uma potência não apenas para a comunicação externa, para aproximar o movimento das pessoas da cidade e desfazer pré-conceitos, como também é superpotente para a comunicação interna do movimento, em estabelecer vínculos mais fortes entre os diversos assentamentos, acampamentos e regiões de atuação”, aponta a diretora Julia.

Camila Freitas - arquivo pessoal.jpg
 Camila Freitas à esquerda. A direita Camila Machado (parceira de som) e Nelson, Sem Terra do MST em Goiás

Para a diretora Camila, o cinema é uma alternativa importante para renovar e recolocar a imagem do MST no Brasil e no mundo, por exemplo, em relação à questão da agroecologia e das diferentes maneiras de ocupar o campo que o movimento propõe.

“Acredito fortemente que o cinema possa provocar empatia e identificação de outros indivíduos e setores da sociedade que desconhecem o MST ou o conhecem apenas através de visões estigmatizadas da mídia e discursos hegemônicos ligados ao agronegócio”, defende Camila.

O cinema e o audiovisual podem ir além de meios massivos como o jornalismo, na medida em que conseguem trabalhar com a dimensão da experiência, da fabulação e da criação artística. 

“Em tempos de relativização de conquistas sociais que pareciam consolidadas, “fake news” e revisionismos perigosos, por exemplo em relação ao golpe militar e à tortura, o cinema é um instrumento poderoso de auto-reflexão e memória”, conclui a cineasta Camila.