Artigo: As escolas de samba pensam o Brasil
Por Tiaraju Pablo*
Da Página do MST
Carnaval de 2017. Carros alegóricos da Unidos da Tijuca e da Paraíso do Tuiuti sofrem acidentes na concentração dos desfiles. Medo. Correria. Feridos. Os episódios ganham espaço na mídia e ofuscam a beleza dos desfiles e dos sambas daquele ano. Aproveitando-se da diminuição da legitimidade social das agremiações, os setores conservadores da sociedade partem para o ataque. As escolas de samba viram alvo de investigações e, passado o carnaval, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcello Crivella (PRB), anuncia o corte pela metade do recurso público destinado a elas. Prenunciava-se o começo do fim de uma das manifestações culturais mais interessantes surgidas em solo brasileiro: o desfile das escolas de samba.
A crise das escolas de samba era um sinal dos tempos. No ano de 2016 a presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff (PT) foi deposta por um golpe. O pacto democrático havia se quebrado e o país aprofundava sua crise política e social. Os setores reacionários da sociedade apontavam suas armas para tudo aquilo que se contrapunha ao seu projeto: universidades, sindicatos, feministas, LGBTs, trabalhadores, movimentos sociais, partidos políticos e pobres em geral. Como expressão da organização do povo negro no Brasil, as escolas de samba também passaram a ser perseguidas.
Engana-se, no entanto, quem acreditava que a crise das escolas de samba devia-se somente aos fatores externos. Nos últimos anos, muitos erros foram cometidos pelas agremiações: dependência exagerada da Rede Globo de Televisão; patrocínios escusos, alianças duvidosas com políticos; viradas de mesa, temáticas sem nenhuma relação com a sociedade, dentre outros. Todos isso aliado ao crescimento do carnaval de rua no Rio e em São Paulo pareciam querer apontar para uma direção: os desfiles das escolas de samba tenderiam a ser espetáculos cada vez mais herméticos, competitivos, geridos por especialistas. Quem quisesse diversão que fosse para os blocos.
No fundo, o quê estava em jogo era a função social desse fenômeno social chamado escola de samba. Passado o carnaval de 2017, de golpe em golpe, as escolas de samba observaram que estavam em um momento de uma necessária reflexão. Ou modificavam seu estar no mundo ou seriam engolidas pelos novos tempos. Ao invés de se acuarem, a decisão tomada foi a de contra-atacar, de reconquistar seu espaço na sociedade, historicamente construído com sangue, suor, lágrimas e samba. No entanto, esse renascer passaria pelo reencontro da verdadeira vocação das escolas de samba: contar a verdade do seu povo (que isso sirva de lição a outros setores progressistas da sociedade).
O carnaval de 2018 foi uma prova disso. Naquele carnaval, ao menos quatro escolas tiveram sambas e desfiles com temáticas absolutamente críticas. A Mangueira optou por fazer uma crítica direta ao prefeito do Rio que pretendia asfixiar as escolas de samba com cortes de verbas. Gigante que é, a Mangueira foi pra cima. Dando vazão a sua vocação africanista, o Salgueiro desfilou as mulheres negras e sua importância na história do Brasil e da África. Com um samba absolutamente contundente, a Beija-Flor apresentou em seu desfile uma série de mazelas sociais que assolam nosso país. Rápida, a mídia hegemônica repassou ao público de que se tratava de um enredo contra a corrupção.
De certo uma leitura rasa, que ocultou as críticas que a escola fez a pobreza, à precariedade dos serviços públicos e à intolerância religiosa. A escola ganhou o campeonato. No entanto, quem entrou para a história do carnaval naquele 2018 foi a Paraíso do Tuiuti. Com um desfile épico, a escola traçou uma linha de continuidade entre a escravidão e as relações de trabalho no Brasil atual. Quem não chorou ao ver a comissão de frente onde negros eram açoitados? Quem não se indignou ao ver o vampiro Michel Temer com a faixa presidencial? Quem não regozijou com uma pitada de sarcasmo ao ver a ala dos manifestoches? O desfile teve uma repercussão imensa, se transformando em fato político. No desfile das campeãs, a Paraíso do Tuiuti foi censurada, e não pôde apresentar com plenitude seu desfile. Enfim, carnaval é espaço de luta política.
Aquele desfile da Paraíso do Tuiuti foi um divisor de águas na história das escolas de samba. Ela sintetizou o momento de virada no entendimento que as escolas de samba tinham de si mesmas. Para sobreviverem em um mundo hostil, somente reencontrando suas raízes críticas. E foi por esse caminho que enveredaram as escolas para o carnaval de 2019. Uma explosão de enredos críticos contracenando com um dos períodos mais autoritários da história do país. A São Clemente discorreu sobre a comercialização do carnaval. Enredo corajoso que mostrou que escola de samba não tem medo de botar o dedo nas próprias feridas. A Imperatriz tratou de dinheiro, e como este se tornou o mediador das relações. A Unidos da Tijuca, ao tratar do pão, denunciou a fome. O Salgueiro, ao homenagear seu orixá Xangô, clamou por justiça. A última ala representava uma passeata e a necessária luta por liberdade de expressão. Em São Paulo, onde a onda crítica aportou com mais timidez, cabe lembrar os desfiles da Águia de Ouro, com uma denuncia da pobreza e da fome, e da Vai-Vai, com uma denuncia ao racismo.
No entanto, o ápice do posicionamento crítico das escolas de samba ficou por conta dos desfiles da Paraíso do Tuiuti e da Mangueira. Com o enredo “O salvador da pátria”, a Tuiuti levou para a avenida a história de um bode
nordestino que enfrentou a seca e uma série de adversidades até se tornar querido do povo. Ganhou uma eleição mas não pode assumir. A faixa ficou com trambiqueiros. Estaria a escola contando a história de Lula? Ninguém na escola confirmou e ninguém na escola negou. E é aí que está a graça. Diferentemente do enredo contundente de 2018, em 2019 a Tuiuti optou pela ironia e pela sutileza. Como se dissesse: “entendam da forma que quiserem”. E no desfile da escola foi possível ver um bode (expiatório?) que tinha arrancada sua faixa presidencial e um carro alegórico com a “fauna política”, onde ratos, porcos e cobras podiam se candidatar, mas o bode não. Por fim, o último carro alegórico apresentava frases contra o conservadorismo além de duas faixas gigantes com os dizeres “ninguém solta a mão de ninguém”.
O desfile da Mangueira foi épico. Apoteótico. Histórico em todos os sentidos. Ouso dizer que seu desfile no carnaval de 2019 entrou no panteão dos maiores desfiles da história da Sapucaí, no qual incluiria a Kizomba da Unidos de Vila Isabel, de 1988; os ratos e os urubus da Beija-Flor em 1989 e a Paraíso do Tuiuti de 2018. A Mangueira cantou a verdadeira história do Brasil, aquela que não está nos livros e nem é consagrada pela versão das elites.
Esse país que não está nos retratos oficiais celebra os Cariris, os Tamoios, o quilombo dos Palmares, a revolta do Malês, os caboclos de Julho, todos que lutaram contra as ditaduras, Dandara, Luisa Mahin, Teresa de
Benguela, Carolina Maria de Jesus, Jamelão, Leci Brandão, dentre outros verdadeiros heróis, alguns mais famosos, outros anônimos, todos de origem pobre. Virar a história do Brasil do avesso pressupôs propor uma outra bandeira, onde o verde e amarelo é substituído pelo verde-rosa-povo da Mangueira, e a tristemente célebre frase “ordem e progresso” substituída por “índios, negros e pobres”.
O desfile da Mangueira é para ser degustado e compreendido centímetro por centímetro. É para ser passado nas escolas, nos trabalhos de base e também assistido com familiares e amigos. É para ser divulgado para o todo e
para sempre até que a verdadeira história do Brasil se imponha sobre a mentirosa versão hegemônica. Belo e importante momento este em que as escolas de samba assumiram seu papel na história, pensando o Brasil e incidindo na conjuntura política.
Assumiram que são intelectuais orgânicas da classe. Como afirmou o carnavalesco da Mangueira: “a função social da escola de samba é educar e politizar seu povo”. Perfeito. É aí que elas cumprem plenamente seu papel
histórico. Pra finalizar, cabe ressaltar que, independente do resultado dado pelos jurados, a grande campeã deste carnaval foi Marielle Franco. A vereadora assassinada foi mencionada nos desfiles da Unidos da Vila Isabel, da Paraíso do Tuiuti, da Mangueira, da Vai-Vai, da Pérola Negra, dentre outras escolas e em inúmeras manifestações de rua.
Marielle eterna. Marielle presente. Quem ficou eternizada em sambas e na memória coletiva é ela, e não seus algozes!
*Tiaraju Pablo é cantor, compositor, professor e pesquisador do Centro de Estudos Periféricos (CEP).