Assentamento do Paraná é referência na produção de agroecológicos
Por René Ruschel
Da Carta Capital
Luís Clóvis Schons ainda recorda da madrugada fria e chuvosa em que foi despejado do primeiro acampamento, em 1986. Tinha, à época, apenas 13 anos. O pai, um agricultor que tentava fugir da indigência, engrossava o exército de miseráveis que buscavam um pedaço da terra para sobreviver. “Os policiais chegaram batendo. Não importava se havia crianças, mulheres ou velhos. Destruíram as lonas, pegaram nossos pertences e jogaram à beira da estrada. Foram três dias de violência.” Os líderes acabaram marcados na perna com ponta de baioneta. “Meu pai ainda tem a cicatriz.”
A tática da Polícia Militar foi separar as famílias. “Eles dividiam as mulheres, homens e crianças em locais diferentes. Assim, ninguém fugia, pois cada um precisava encontrar seus parentes.” Jogados na carroceria de um caminhão e despejados em plena madrugada na praça central de Chopinzinho, no sudoeste do Paraná, o único abrigo disponível foi a igreja. “Lembro que o padre trouxe alguns sacos para servir de cobertor. Fazia muito frio e nós, encharcados pela chuva, sobrevivemos daquele jeito.”
Aos 45 anos, casado, três filhos, Schons possui um lote de 10 hectares de terra no Assentamento Contestado, no município da Lapa, há cerca de 60 quilômetros de Curitiba-PR. Ele Mora em casa própria, produz verdura, frutas e cria animais. Os 13 anos vividos embaixo de uma lona, à beira das estradas, fazem parte de sua história. “Hoje posso oferecer à minha família casa, comida e segurança. Meus filhos estudam e tenho trabalho. A Reforma Agrária me tirou da miséria.”
A história de Schons repete-se pelos 3,2 mil hectares, onde 108 famílias vivem há 20 anos completados em fevereiro. O Assentamento é um inegável exemplo de sucesso. No ano passado, a Cooperativa Terra Livre, responsável pela comercialização dos produtos produzidos no local, vendeu 270 toneladas de hortaliças, frutas e verduras. “Para 2019, nossa previsão é entregar 8 toneladas por semana”, afirma o ex-presidente da cooperativa e atual assessor técnico de gestão Paulo Cesar Rodrigues Brizola.
No ano passado, foram produzidas 270 toneladas de frutas, verduras e hortaliças sem agrotóxicos
Terra sem agrotóxicos
O elo mais importante dessa união é que toda a produção seja agroecológica. “Não abrimos mão desta condição. Aqui não usamos agrotóxicos. Adubamos a terra com compostos orgânicos”, ressalta Brizola. Além da produção agroindustrial, os agricultores dividem máquinas, tratores e equipamentos agrícolas. De toda área, 30% é de reserva natural. Um santuário intocável.
Nestas duas décadas, muita coisa mudou. “Fomos aprendendo com o tempo. A luta e as dificuldades nos ensinaram a sobreviver e crescer”, ensina Carlos Neudi Finhler, velho militante do MST e também assentado. Um moderno posto de atendimento médico está à disposição dos cerca de 800 moradores da comunidade, mas isso não impede que o setor de saúde do movimento adote e incentive o uso de terapias alternativas. A educação é outro motivo de orgulho. Todas as 130 crianças frequentam as escolas. Da Educação Infantil à pós-graduação, o acesso está garantido para todos. “Apenas dois moradores podem ser considerados analfabetos. Por questões cognitivas, não conseguiram aprender”, conta entusiasmada a professora Sandra Mara Maier.
Daí a importância da Escola Latino-Americana de Agroecologia, que também funciona na comunidade. A ideia de implantar um curso especializado nasceu no Fórum Social Mundial de 2005. “Precisávamos transmitir o conhecimento agroecológico aos nossos jovens, filhos de agricultores que foram criados na agricultura tradicional. Nosso objetivo era produzir alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, e foi preciso romper com velhos conceitos”, conta Simone Aparecida Resende, pedagoga e mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná.
A escola oferece dois cursos: tecnologia em Agroecologia e licenciatura em Educação do Campo, com habilitação em Ciências da Natureza. As turmas não são regulares, uma vez que a escola depende de recursos do governo federal. Os treinamentos duram seis meses. Entre uma etapa e outra, os alunos retornam às suas casas para aplicar o que aprenderam. “No período que estão aqui na escola, grupos de três alunos acompanham a produção de famílias assentadas. É uma troca de experiências.”
Desde a fundação da Escola Latino-Americana, 270 estudantes foram graduados. Está prevista uma nova turma para este ano, com 60 alunos. A grande incógnita é saber se o governo Bolsonaro vai liberar a verba já aprovada no orçamento. O custo anual é de 280 mil reais, pouco mais de 4,6 mil por aluno ao ano.
“A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte”, cantarola Ana Claudia dos Santos, 27 anos, professora e integrante do coletivo de cultura do assentamento. O prédio mais bonito do local, recém-restaurado, é o Casarão. Construído em 1836 por escravos, serviu de residência para o Barão dos Campos Gerais, antigo proprietário das terras. Agora foi convertido em um vistoso espaço cultural para apresentações de teatro, cinema, música, dança e exposições de artes plásticas. “A reforma agrária não é apenas dividir lotes. A cultura é uma necessidade para transformação humana. Além de entretenimento, serve como instrumento de mudança, de conhecimento e luta.”
Futuro está indefinido
A grande incógnita é prever o futuro do programa de Reforma Agrária, inclusive em relação às fontes de financiamento. Já nos primeiros dias do governo Bolsonaro, o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) anunciou a paralização de todos os processos em análise. O temor é que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) seja desativado. “Caso isto aconteça, teremos de buscar novos mercados”, diz Brizola.
No movimento desde 1985, Carlos Finhler garante que o MST vai resistir. “Não pela violência, mas por meio do diálogo para uma situação propositiva. O movimento tem longa história e soube superar todas as adversidades. Chegamos até aqui e vamos caminhar ainda mais.”