Herdeiros da Terra de 1º de Maio: terra, educação e muita produção em 5 anos de luta
Por Ednubia Ghisi/ Colaborou: Kelen Alves
Da Página do MST
As 18 salas de aula da Escola Itinerante formam o pátio da comunidade central do acampamento Herdeiros da Terra de 1º de Maio, em Rio Bonito do Iguaçu, região Centro do Paraná. Em uma das pontas fica o barracão onde está a biblioteca e a secretaria. Na outra, o salão de festas coberto. Nas paredes de madeira estão cartazes coloridos e atividades escolares, e também bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que organiza a ocupação.
De crianças da pré-escola a jovens do ensino médio, mais de 500 estudantes movimentam a poeira daquela terra vermelha ao longo da semana. Neste domingo (19), o espaço recebeu moradores e visitantes para comemorar a conquista de 5 anos da ocupação, que hoje é lar para aproximadamente 1.100 famílias Sem Terra. As crianças e a juventude protagonizaram a mística de abertura com a derrubada simbólica de árvores de pinus, marca da disputa fundiária da área com a madeireira Araupel.
Um pequeno caminhão com a lateral aberta serviu como palco para as apresentações que abriram os festejos, enquanto o cheiro de churrasco já tomava conta do ar. Representantes das diversas denominações religiosas presentes na comunidade participaram de um ato inter-religioso para celebrar a luta pela terra, o respeito à diversidade e a união das famílias.
No momento da bênção para a partilha, o padre Sebastião José Gulart, da Paróquia Santo Antônio de Pádua, pediu pela multiplicação dos alimentos e para que não falte o pão de cada dia nos lares dos acampados: “Se ainda falta pão em nossos lares do Brasil é porque tem algo errado. Se falta pão é porque alguns estão acumulando. Alguém tem demais, e outros não têm. Isso é injusto. Por isso a luta de vocês é justa”. Uma das 51 igrejas que compõem a paróquia está localizada no acampamento.
E a produção de alimento é um dos principais motivos para festejar. Em 2018, foram colhidas 50 mil sacas de milho, 12 mil de feijão, 12 mil sacas de arroz, 60 mil quilos de mandioca, 22 mil quilos de batata doce, e mais uma longa e variada lista de grãos, tubérculos, verduras e animais. A maior parte dos frutos do trabalho é utilizado para o consumo das próprias famílias. O excedente vai para feiras e consumidores dos municípios da região.
Lurdes da Costa já produz milho, mandioca e mantém uma horta diversificada ao redor da casa onde vive com o marido e dois filhos – um de 6 e outro de 11 anos. Ela e a família saíram da área urbana do município para morar no acampamento. “Meu marido trabalhava fazendo bico. Uma hora tinha serviço, outra não. A vida estava muito difícil”.
Além de comemorar a colheita da terra, a agricultora relata a satisfação em ter garantido a educação dos filhos: “Eu sempre levei a escola das crianças muito a sério. Peguei a transferência na sexta-feira e na terça-feira da outra semana ele [o filho mais velho] já estava estudando. A funcionária do colégio não queria me dar a transferência. Ela não acreditava que tinha escola no acampamento. E eu tinha certeza que daria certo. E deu.”, lembra emocionada.
O trabalho voluntário e em mutirão permitiu a inauguração da Escola Itinerante Herdeiros do Saber em setembro de 2014, quatro meses após a ocupação da área. Por tratar-se de uma área extensa, a escola está dividida em duas localidades. Ao todo são 667 alunos, 25 salas de aulas, 65 professores – 33 moradores do acampamento. As escolas itinerantes são públicas e mantidas com recursos do governo estadual. São uma conquista do MST para garantir educação para crianças e jovens acampados.
“Quando eu olho para nossa comunidade hoje, quase não acredito. A gente veio pra debaixo das árvores, não tinha nada. Era só barraco de lona, lavar roupa no rio”, relembra a agricultora Vilma Batista de Almeida, de 51 anos, que participou da construção da comunidade desde o acampamento-base, iniciado em 1º de maio de 2014. Ela e o marido trabalhavam em uma empresa de suinocultura, em Santa Catarina, com salário que “dava pra sobreviver, mas não pra comprar um pedaço de terra”, como era o sonho dos dois.
Hoje eles colhem “de tudo um pouco” na terra onde vivem. “Eu digo que isso parece, pra nós que somos mães, a dor do parto. É uma dor que dá e passa. E você puxa pela memória e lembra que foi difícil. E assim também é a nossa luta. Porque agora a sensação é que tudo passou e valeu a pena. Está acima do que eu sonhava”, garante. Mas e logo volta atrás: “Na verdade só está faltando uma coisa. A morada só se completa quando você tem um açude de peixe. Eu ainda vou ter o meu”, brinca.
Grilagem X Reforma agrária
Os 15 mil hectares do ainda jovem acampamento Herdeiros da Terra de 1° de Maio fazem parte de uma disputa antiga. As ocupações na região começaram em 1996, quando o MST passou a ocupar áreas com forma de denunciar a grilagem feita pela madeireira Araupel. Em 1972, quando foi fundada, a empresa comprou 80% de um latifúndio de 104 mil hectares dentro das fazendas Rio das Cobras e Pinhal Ralo, que eram originalmente terras públicas.
Pinhal Ralo está no município de Rio Bonito do Iguaçu e Nova Laranjeiras, como parte de um título de 43 mil hectares. Aproximadamente 28 mil já estão divididos em três assentamentos – Ireno Alves dos Santos, Marcos Freire e 10 de Maio, somando um total de 1.600 famílias assentadas. O restante da área forma o acampamento Herdeiros da Terra de 1º de Maio. “Essa área é como se fosse um recheio no meio dos assentamentos, está geograficamente localizada de forma estratégica”, explica Bernardino Camilo da Silva, advogado do MST.
O imóvel Rio das Cobra fica entre Quedas do Iguaçu, com 63 mil hectares. O título da área foi declarado nulo pela 1ª Vara Federal de Cascavel, em maio de 2015, e também em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal 4 (TRF4), em agosto de 2017. Parte da área foi destinada à reforma agrária e originou o assentamento Celso Furtado. Outros três acampamentos resistem no restante do imóvel: Dom Tomás Balduíno, localizado em uma área da Araupel; e Vilmar Bordin e Leonir Orback, em fazendas de outros proprietários.
No caso do acampamento Herdeiros da Terra, o advogado explica que tramita uma ação de reintegração de posse em Laranjeiras do Sul, já com autorização judicial para reintegrar a área. No entanto, Camilo não acredita que haja viabilidade para uma reintegração, uma vez que o acampamento está cercado por assentamentos, com apoio mútuo entre as famílias agricultoras. “Já é uma comunidade consumada, criaram moradia, trabalho, escola. A situação precisa se resolver com qualquer outra medida que não seja a reintegração de posse”, defende.
Reconhecimento público
Laureci Leal, integrante da direção nacional do MST e da região Centro do estado, relacionou a resistência das famílias acampadas às tentativas do governo Bolsonaro de fragilizar o Movimento. “Essa comunidade é a prova de que jamais vão derrotar o MST, nosso movimento que já está no seus 35 anos de vida. Somos resultado da falta da reforma agrária. Mas enquanto não houve, nós resistiremos”. Para o dirigente, o momento pelo qual o Brasil passa é de retrocesso e de uma gestão fraca: “Se um governo ameaça os trabalhadores e a vida, é porque não consegue enfrentar os problemas reais do país”, afirmou.
A presença de representantes do poder legislativo municipal, estadual e federal no ato de abertura da festa de 5 anos reafirmaram o apoio recebido pela comunidade. O deputado estadual mais votado do município de Rio Bonito do Iguaçu, Professor Lemos (PT), garantiu que o seu mandato não é individual, e sim coletivo, voltado às demandas da classe trabalhadora paranaense.
“Essa luta é nossa, é uma luta que não é antiga, não é de hoje. De fato essa luta precisa ser homenageada, pela reforma agrária e pela produção de alimentos saudáveis”, disse Lemos, ao entregar uma placa da Assembleia Legislativa do Paraná com menção honrosa pelos 5 anos de resistência da comunidade.
Luciana Rafagnin (PT), deputada estadual, acompanha o MST desde o surgimento, período em que ela também se inseriu na luta pela reforma agrária: “Precisamos conseguir, o mais rápido possível, a regularização dessa área pra vocês. O mais importante é que vocês têm sido um exemplo de resistência, de trabalhar na terra e dela tirar o seu próprio sustento. Estão conseguindo ensinar para os filhos a construção de um mundo com mais igualdade. Você nos inspiram muito”.
Aliel Machado (Rede), deputado federal, frisou que a luta que acontece no Brasil é contra as injustiças que ainda predominam. “Quem não vem visitar e pisar esse poeira não sabe da realidade do povo […]. Ninguém aqui é favor de desrespeitar as leis, e sim queremos que seja respeitada a Constituição que garante o direito à terra”.
A presidenta do PT e deputada federal Gleisi Hoffmann enviou uma carta às famílias do Herdeiros da Terra, em que reconhece o papel do MST na defesa da democracia: “No Brasil pós-golpe, nós vivemos uma situação muito difícil, mas mesmo diante de tantos retrocessos, vocês permanecem firmes. E tenho certeza que continuarão lutando com muita garra até que possamos restabelecer o Estado Democrático de Direito em nosso país. E isso inclui a liberdade do presidente Lula”.
Entenda o conflito na Araupel:
https://www.brasildefato.com.br/2016/11/10/entenda-o-conflito-entre-o-mst-e-a-madeireira-araupel-no-parana/
*Editado por Fernanda Alcântara