“Religião é política”: espiritualidade é território de luta para população afro

Sheila Walker e Chucho Garcia comentam o livro "Conhecimento desde dentro – os afro-sul-americanos falam dos seus povos"
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A estadunidense Sheila Walker (esq.) e o venezuelano Jesus Chucho García debatem a resistência negra
Foto: Geledés/Rafael Stedile

Por Agatha Azevedo
Do Brasil de Fato 

 

Durante o 1º Encontro de Povos de Terreiros Ègbé – eu e o outro, realizado nos últimos sábado (15) e domingo (16), em Belo Horizonte (MG), a antropóloga e diretora da ONG Afrodiáspora Sheila Walker debateu a importância da organização política dos Povos de Terreiro no Brasil e em todo o continente americano e da unidade para a resistência frente ao avanço do autoritarismo e do conservadorismo.
 

Em conversa com o Brasil de Fato, ela e o venezuelano Jesus Chucho Garcia, que atua pelos direitos dos afrodescendentes em seu país, discutem o papel da elaboração teórica para resgatar a história dos povos da diáspora negra nas Américas, e a importância de entender a religiosidade como um território de lutas em disputa na atual conjuntura internacional.
 

Confira abaixo:
 

Brasil de Fato: Sheila, em suas falas, é possível identificar a presença de uma construção política e religiosa afrodiaspórica em um contexto de opressão nos Estados Unidos. Como começou essa construção?

Sheila Walker: Como afro-americana nos Estados Unidos, é difícil não estar na luta para a igualdade de uma maneira ou outra. Eu fiz um doutorado em Antropologia, porque eu achava que a antropologia era uma disciplina maravilhosa para aprender sobre o outro, para apreciar o outro. Quando eu tinha 4 anos, eu ia na casa da minha tia, a irmã da minha avó, que morava no bairro chinês, e lá eles falavam diferente, tinham rosto diferente, eram diferentes e eu ficava fascinada com a possibilidade de conhecer o outro. Queria viajar, mas com 4 anos eu não podia. Então, quando tinha 19 anos fui a Camarões e morei com uma família maravilhosa pan-africanista que me fazia perguntas difíceis,  porque eu não conhecia a diáspora e não conhecia muitas coisas — afinal eu morava nos EUA — então comecei a perceber a minha ignorância sobre o mundo negro.
 

Eu era estudante de uma Universidade de elite branca, e eu era a negra da minha classe. Então eu agora compreendo que essa visita que eu fiz a Camarões, na África Central, era um antídoto à minha educação alienante. Eu tinha crescido em uma comunidade integrada, sempre fui a escola com todo mundo, mas na vida social, negros de um lado e brancos de outro, por costume, não por lei. Eu sou do norte dos Estados Unidos e minha família era da classe trabalhadora, negra, mas não estava na luta. A minha geração começou isso.
 

Foi neste momento que a religiosidade entrou na sua vida também? Como ela está ligada com a política?

Sheila: Eu comecei frequentando uma Igreja Batista, no norte dos EUA, e vi quando a música ficou quente – como a música tem que ficar quente nas nossas igrejas, se não ninguém participa – tinham umas senhoras muito bem vestidas que começaram a se mexer a pular e eu fiquei pensando: “o que é isso?”. Não compreendi, e me disseram “É o espírito”. Eu tinha 8 anos, e nunca consegui uma explicação de como funciona o espírito, de onde vem, e quando fui, na década de 1980, na minha primeira cerimônia de Candomblé na Bahia reconheci os gestos, mexer os ombros por exemplo, como quando chega o Orixá. Então eu disse: “Ah, agora eu compreendo de onde vem o espírito”, e foi dentro do protestantismo afro-americano, que não é como o protestantismo do Brasil, que eu entendi onde entra a nossa africanidade nos Estados Unidos.

Essas igrejas não são só casas da espiritualidade, uma função dessas igrejas nas nossas vidas é a organização política, a organização econômica. Não é atoa que muitos dos nossos líderes negros são pastores de Igrejas, como Martin Luther king, Reverendo Martin. Então não é só o espírito, é também a política. Religião também é política. No sul dos EUA por lei tudo era segregado, nos ônibus os negros tinham que ficar no fundo, se tiver lugar, então quando Rosa Parks não se levantou para dar o lugar dela no ônibus para um homem branco e foi presa, o que aconteceu depois? Uma reunião na igreja. Era todo um sistema de resistência que começou na Igreja. Para mim a igreja faz parte da minha vida cultural, mas eu nunca compreendi essas histórias da Igreja cristã, eu acho o candomblé mais interessante, mais dinâmico, mais bonito, se eu tivesse que dizer que a minha espiritualidade é algo, eu diria mais Candomblé do que protestante, mas é mais importante que eu conheça a cultura da Igreja porque é uma base para a nossa cultura afro-americana em geral.

Eu estava pensando, o Candomblé, por exemplo tem esse tipo de função na vida das pessoas ou fica apenas na espiritualidade? Bom, estamos aqui. É por espiritualidade, mas não só.

Como se desenvolveu o seu pensamento intelectual e político nesse contexto de entendimento da africanidade nos Estados Unidos?

Sheila: Quando fui fazer pós-graduação na Universidade de Chicago, foi no período em que começaram a deixar mais de um negro estudar nas Universidades. Éramos uma massa crítica. Mas percebemos com o tempo que é claro que estar ali era um privilégio, mas onde nós estávamos? Não estávamos nos livros, não contavam a nossa experiência, e acho que esse foi o começo da minha luta, e eu percebi que o meu papel era um papel intelectual para que a nossa existência fizesse parte do currículo. Então começamos a pedir mais aulas sobre nós, e passamos da fase dos pedidos para a fase das exigências não negociáveis. Percebi que o meu papel na luta é de ver a realidade da diáspora africana na América e no Atlântico, de ver as nossas contribuições, e desmentir as mentiras que aprendemos no sistema educativa pan-americano.

É a partir dessa necessidade de repensar a produção científica afrodiaspórica que o livro “Conhecimento desde dentro – os afro-sul-americanos falam dos seus povos e suas histórias” nasce?

Sheila: Sim. No nosso livro os povos falam de si mesmo, nós consideramos que estamos tendo um ato de quilombolismo intelectual, cimarronaje. Um dos elementos da minha atitude de luta é o fato de que os meus professores me mostraram que a disciplina da antropologia é não para conhecer o outro, mas para dominar o outro, é uma criação imperialista, mas eu achava que poderia usar as ferramentas para estudar o que eu queria estudar, e compreender mais a diáspora e nossos vínculos com a África. Fizeram um esforço para me fazer acreditar que a gente não tinha cultura, e isso foi escrito por grandes sociólogos estadunidenses no mesmo momento que acontecia a diplomacia cultural, e o que era o conteúdo? A nossa cultura “que não existia”. A partir de 1956, os EUA estava mandando músicos de Jazz ao redor do mundo para dizer que essa é a cultura dos EUA, que representa o país no mundo, mas o Jazz é a nossa cultura negra que diziam que não existia.

O que nós fizemos foi convidar pessoas de diversos países afro-sul-americanos, no total foram representantes de 9 países que falam espanhol, e que tem conhecimento sobre a realidade. Muitos não frequentaram faculdades, mas tem suas vivências, sua africanidade. A nossa missão era dar a possibilidade aos primos do sul de apreender qual o conteúdo da cultura deles e quais são as contribuições da comunidade afro-diaspóricas em seus países. Até o Tango, da Argentina, onde dizem não ter negros, é uma palavra bantu de uma história escondida, e nesse livro é a primeira vez que os afro-sul-americanos falam de suas realidades. Um dos elementos do livro é a perspectiva comparativa, se compreender e se reconhecer a partir de conhecer a cultura do outro, e nós tivemos que criar muitas palavras para essas teorias que não existiam e não eram faladas. A única explicação de alguns comportamentos nossos é a África enquanto origem.

Chucho, o que você como autor de um capítulo deste livro, percebe como cultura de resistência nesse território afro-sul-americano?

Jesus Chucho Garcia: Bom, na minha reflexão eu trago cinco tipos de cimarronaje: frontal, jurídica, ética, cultural e espiritual. Você sabe o que é cimarron e a cimarrona? Quando nós fugíamos do sistema escravista, nos chamavam de cimarron e cimarrona porque rompíamos as correntes. É como aqui o Zumbi dos Palmares no Brasil, era um cimarron, um quilombola. O primeiro cimarron é a luta frontal contra o amo, contra a escravidão, contra a opressão, e nós enfrentávamos na fazenda, na plantação, e fugíamos buscando por um espaço livre, o quilombo no Brasil, Palenque na Colômbia e em Cuba, Cumbes na Venezuela.

A segunda foi a cimarronaje jurídica. Muito africanos que foram trazidos como prisioneiros – eu não falo de escravizados, foram prisioneiros para fazer trabalho forçado em prisões chamadas cana de açúcar, café, cacau – tinham um espaço jurídico onde eles podiam comprar a sua liberdade, ou por exemplo, quando havia uma fuga de escravos em um país escravista, se eles chegassem em outra potência inimiga, eram considerados livres sempre e quando aceitavam a religião católica apostólica romana. Depois, tivemos a cimarronaje ética, que é a reivindicação dos valores africanos dos quilombos, mas também das lutas dos povos, como na luta pela libertação do Haiti, que depois também ajudou eticamente com exércitos internacionais a luta por libertação da Venezuela, Panamá, Colômbia, Peru, Bolívia, e Equador, numa mostra de solidariedade internacional dos povos.

Outro tipo é a cimarronaje cultural, a cultura de resistência, que tinha três momentos: a preservação da cultura original expressada na música, nos bailes, na culinária; a etapa da criação, em que estando em uma nova situação tiveram que tomar elementos da cultura indígena, certos aspectos da cultura dominante, e houve um processo de criação interessante – Brasil é um exemplo de como se foi combinando a cultura africana e indígena –; e logo estava a inovação como cultura de resistência. Começamos a inovar, a ter novos elementos, se o Samba aqui é um ponto de partida da cultura de origem congo, foi tomando elementos da cultura europeia até criar a Bossa Nova, assim foi também com outros ritmos.

Por último, vem a cimarronaje espiritual, que foi como nós conservamos nossa espiritualidade, e é o que explica como mesmo passando quatrocentos, quinhentos anos, a cultura Yorubá ainda siga viva, a cultura do Congo siga viva, a cultura Vodu siga viva. Isso é um exemplo da espiritualidade como parte da resistência. Podem ter te tirado um pedaço, flagelado o corpo, arrancado uma mão, mas a alma nunca, a fé nunca. A espiritualidade é a fé na luta por reivindicar a humanidade.

Para vocês, qual a importância desse 1º Encontro dos Povos de Terreiro para o avanço da luta dos povos afrodescendentes no cenário atual?

Sheila: Para mim, o fato de ter gente de vários lugares já é uma força. É um começo, esse nível de organização do povo de axé é muito importante sobretudo em um momento retrógrado que estamos vivendo aqui (no Brasil) e nos Estados Unidos. Mas, eu quero falar bem do racista e sexista que está ocupando a Casa Branca, porque ele é tão ruim que está provocando reações maravilhosas: agora nós temos mais jovens mulheres no congresso, entre nossos representantes tem uma palestina que nunca fecha a boca, uma porto-riquenha que sempre fala, uma somali migrante refugiada que fala, e ai ai ai… estamos resistindo, ele provocou reações fortes, e as mulheres têm um protagonismo nessa luta.

No Brasil, são 54% de autodeclarados afrobrasileiros, nos EUA somos como 13%, mas estamos organizados, e se esses 54% conseguirem ter unidade, haveria um grande avanço para o país, e é o que começa aqui nesse encontro. Eu espero que os terreiros e as casas tenham um comportamento mais político, que se vejam não só na religião, mas como base de comportamentos econômicos e políticos, de união contra os opressores, com a responsabilidade de ter um comportamento político de união. Quando os africanos chegaram, a opressão foi muito maior do que agora e conseguiram se organizar para a preservação dos Orixás. O fato estarmos aqui é uma prova de que estamos nos organizando para mudar o sistema a favor da gente.

Chucho: Penso que na primeira década do Século 21, provamos a possibilidade de uma mudança, os governos progressistas de Lula, Chávez, Mujica, bom, nesse momento houve muita inclusão. Se abriu uma possibilidade de que com governos mais humanos, progressistas, a gente tenha mais participação, mesmo com os erros que eles tiveram, é claro. Mas a direita racista, machista e sexista se aproveitou desses erros para envolver o povo. Muitos afro-brasileiros votaram em Bolsonaro, e no sul mais pobre dos EUA votaram em Trump, mas há uma explicação que tem a ver com a falta de conhecimento, de direitos, com a ignorância de informação. Mas quem está fazendo a resistência é o povo afro, temos que ter mais participação política para poder ter maior poder de decisão, a recuperação política do movimento afro vai ter uma influência global e essa é a esperança.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira/ Brasil de Fato