O avanço do império da sede e as disputas geopolíticas pelos recursos hídricos
Por Patricia Fachin
Do IHU
A crescente indisponibilidade física, econômica e social de água doce no mundo está transformando a sede “num dilema central” em vários países, diz o pesquisador Maurício Waldman à IHU On-Line. Autor do livro recém-lançado “Água: escassez e conflitos no império da sede” (São Paulo: Editora Kotev, 2019), ele explica que atualmente a oferta de água já é inferior à demanda.
“Apenas no século XX, a população mundial cresceu 4,4 vezes. Mas o consumo de água expandiu 7,3 vezes”, informa. Neste contexto, adverte, ciclos produtivos fundados em matrizes hídrico-intensivas são insustentáveis porque, para “produzir um carro médio, são necessários 400.000 litros de água. Um simples computador pessoal de 24 kg emprega mais de dez vezes seu peso em matérias-primas, 22 kg de produtos químicos e 1,5 mil litros de água. Um chip semicondutor gera um volume de restolhos equivalente a 100.000 vezes o peso desse componente”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Waldman pontua que o “mundo moderno criou uma logística de abdução de água que não tem como dar certo”, porque as reservas hídricas estão concentradas somente em sete países: Brasil, Estados Unidos, Canadá, Rússia, Índia, China e Congo. Essas nações, menciona, “têm sob sua tutela 40% da água da Terra”. Enquanto isso, compara, a expectativa é de que “no ano de 2040, grande parte do continente asiático viverá uma situação de estresse hídrico físico extremamente elevado e, ademais, novas nações e regiões se unirão ao conjunto de espaços dominados pelo fantasma das torneiras secas”.
Waldman também chama atenção para os conflitos geopolíticos que já estão ocorrendo por conta da disputa pelos recursos hídricos. “Muitos dos assim considerados Estados-diretores, países que estão à testa de uma esfera de influência, tais como a África do Sul, Israel, China e a Índia, estão com os olhos voltados para a questão da água, essencial para que assegurem uma logística que atenda suas demandas. Nações como a Turquia, que sob comando de Erdogan busca projetar um leque de ações próprias no Oriente Médio, tem na pauta da repressão aos curdos e das incursões no território sírio, o controle do curso superior dos rios Tigre e Eufrates”, afirma.
Já na África, menciona, “Angola, embora diplomaticamente calcada numa política de boa vizinhança com os países da África Austral, tem que levar em consideração as ambições sul-africanas pelas imensas reversas de água doce do planalto central angolano, fator que induz esse país a adotar uma agenda diplomática com a finalidade de garantir as suas provisões de água, que, aliás, lhe confirmam uma posição-chave no cone sul da África”. E conclui: “Estamos diante de um cenário de disputas que descortinam um profundo acirramento das tensões interestatais, tendo, como resultado direto, conflitos abertos entre povos, etnias e nações pela posse da água”.
Maurício Waldman é graduado em Sociologia e em Geografia Econômica pela Universidade de São Paulo – USP, onde também cursou o mestrado em Antropologia e o doutorado em Geografia. Suas pesquisas pós-doutorais concentram-se nas áreas de Geociências, Relações Internacionais e Meio Ambiente.
Em 2011, Waldman participou como especialista no programa Água: O Mundo e um Recurso Precioso, produção especial da Rádio Nações Unidas (ONU), transmitido diretamente de Nova York. É autor de, entre outros livros, Lixo: cenários e desafios (Cortez Editora, 2010), Antropologia & Meio Ambiente (SENAC, 2006) e Ecologia e Lutas Sociais no Brasil (Contexto, 1992).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O seu novo livro tem por título “Água: escassez e conflitos no império da sede”. O que é o império da sede e como ele foi constituído?
Maurício Waldman – O império da sede refere-se a um processo que irrompe no seio da ordem global, caracterizado por sérios comprometimentos da seguridade hídrica das populações, transformando a sede num dilema central, carência vivenciada por amplo conjunto de grupos sociais, povos e nações. Esta dificuldade, cadenciada pela crescente indisponibilidade física, econômica e social de água doce, acirra na escala planetária o estresse hídrico, isto é, contexto no qual a oferta de água é inferior à demanda, situação que tem avançado de um modo que não tem precedentes na história humana.
IHU On-Line – Há muitos anos ambientalistas alertam para o risco da escassez de água. Quais são os riscos reais de haver escassez hídrica e em que partes do mundo isso já é uma realidade?
Maurício Waldman – Neste particular, importa rubricar que, a despeito das mobilizações dos ambientalistas, o entendimento da eclosão de uma crise hídrica é, em termos históricos, absolutamente recente. O Relatório Limites do Crescimento, elaborado pelo Clube de Roma e que foi alçado à notoriedade a partir dos anos 1970, não sublinhava nada muito claro a respeito de uma latente crise da água doce, ao menos na forma como esta ganhou corpo nas últimas décadas. Era como se o líquido fosse inesgotável. Aliás, eu mesmo me recordo que na escola, na minha infância, os professores se referiam à água como um “bem natural inesgotável”. A mais ver, tanto esta percepção é de data recente, que mesmo a ONU criou o Dia Mundial da Água apenas em 1992, às vésperas da ECO-92. Quanto à exiguidade galopante do líquido, seria imperioso registrar que as águas de escoamento superficial, que de um modo ou de outro persistem como o reservatório mais importante do líquido, constituem uma ínfima fração das águas doces, tão só entre 0,014% e 0,015% dos montantes hídricos do Planeta.
Ainda assim, este insumo não tem sido alvo de políticas de preservação. Os especialistas antecipam que, no ano de 2040, grande parte do continente asiático viverá uma situação de estresse hídrico físico extremamente elevado e, ademais, novas nações e regiões se unirão ao conjunto de espaços dominados pelo fantasma das torneiras secas. Esta relação incluiria os Estados Unidos, diversos países europeus, da Oceania e da América do Sul, para os quais as águas doces não estão atualmente assenhoreadas do predicado da rarefação. Em resumo, os prognósticos são apavorantes. O que temos pela frente, caso não tomemos medidas urgentes, é uma espécie de Blade Runner piorado.
IHU On-Line – De que forma o Antropoceno, como era geológica e ambiental, tem impactado os recursos hídricos?
Maurício Waldman – O Antropoceno, que é como definimos o espaço artificializado pelas sociedades, começa a surgir com a própria espécie humana, que paulatinamente vai esculturando seu espaço de vida. Embora seja frequente a noção de que as sociedades antigas “convivessem” com a natureza, mantendo um “equilíbrio” com o meio natural, advirta-se que esta flexão imaginária não é real. A parte os vínculos notórios com o ambiente natural, nada nesta inferência permitiria advogar a existência de uma “idade de ouro perdida”. Visão corriqueira na iconografia zelosamente cultivada por um imaginário ecologista, esta concepção, no entanto, é falha no plano histórico.
Os humanos da antiguidade alteraram o ambiente e, embora de certa forma não comprometessem os ciclos maiores da natureza, chegaram a intervir de modo a levar diversas civilizações para desastres ambientais de larga proporção, tal como aconteceu na Ilha de Páscoa e com o complexo cultural Maia na América Central.
Por outro lado, estas intervenções pautavam uma margem de manobra ecológica, permitindo que também, em vários casos, o meio natural pudesse se revitalizar e reconquistar sua proeminência: os chamados retornos da natureza. Isto significa que a dignidade das águas, ainda que se ressentindo de impactos pontualmente desastrosos, não foi afetada em quantidade e qualidade. Todavia, não é esta a performance da Modernidade na gestão das águas doces.
IHU On-Line – No que o mundo moderno difere, no que diz respeito à água, das sociedades antigas?
Maurício Waldman – Particularmente, diferem no que se refere às exações do líquido. O mundo moderno criou uma logística de abdução de água que não tem como dar certo, em especial se lembrarmos que as reservas hídricas são, do ponto de vista da geografia física, volumetricamente as mesmas e que apenas sete países (Brasil, Estados Unidos, Canadá, Rússia, Índia, China e Congo) têm sob sua tutela 40% da água da Terra. Neste panorama estruturalmente crítico, as exações hídricas são imensas. Vale lembrar que apenas no século XX, a população mundial cresceu 4,4 vezes. Mas, o consumo de água expandiu 7,3 vezes. As requisições dos ciclos produtivos, fundados em matrizes hídrico-intensivas, são insustentáveis.
Para produzir um carro médio, são necessários 400.000 litros de água. Um simples computador pessoal de 2,4 kg emprega mais de dez vezes seu peso em matérias-primas, 22 kg de produtos químicos e 1,5 mil litros de água. Um chip semicondutor gera um volume de restolhos equivalente a 100.000 vezes o peso desse componente. Logo, não se trata apenas da água incorporada nos produtos [3], mas de igual modo, dos impactos resultantes do revolvimento do solo, processamento das matérias-primas e da geração de energia, atividades que, devido ao seu reconhecido potencial poluente, têm pavimentado não só a globalização da sede, mas em paralelo, uma mundialização das águas inseguras.
IHU On-Line – O que seriam as águas inseguras?
Maurício Waldman – É a água de má qualidade e que oferece perigo em curto, médio ou em longo prazo para a saúde das populações e o meio ambiente. Entendo, por sinal, que muitas narrativas relacionadas à água passam ao largo da problematização da qualidade do líquido que sai da torneira. Fala-se muito em “garantir acesso à água”, em “água para todos”, “universalização do abastecimento” e assim por diante. Mas é preciso atentar para a qualificação do que é rotulado como “água potável”, que em muitos casos seria, quando muito, uma “água bebível”.
A título de exemplo, a Environmental Protection Agency – EPA, órgão ambiental do governo estadunidense, estabelecia dez parâmetros para a qualidade da água oferecida à população em 1925. Todavia, passou a operar com 20 parâmetros em 1974, 130 no ano 2000 e acredita-se que os indicadores serão 220 no ano que vem. O que isto quer dizer? Que a poluição dos corpos d’água cresceu logaritmicamente e, nesta perspectiva, pouco adianta ampliar a agenda de critérios técnicos para a potabilidade. O fato é que numa escala planetária as águas estão sendo atormentadas por toda sorte de agravos, e pouco se faz para o problema retroagir. De acordo com a ONU, em 2018, em torno de 80% das águas residuárias do Planeta não recebiam nenhum tratamento.
IHU On-Line – Por que a sede deixou de ser um problema apenas de regiões carentes deste recurso e se transformou em um problema das metrópoles?
Maurício Waldman – Entenda-se que o crescimento urbano mundial é desmesurado e se desenvolve sem qualquer planejamento, principalmente na periferia da ordem global. Assim, a irrupção de megacidades disfuncionais ocupadas por multidões de pobres desassistidas pelo poder público foi um passo. Confira-se que levantamentos datados dos anos 1980, divulgados por órgãos da ONU, antecipavam que por volta do ano 2000, quando metade dos seis bilhões de humanos estaria concentrada nas áreas urbanas, dois bilhões residiriam em metrópoles situadas nos países periféricos e um bilhão, nas dos países centrais, que é exatamente o que ocorreu.
Esta dinâmica, diga-se de passagem, também alastrou-se no Brasil, sendo sua emanação mais acabada a Macrometrópole Paulista – MMP. Com papel-chave na territorialidade nacional, em 2018 a MMP cobria 20% da área do Estado de São Paulo, abrigava 174 municípios e 33.650.000 habitantes. Nesta mancha urbana, problemática devido à insuficiência de recursos hídricos locais, a rarefação da água decorreu tanto de fatores climatológicos e hidrológicos, quanto de implacáveis achaques ambientais, apoiados numa das pontas na vexaminosa gestão da água e falhas de infraestrutura, e na outra, firmada na urbanização desordenada e na blindagem do solo urbano, induzindo alterações meteorológicas que impactaram a megametrópole, tendo por notação cabal alterações drásticas no perfil pluviométrico e, por extensão, no avanço do império da sede.
IHU On-Line – Quais são as disputas e conflitos envolvidos em torno dos recursos hídricos?
Maurício Waldman – As disputas ocorrem em múltiplas vertentes e segmentos da sociedade e da economia, tanto aqui no Brasil como em todo o mundo. Hoje, o consumo de água é seis vezes superior ao que era cem anos atrás, sendo que relatórios da ONU preveem a intensificação das requisições de água numa ordem entre 20% e 50% a mais até 2050. Existe também notória desigualdade na utilização do líquido: 12% dos humanos mais ricos consomem 85% da água disponibilizada para consumo. Uma criança dos países afluentes tem à sua disposição cerca de 30 a 50 vezes mais água do que a de um país pobre. É primordial frisar que as conflagrações recrudescem basicamente em razão da rarefação do líquido, transformando o acesso à água num problema de segurança, que cada vez mais interfere nos rumos do sistema global.
IHU On-Line – Por que a sede deixou de ser um problema apenas de regiões carentes deste recurso e se transformou em um problema das metrópoles?
Maurício Waldman – Entenda-se que o crescimento urbano mundial é desmesurado e se desenvolve sem qualquer planejamento, principalmente na periferia da ordem global. Assim, a irrupção de megacidades disfuncionais ocupadas por multidões de pobres desassistidas pelo poder público foi um passo. Confira-se que levantamentos datados dos anos 1980, divulgados por órgãos da ONU, antecipavam que por volta do ano 2000, quando metade dos seis bilhões de humanos estaria concentrada nas áreas urbanas, dois bilhões residiriam em metrópoles situadas nos países periféricos e um bilhão, nas dos países centrais, que é exatamente o que ocorreu [4]. Esta dinâmica, diga-se de passagem, também alastrou-se no Brasil, sendo sua emanação mais acabada a Macrometrópole Paulista – MMP. Com papel-chave na territorialidade nacional, em 2018 a MMP cobria 20% da área do Estado de São Paulo, abrigava 174 municípios e 33.650.000 habitantes. Nesta mancha urbana, problemática devido à insuficiência de recursos hídricos locais, a rarefação da água decorreu tanto de fatores climatológicos e hidrológicos, quanto de implacáveis achaques ambientais, apoiados numa das pontas na vexaminosa gestão da água e falhas de infraestrutura, e na outra, firmada na urbanização desordenada e na blindagem do solo urbano, induzindo alterações meteorológicas que impactaram a megametrópole, tendo por notação cabal alterações drásticas no perfil pluviométrico e, por extensão, no avanço do império da sede.
IHU On-Line – Quais são as disputas e conflitos envolvidos em torno dos recursos hídricos?
Maurício Waldman – As disputas ocorrem em múltiplas vertentes e segmentos da sociedade e da economia, tanto aqui no Brasil como em todo o mundo. Hoje, o consumo de água é seis vezes superior ao que era cem anos atrás, sendo que relatórios da ONU preveem a intensificação das requisições de água numa ordem entre 20% e 50% a mais até 2050. Existe também notória desigualdade na utilização do líquido: 12% dos humanos mais ricos consomem 85% da água disponibilizada para consumo. Uma criança dos países afluentes tem à sua disposição cerca de 30 a 50 vezes mais água do que a de um país pobre. É primordial frisar que as conflagrações recrudescem basicamente em razão da rarefação do líquido, transformando o acesso à água num problema de segurança, que cada vez mais interfere nos rumos do sistema global.
LEIA ENTREVISTA COMPLETA EM: www.ihu.unisinos.br/591383-o-avanco-do-imperio-da-sede-e-as-disputas-geopoliticas-pelos-recursos-hidricos-entrevista-especial-com-mauricio-waldman