Dez anos sem Elton Brum: “Ele era humilde e gostava de ajudar as pessoas”

Assentados relatam como era a convivência com o sem terra assassinado em 2009 no RS
Vigília do MST em 2017, em Porto Alegre, para acompanhar o julgamento do caso Elton Brum da Silva. Foto - Letícia Stasiak.jpg
Vigília do MST em 2017, em Porto Alegre, para acompanhar o julgamento do caso Elton Brum da Silva. Foto – Letícia Stasiak

Por Catiana de Medeiros
Da Página do MST

 

A luta de Elton Brum da Silva por uma vida digna à sua família ficou na memória de homens e mulheres que conviveram com ele em acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul.

Ele nasceu em 12 de junho de 1965 no município de Canguçu, na parte sul gaúcha. É filho de Jaime Vieira da Silva e de Adelaides Brum da Silva. Negro, semialfabetizado e pobre, ingressou na luta pela terra com a esperança de que a sua realidade se transformasse. Em Pedro Osório, município situado na mesma região da sua cidade natal, vivia no acampamento Integração Campesina.

“O sonho de Elton era o sonho de todos nós: pegar a terra para botar a família”, conta Marli Rodrigues, 54 anos, que hoje vive no assentamento Conquista do Caiboaté, em São Gabriel, na fronteira oeste do RS. Esse município é conhecido pelos latifúndios, mas também pela derrota de muitos destes, pois por meio da luta do MST lá foram criados oito assentamentos.

Marli conviveu cerca de seis meses com Elton no ano de 2009, quando Sem Terra de várias regiões do estado montaram um acampamento em Charqueadas, na região Carbonífera. Depois disso, armaram seus barracos num outro acampamento em São Gabriel, em preparação a uma ação no município. No dia 12 de agosto daquele ano ocuparam um latifúndio improdutivo na localidade de Posto Bragança, de posse de Alfredo Southall. “Conheci o Elton dos grupos que a gente participava dentro do acampamento. Ele era um homem calmo, que ajudava muito as pessoas. Durante os dias da ocupação, ele ajudou na cozinha”, recorda.

 

Dona Lúcia Pereira da Luz, 52 anos, antes de ser assentada em São Gabriel, também esteve com Elton nessa trincheira de luta. Segundo a camponesa, que trabalhou com o sem terra na cozinha coletiva da ocupação na Fazenda Southall, ele era muito companheiro e falava da conquista da terra. “Ele queria trazer a família para morar com ele”, acrescenta.

Quem também conheceu Elton foi Jane Fontoura Petrolino, 50 anos. À época, ela ajudava a organizar as famílias acampadas para conquistar a Reforma Agrária através da Frente de Massa. Ela conta que Elton, que recebeu dos colegas de acampamento o apelido de “Cakinho”, também contribuía na ciranda infantil do setor de educação.

“Ele era um ótimo lenhador. Trazia lenha pra cozinha, pra fazer merenda às crianças. Ele levava vassouras de chirca e de carqueja pra varrermos o espaço da educação. Era de uma cultura servil até demais, não era capaz de erguer o olhar ou de impor uma voz. Era uma pessoa muito tranquila e extremamente humilde”, afirma.

José de Almeida teve seu primeiro contato com Elton no acampamento em Charqueadas. Zé, como é popularmente conhecido, gostava de conversar com os companheiros para saber o que pensavam e estavam sentindo, por que estavam na luta pela terra. Num fim de tarde, chegou ao barraco onde Elton estava. Lá conversaram e tomaram chimarrão. “Ele tinha iniciativa, disponibilidade para servir e recepcionar as pessoas”, comenta.

O camponês, que hoje mora no assentamento Santa Rita de Cássia II, em Nova Santa Rita, na região Metropolitana de Porto Alegre, diz que, dessa curta convivência com Elton, teve uma situação que mais o marcou. Foi quando eles estavam em trabalho de base num local próximo da Fazenda Southall e tiveram que passar por uma barreira da Brigada Militar.

“Elton comentou que nós poderíamos estar preparados, mas nós não tínhamos as armas. Eu disse que a nossa arma era a nossa organização, a nossa capacidade de estar organizado, de estar junto, de nos prepararmos para as dificuldades. Ali eu percebi que ele era um ser humano preocupado com o seu futuro, porque aqueles que pensam em viver, que pensam na terra, no trabalho, se preocupam sim com o latifúndio e com a força repressiva do Estado”, argumenta.

Sonho interrompido

 

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Sem Terra Elton Brum da Silva. Foto: Divulgação

O sonho de Elton foi interrompido nove dias depois da ocupação, aos 44 anos. Na manhã do 21 de agosto de 2009 ocorreu o despejo e o policial militar Alexandre Curto dos Santos o assassinou com um tiro de espingarda calibre 12 pelas costas. Elton, que deixava a esposa e uma filha menor de idade, não teve a mínima chance de se defender. Além da morte do trabalhador, a ação truculenta da Brigada Militar vitimou dezenas de Sem Terra, incluindo mulheres e crianças, com ferimentos de estilhaços, espadas e mordidas de cães.

Dona Lúcia relembra o momento em que Elton foi covardemente assassinado. “Ele subiu num pedaço de pau que tinha no acampamento e eu disse: não adianta ficar aí em cima, porque vão derrubar igual. É melhor vir pra cá. Foi aí que ele saiu e foi pro lado onde tomou o tiro. Senti um frio na espinha. Eu estava do lado quando ele tombou, poderia ter sido eu. Pensei na hora nos meus oito filhos que estavam na luta. Foi a pior covardia, um sentimento de revolta, de injustiça, um sonho que foi junto com ele, mas que continuou com nós”, relata.

Ela lembra que Elton, já sem vida, foi tratado de forma muito desumana pelos policiais. “Deixaram ele na vala, enrolado na lona, como se fosse um bicho. Foi isso que eles fizeram, porque para eles nós éramos qualquer coisa”, declara.

No mesmo dia do crime, o MST divulgou uma nota em que manifestava seu pesar pela perda de Elton e prestava solidariedade à família. Além disso, exigia justiça e punição aos culpados. O documento denunciava a então governadora Yeda Crusius (PSDB), responsável por uma política de criminalização dos movimentos populares e de violência contra os trabalhadores rurais; o coronel Lauro Binsfield, que à época era comandante regional da Brigada Militar; e o Poder Judiciário, que impediu a desapropriação e a emissão de posse da Fazenda Antoniazzi, em São Gabriel, onde Elton Brum seria assentado.

LEIA MAIS: ARTIGO: 10 anos do assassinato: Elton Brum, presente! Agora e sempre!

 

“Ele planejava ter a terra, planejava ter um futuro”

Conforme Zé, nos acampamentos havia momentos de formação sobre produção de alimentos e o que fazer após a conquista da terra. Era uma maneira das famílias se prepararem para o sonhado assentamento, a fim de superar as dificuldades que tinham ao viver num barraco de lona. “Elton contagiava outras pessoas a lutarem pela terra, era um grande sonhador. Ele tinha o sonho de ver a produção e construir junto a seu povo e a sua família uma vida digna. Ele planejava ter a terra, planejava ter um futuro”, destaca.

O assentado enfatiza que Elton não conseguiu concretizar o seu sonho pois foi assassinado pelo Estado, mas muitos que hoje são assentados se orgulham do companheiro que tiveram. “Para que a gente tivesse um pedaço de terra, produzisse alimento saudável e tivesse vida digna, muitos ficaram para trás e alguns até perderam a vida, como foi o caso de Elton. Então ele está nessas conquistas que a gente tem. Ele faz parte da nossa história, da nossa organização e da nossa luta”, salienta.

Homenagens mantêm viva a memória de Elton

O grupo de teatro popular Levanta FavelA realiza desde 2009, sempre nos dias 21 de agosto, uma intervenção na Esquina Democrática, no Centro Histórico de Porto Alegre, em memória a Elton Brum da Silva. O objetivo é denunciar e trazer a memória do assassinato para que, assim como outros casos, não caia no esquecimento da população.

O Sem Terra também foi homenageado com o assentamento Elton Brum da Silva, criado em Encruzilhada do Sul, na região do Vale do Rio Pardo. O então governador Tarso Genro (PT) entregou a dez famílias, em janeiro de 2013, a escritura e o termo de cessão de uso de uma área de 321 hectares.

Dez anos de assassinato, dez anos de impunidade

Em 2019 completam-se dez anos do assassinato de Elton. Aos familiares, amigos e conhecidos restam lembranças e a esperança de que um dia a justiça seja feita. O policial Alexandre Curto dos Santos foi condenado em 2017 pelo Tribunal de Justiça do RS, por crime qualificado, a 12 anos de prisão em regime fechado e a perda de cargo. No entanto, está foragido há cerca de um ano.
 

Vigília do MST em 2017, em Porto Alegre, para acompanhar o julgamento do caso Elton Brum da Silva. Foto - Letícia Stasiak.jpg
Vigília do MST em 2017, em Porto Alegre,
para acompanhar o julgamento do caso
Elton Brum da Silva. Foto: Letícia Stasiak

De acordo com o advogado Emiliano Maldonado, hoje há dois processos sobre o caso. O primeiro, na esfera cível, se refere à indenização que o Estado do RS deverá pagar em razão do homicídio ter sido cometido por um funcionário público no exercício das funções. “Nele, já temos sentença condenatória, com trânsito em julgado. Contudo, ainda aguardamos a inscrição desses valores na fila dos precatórios do Estado. O outro processo é o criminal”, explica.

Ele acrescenta que está pendente de julgamento um recurso de agravo no recurso especial que o militar interpôs no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Porém, acredita que há poucas chances de reverter a condenação. Sobre o PM ainda não ter iniciado o cumprimento da pena, alega que as autoridades competentes podem estar fazendo “vista grossa”.

“A Polícia Civil deveria cumprir o mandado e ir na casa dele, mas não sentimos nenhum interesse em dar cumprimento ao mandado de prisão por parte deles. Afinal, trata-se de um ex-colega de farda. Atualmente reiteramos o pedido para que o juiz determine à PC de Bagé que realize diligências e cumpra a determinação do mandado de prisão”, complementa.

Para Maldonado, os dez anos de impunidade do Caso Elton Brum mostra como o sistema judicial é moroso na responsabilização criminal dos policiais e como o sistema de pagamento de precatórios por parte do Estado acaba dificultando o recebimento das respectivas indenizações.

“De qualquer forma, trata-se de um caso paradigmático, pois foi o primeiro caso de responsabilização de um policial militar pela morte de um trabalhador rural sem terra e conseguimos isso através de um julgamento de júri popular. Além disso, conseguimos uma boa vitória na indenizatória, pois a filha recebe uma pensão até cumprir 24 anos e irá receber (depois de muito tempo) uma quantia razoável via precatório”, conclui.

Caso Elton Brum da Silva em ordem cronológica

21 de agosto de 2009: o assassinato

Elton foi assassinado aos 44 anos pelas costas, com um tiro de espingarda calibre 12, durante violenta e arbitrária reintegração de posse da Fazenda Southall, um latifúndio improdutivo de cerca de 10 mil hectares em São Gabriel, na Fronteira Oeste do RS. Cerca de 300 soldados participaram da operação, autorizados pela então governadora Yeda Crusius, que reprimiu cerca de 500 famílias que lutavam por Reforma Agrária. Dezenas de Sem Terra foram torturados e ficaram feridos. Elton deixou a esposa e uma filha menor de idade.

Curto confessa o crime

O tiro que matou Elton foi efetuado pelo policial militar Alexandre Curto dos Santos, que à época atuava no Pelotão de Operações Especiais do 6° Regimento de Polícia Montada (RPMon) de Bagé. Os tratados internacionais proíbem o uso de munição letal durante despejos forçados e se recomenda aos policiais prudência e uso progressivo de munição não-letal durante ações de reintegração de posse. O disparo fatal, no entanto, foi efetuado com munição real, a curta distância e pelas costas, tornando impossível a defesa da vítima. No mesmo dia do crime, Curto teria assumido a autoria do disparo letal ao seu superior, que inicialmente encobriu o ocorrido e viabilizou a sua fuga. Somente algumas semanas depois, diante das provas irrefutáveis apresentadas pelo Ministério Público sobre a autoria do disparo (vídeos), o policial assumiu que havia atirado, mas inventou uma história de que teria trocado a sua arma por engano com outro colega.

Fevereiro de 2016: Estado é condenado

A 9ª Câmara Cível do TJRS condenou o Estado do RS a indenizar a companheira, a filha e o pai de Elton por danos morais e a pagar pensão de 70% do salário mínimo regional para a filha. Porém, diante de uma série de entraves burocráticos criados pela Procuradoria Geral do Estado, eles ainda não foram inscritos na lista de precatórios e não receberam a indenização.

21 de setembro de 2017: Condenação em júri popular

Oito anos após o crime, o policial foi a júri popular no Foro Central I da Comarca de Porto Alegre. Após 15 horas de sessão, ele foi condenado por homicídio qualificado à pena de 12 anos de reclusão em regime fechado, perda de cargo e prisão imediata.

29 de setembro de 2017: PM é solto

Oito dias depois de ter sido condenado em júri popular, o TJRS concedeu Habeas Corpus para que Santos respondesse em liberdade.

11 de outubro de 2017: Liberdade cassada

O TJRS julgou o mérito de Habeas Corpus e cassou liminar que deu liberdade ao policial militar.

21 de março de 2018: STJ solta o PM

O STJ compreende que o policial tem direito a recorrer em liberdade até confirmação da condenação em segundo grau. A soltura ocorreu de forma silenciosa e sem qualquer comunicação ao órgão competente (TJRS). De forma célere e sem precedentes, a Brigada Militar agiliza a sua aposentadoria com todos os direitos, burlando a condenação à perda do cargo estipulada na sentença de primeiro grau.

26 de setembro de 2018: Novo julgamento

O caso Elton Brum da Silva retorna ao TJRS, que decide por 3 votos a 0 manter a sentença do júri popular que condenou o policial militar em setembro de 2017, determinando a prisão do policial. Diante dos graves relatos de violação de direitos humanos pela Brigada Militar durante o despejo, também encaminhou o relatório do Comitê Estadual de Combate à Tortura para o Ministério Público Estadual (MPE), que deveria investigar essas denúncias.

28 de setembro de 2018: Policial foragido

A Vara Criminal da Comarca de São Gabriel incluiu o nome de Alexandre Curto dos Santos ao Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP). Desde então, ele permanece foragido.

*Editado por Fernanda Alcântara