Em 1979, Secretaria da Agricultura assessorava acampados da Macali e Brilhante

Confira os primeiros passos para o assentamento incluíam organizar os Sem Terra, neste especial sobre 40 anos das ocupações no RS

Por Maiara Rauber* 
Da Página do MST

 

Ainda em tempos de ditadura, o acampamento Macali, em Ronda Alta, na região Norte do Rio Grande do Sul, foi uma das primeiras manifestações sociais em busca da retomada de direitos no estado gaúcho. Em 1979, a Central de Comandos Mecanizados de Apoio à Agricultura (Cemapa) se colocava como responsável pela assessoria de trabalhos sociais como a Reforma Agrária, segundo o agrônomo Luiz Fleck, coordenador das lavouras no acampamento.
 

7 - Luiz Flek, agrônomo. Foi coordenador do Lavourão na ocupação Macali. Foto - Maiara Rauber.jpg
Luiz Flek, agrônomo, foi coordenador do Lavourão
na ocupação Macali. Foto: Maiara Rauber

“Em primeiro lugar, queríamos que aquela gente fosse assentada e tivesse capacidade de tocar a sua vida, que tivesse autonomia para desenvolver os seus projetos”, afirma Nilton Pinho de Bem, na ocasião coordenador do projeto da Reforma Agrária, vinculado ao Cemapa. Conforme o economista, o estado sempre buscava dar essa liberdade às famílias, para que pudessem construir seus projetos de vida.

Além disso, Pinho de Bem ressalta que o objetivo deles era mostrar tanto para o poder público, quanto para a sociedade, a viabilidade da Reforma Agrária, mesmo com recursos escassos.

 

7 -NIlton Pinho de Bem, economista. Responsável pela projetos realizados nas ocupações Macali e Brilhante. Foto - Maiara Rauber.jpg
NIlton Pinho de Bem, economista, foi responsável
pela projetos realizados nas ocupações
Macali e Brilhante. Foto: Maiara Rauber

Assim, após a consolidação do acampamento, logo no primeiro mês, os servidores da Secretaria da Agricultura iniciaram um planejamento que visava reconhecimento e oficialização de um assentamento de trabalhadores rurais. Segundo o economista, dentro desse projeto geral, o Rio Grande do Sul buscou implementar outros projetos de formação, capacitação, saúde, educação e produção. Os funcionários do estado tinham como tarefa dar assistência técnica para os camponeses acampados. “Fizemos a maior lavoura de feijão da América Latina. Tinha uns 400 hectares de soja e uns 300 hectares de milho”, lembra Pinho de Bem.

Fleck, que era responsável pela lavoura, foi o servidor que iniciou o processo de trabalho comunitário entre os acampados. “A experiência inicial desse ano de Macali foi muito bem sucedida no ponto de vista de implantação da lavoura”, recorda o agrônomo.

 

7 - Ivaldo Gehlen agronomo. Auxiliou na articulação para a ocupação Macali e após contratado como técnco S. Agric. Foto Maiara Rauber.jpg
 Ivaldo Gehlen, agrônomo, auxiliou na articulação
para a ocupação Macali. Foto: Maiara Rauber

Gehlen relata que a discussão feita com os servidores públicos responsáveis pelo projeto na ocupação Macali era construir uma estrutura comunitária. A ideia era trabalhar o cooperativismo, implementar um comércio coletivo e um centro comunitário, além da escola. No entanto, os agricultores, em uma das reuniões de decisão, refutaram a ideia proposta pelos técnicos. “Comunidade é feita de capela, escola, talvez um campo de futebol e uma quadra de bocha”, conta Gehlen, sobre as exigências dos acampados. 

Um ano de acampamento
 

A primeira ação realizada após a ocupação, já no primeiro mês, foi a organização e implantação de uma grande lavoura. Gehlen menciona a importância do apoio do governador Amaral de Souza e de outros políticos da época, pois permitiu o incentivo e auxilio institucional e técnico da Secretaria de Agricultura do estado.
 

Segundo Luiz Fleck, com a ajuda dos servidores, os Sem Terra conseguiram plantar cerca de 1.000 hectares. Na época, de acordo com o agrônomo, a tendência era o coletivo. “Então foi feita uma lavoura coletiva”, comenta. Juntamente com a criação da lavoura, era necessário ensinar os agricultores esse modelo de produção, pois muitos dos então acampados não sabiam lidar com aquela terra.    
 

Lídia Souza e Oliveira, assentada na Macali, recorda que dividiu o barraco de lona com 4 senhoras, 10 homens e 17 crianças. O que marcou o primeiro ano de ocupação para ela foi o trabalho coletivo. “Fizemos um lavourão durante um ano, todas as famílias junto. Foi dividido os alimentos, a colheita”, conta.
 

8 -Casal Oliveira falam sobre as conquistas a partir da luta. Foto - Catiana de Medeiros-.jpg
Casal Oliveira fala sobre as conquistas
a partir da luta. Foto: Catiana de Medeiros

Já seu esposo, Alcides Souza e Oliveira, fala sobre a dificuldade de inserção no comércio do município. “Para eles nos éramos uma tropa de vagabundo, que não tinha serventia para nada. Mas se olhar os municípios depois que surgiu os assentamentos aqui, vai ver o quanto se desenvolveram”, desabafa. 

Para Leir Ferreira o que mais ficou na memória foram as organizações e as orações. “Nós rezávamos debaixo de uma árvore que tinha uma cruz. O padre Arnildo fazia missa. Era o que marcava para nós”, salienta.
 

Um ano depois da ocupação, ocorre o sorteio oficial de lotes entre os acampados. “Um momento marcante, que legitimou tudo o que estava acontecendo, foi o sorteio. Foi o primeiro assentamento no Brasil da Reforma Agrária depois do Brizola”, afirma Gehlen. No dia em questão, estavam presentes autoridades e o governador Amaral de Souza, o que fortaleceu a autenticação daquela luta, da Reforma Agrária.
 

Segundo a assentada Lídia, a ocupação Macali foi significativa. “A gente aprendeu muito como o padre Arnildo e a irmã Carminha. Hoje tem muitas cooperativas e associações funcionando em assentamentos graças à nossa luta, porque foi aqui que começou aquela organização bonita”, justifica. “Eu sinto orgulho de ser Sem Terra. Eu tenho orgulho de um barraco, porque eu já passei por uma fase dessas no acampamento. E agora tenho comida em abundância, tem terra, tem o porco, tem o gado. Para a gente comer, tem de tudo”, conclui.
 

Brilhante: a luta pela permanência na terra

Dormélio Franciozi conta que participou de todo o processo da segunda ocupação do mês de setembro, no dia 25, na gleba Brilhante. Aproximadamente 70 famílias organizaram-se em grupos com o padre Arnildo e João Pedro Stédile, que hoje integra a coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outras lideranças para a ação. “Nós não tínhamos prática de nada, então eles nos auxiliaram para nos organizarmos”, recorda o assentado. Franciozi acrescenta ainda a importância da participação das mulheres nessa ocupação. “Foi a força delas que deu a vitória para luta”, pontua. 
 

9- Dormélio e Juraci estava na ocupação Brilhante e lembram das conquitas a partir da terra. Foto - Catiana de Medeiros.jpg
Dormélio e Juraci estavam na ocupação
Brilhante. Foto: Catiana de Medeiros

“Junto com as mulheres conseguimos a conquista dos nossos direito. Nós conseguimos o talão de produtor, conseguimos ser sujeitos da história”, enfatiza Juraci Machado da Silva, também assentada na Brilhante. Ela ainda cita outros direitos obtidos a partir da luta das mulheres e da terra. “A nossa luta sempre foi por dignidade e reconhecimento. Pelo fim da discriminação das mulheres, por salário justo, alimentos saudáveis, saúde, preservação da natureza e da água”, salienta.
 

Juntamente com os trabalhadores camponeses, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais lutou pela conquista de um hospital em Ronda Alta. Saul Barbosa, após ganhar a presidência sindical em 1985, trabalhou para implantar um sistema de saúde para a classe. “Criamos um projeto que mudou o sistema mercantilista hospitalar da época. Transformamos em um programa de prevenção às doenças, de promoção à saúde que repercutiu em todo o Brasil, inclusive no exterior”, recorda. 
 

Além disso, para Franciozi, os assentados, com sua luta pela Reforma Agrária, passaram a participar de iniciativas como o Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária (Procera), Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e Minha Casa, Minha Vida, entre outros.
 

Outro marco, conforme Juraci, foi a possibilidade de dar estudo para os filhos desses assentados. “A gente veio de um sofrimento, e achava que o bom para os filhos era dar estudo e que eles buscassem novos horizontes”, justifica a camponesa.
 

9 - Lucival e Terezinha Brachak, moradores do Assentamento Brilhante, em Ronda Alta. Foto - Catiana de Medeiros.jpg
Lucival e Terezinha Brachak, moradores do
assentamento Brilhante, em Ronda Alta.
Foto: Catiana de Medeiros

Para a filha de Juraci, Katiane Machado da Silva, com a luta de seus pais pela terra, ela pôde estudar na primeira escola do assentamento e passou a se inserir na luta fazendo o curso de graduação de Licenciatura em Educação no Campo: Pedagogia da Terra.
 

A professora ainda reforça a importância do MST como formador de sujeitos históricos. “A gente nunca perde as nossas raízes, que são a nossa história, que é a luta pela terra e o processo de ter consciência de onde a gente vem e para o que de fato o nosso conhecimento precisa servir. No meu caso, e no caso de muitas pessoas que são forjadas no MST e nas organizações sociais do campo, o nosso conhecimento deve servir para fazer com que mais pessoas se apropriem do que foi negado e que a gente possa avançar nessa tomada de consciência, se organizar para enfrentar os desafios atuais”, pontua.
 

Já para Teresinha Brachak, a maior conquista dela e de seu marido foi criar os filhos em terras de Reforma Agrária. “Eu tenho orgulho de dizer que eu criei seis filhos em cima dessa terra que eu ajudei a conquistar com sofrimento, embaixo de lona. No início não foi fácil, foi difícil, mas nada que deixasse a gente desanimar. Se não fosse esse pedacinho de chão nós não tínhamos as conquistas que nós temos hoje, de poder formar os filhos, de dar estudo”, argumenta.

9 - Casal Brachak e Marcio, Medico Veterinário. (Foto - Marcio Brachak).jpg
Casal Brachak e Marcio, médico veterinário.
Foto: Marcio Brachak

Os seis filhos do casal Brachak tiveram a possibilidade de estudar. Dois deles, Marcelo e Mizael, concluíram o Ensino Médio. A única filha mulher, Magda, graduou-se em Ciências Contábeis. Já os outros três, Marcelo, Marciano e Marcio, formaram-se em Técnico Agropecuário, sendo que o último conquistou o diploma pela segunda turma especial de Medicina Veterinária, oferecido via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em parceria com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

O que mais marcou na Brilhante, para Teresinha, foi a luta do coletivo. “Se não fosse a união das pessoas que entraram aqui naquele ano para conquistar um pedacinho de terra e criar os filhos, não daria certo. Nós tivemos uma força de vontade para ganhar essa terra, foi um sacrifício que a gente passou”, finaliza.

 

* Esta é terceira parte da reportagem sobre os  40 anos das ocupações Brilhante e Macali, no Norte do RS. Os demais textos deste especial você confere nos links abaixo:

– A semente do MST: 40 anos da ocupação Macali e Brilhante
 

– 7 de setembro de 1979: a retomada da luta pela terra
 

Confira também artigo anterior sobre o tema aqui, aqui e aqui.

**Editado por Fernanda Alcântara