Juiz acata pedido de empresa do Daniel Dantas para despejar 212 famílias no Pará
Por Daniel Camargos, de Eldorado dos Carajás, e André Campos, de São Paulo*
Do Repórter Brasil
Cândido Matias da Silva, de 64 anos, mostra orgulhoso tudo o que plantou nos últimos 11 anos, em um terreno de 30 hectares em Eldorado dos Carajás, no Pará. Ele anda pelos canteiros e aponta para os pés de couve, alface, cebola e cheiro verde. No pomar, colhe uma tangerina, tira a casca e oferece os gomos. À frente tem maracujá, cacau, cupuaçu, acerola e outras plantações que, somadas, passam de duas dezenas.
A venda da produção – sem agrotóxicos – gera a renda que sustenta a família do pequeno agricultor, mas tem data marcada para acabar e dar lugar para as pastagens de uma gigante da pecuária: 17 de setembro. Data definida pelo juiz da vara agrária de Marabá, Amarildo Mazutti, que determinou que seja cumprida a liminar de reintegração de posse pedida pela Agropecuária Santa Bárbara Xinguara, a AgroSB.
A empresa pertence ao grupo Opportunity controlado pelo banqueiro Daniel Dantas, que em 2017 integrou a lista de bilionários da Bloomberg. A AgroSB tem no Sul e Sudeste do Pará 500 mil hectares (que corresponde a mais de três municípios de São Paulo) e um rebanho de 170 mil cabeças de gado.
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Se a decisão de reintegração de posse for executada, 212 famílias (mais de mil pessoas) que vivem desde julho de 2008 no acampamento Dalcídio Jurandir na fazenda Maria Bonita, que pertence a Dantas, terão que deixar suas terras. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), responsável pelo acampamento, tenta reverter a decisão por meio de um pedido de anulação da liminar.
Outra possibilidade de reversão da decisão seria por meio de articulação política. O MST conseguiu o apoio do prefeito e dos vereadores de Eldorado dos Carajás, que temem o crescimento do desemprego na cidade caso as famílias sejam despejadas. Com o governo federal, contudo, não há diálogo, segundo o MST.
Três dias após a posse do presidente Jair Bolsonaro, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) determinou a suspensão de todos os processos para compra e desapropriação de terras. Após a Repórter Brasil revelar a decisão, o Incra recuou da medida. No final de março, porém, o órgão voltou a suspender a reforma agrária no país.
Desde que Bolsonaro tomou posse não houve nenhuma desapropriação de terra para o programa de reforma agrária. Também não foi criado nenhum projeto de assentamento. Os dados foram obtidos pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação após apresentação de recurso, já que o Incra havia negado a informação.
O Incra tem atuado apenas na segunda etapa da reforma agrária, que é a legalização de terras já desapropriadas e emissão de títulos definitivos de posse da terra. Foram emitidos 852 títulos definitivos e 14.868 contratos de concessão de uso de janeiro a setembro. A estratégia, na prática, significa o fim da reforma agrária, pois prioriza títulos individuais em detrimento da criação da infra-estrutura necessária para um assentamento.
Foi com base no fim da reforma agrária que o juiz fundamentou sua decisão. Durante a audiência que decidiu o despejo, o juiz Amarildo Mazutti disse que é sensível às questões sociais, mas que não pode “realizar políticas públicas de responsabilidade do governo federal e do Incra”.
A decisão de Mazutti deixou de fora a área onde se concentram as casas. Com isso, cerca de metade das famílias, segundo o MST, não deve perder as moradias, mas ficará sem as áreas onde plantam. Procurado, o juiz não quis conceder entrevista.
Incra e AgroSB iniciaram uma negociação em 2011 para desapropriação da fazenda e sua destinação à reforma agrária. Porém, segundo a superintendência do Incra de Marabá, a empresa não conseguiu comprovar a área de reserva ambiental obrigatória da fazenda Maria Bonita, o que travou a negociação.
As negociações perderam efeito com a determinação do governo Bolsonaro de suspender a reforma agrária, segundo nota enviada pelo Incra à Repórter Brasil, em que o órgão diz querer evitar “a expectativa de compromissos que não poderão ser cumpridos”, informou. A AgroSB informou que, após sete anos de tratativas, as negociações foram encerradas e que a decisão do judiciário confirma “a legitimidade das propriedades dos imóveis” da empresa. “A tentativa de apresentar a AgroSB como ‘a destruidora dos sonhos dos trabalhadores rurais sem-terra’ não corresponde à verdade dos fatos”, diz ainda a nota que pode ser lida na íntegra aqui.
A ocupação da fazenda Maria Bonita pelos trabalhadores rurais aconteceu quando Daniel Dantas foi alvo da operação Satiagraha da Polícia Federal, em 2008. Dantas chegou a ser preso duas vezes na mesma semana, acusado de corrupção e lavagem de dinheiro. Em ambas ocasiões, uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, libertou o banqueiro.
A Justiça Federal chegou a determinar o sequestro de 500 mil hectares de terras do grupo Opportunity. A operação Satiagraha foi anulada em 2011 pelo Superior Tribunal de Justiça por entender que as provas obtidas foram baseadas em gravações telefônicas ilegais.
Só resta a fé
“Eu não sou aposentado, sou analfabeto e não sei viver na cidade. Tem noite que eu nem durmo. Fico olhando para o céu e pedindo para Deus abrir o coração da Santa Bárbara”, conta Silva. Desde que saiu de São Domingos do Maranhão no início da década 1970, ele trabalhou como pedreiro e como empregado em propriedades rurais no Sul do Pará. Após participar da ocupação, há 11 anos, conseguiu construir sua casa e plantou a horta e o pomar que sustentam a família. “Isso aqui é pão nosso de cada dia”.
A sensação de quem visita o acampamento em um domingo, perto da hora do almoço, é de tranquilidade. O cheiro de alho e cebola refogados pode ser sentido de longe. Crianças correm nas ruas de terra soltando pipas.
A escola do acampamento Carlito Maia tem quase 200 alunos e é lá que Enivaldo Alves do Nascimento, um dos acampados e integrante da direção estadual do MST, recebe a reportagem. “Nós queremos sensibilizar a sociedade. Mostrar a diferença dos dois projetos. O projeto da Agropecuária Santa Bárbara tem como prioridade o monopólio. Nosso projeto é diferente”, afirma.
Um diagnóstico realizado por uma equipe da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) mostra que o despejo das famílias pode afetar a economia de Eldorado dos Carajás. Em um ano, os acampados produzem mais de um milhão de litros de leite, 120 mil toneladas de farinha, além das frutas, verduras e legumes que abastecem as feiras da região.
O despejo pode acarretar um crescimento de mais de 22% do déficit habitacional urbano do município, além de uma queda em mais de 10% na produção de leite de Eldorado dos Carajás e um crescimento de até 30% na taxa de desemprego, segundo o professor da Unifesspa, Amintas Lopes da Silva Júnior. “Em 11 anos eles criaram um pertencimento ao território e toda uma infra-estrutura produtiva”, afirma o professor.
“A cidade não tem estrutura para receber essas pessoas”, afirma o vereador Edson Vieira (MDB), que preside a Câmara Municipal. “É preciso reverter a ação de despejo”, completa.
A AgroSB afirma que, com a ocupação, as terras da empresas deixaram de “produzir, exportar e contratar mão-de-obra”. A empresa informa gerar 900 empregos diretos e 10 mil indiretos em quase duas dezenas de cidades do Sul e Sudeste do Pará.
Na nota enviada pela empresa são feitos vários questionamentos: “Quantos empregos a mais a AgroSB poderia ter criado se as fazendas continuassem a produção que foi interrompida com as invasões? Qual seria o volume da produção animal e vegetal da AgroSB a ser colocado no mercado interno e externo caso a produção tivesse continuado sem ser interrompida pelos invasores de terra? Qual seria o índice de crescimento da economia de dezenas de municípios do sul/sudeste do Pará com o aumento da produção animal e vegetal que não pode se concretizar porque as terras foram invadidas?”. Leia aqui a resposta na íntegra.
Histórico de massacre
Eldorado dos Carajás passou a ser conhecida nacionalmente em 17 de abril de 1996, quando 19 trabalhadores rurais do MST foram executados por policiais militares. O local do massacre fica a 30 quilômetros do acampamento Dalcídio Jurandir. “Foi a primeira vez que ouvi falar do MST”, lembra Enivaldo, que tinha 23 anos na época dos assassinatos.
Pai de quatro filhos, ele está há 11 anos acampado na fazenda que pertence a AgroSB e sempre questiona: “Porque alguns têm tanta terra e outros não têm nada?”. Enivaldo diz que os moradores do acampamento são todos pessoas pobres. “Alguns chegaram aqui passando fome. São todos deserdados e o que sabem fazer é trabalhar com a terra”.
Durante a campanha eleitoral no ano passado, Bolsonaro visitou Eldorado dos Carajás e defendeu os policiais militares condenados pelo massacre. No local das mortes, conhecido como curva do S, na BR-155, o atual presidente disse: “Quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda. Os policiais reagiram para não morrer”. Um grupo de policiais que acompanhava o discurso aplaudiu, de acordo com o jornal Estado de São Paulo.
Quem também discursou nesse dia foi Luiz Antônio Nabhan Garcia, que durante a campanha era presidente da União Democrática Ruralista (UDR). “Quando o senhor se tornar presidente, vê o que fará com essa gente da Funai, do Ibama, do Ministério Público, que não respeita a propriedade privada”, afirmou.
Nabhan Garcia é atualmente o Secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, ao qual o Incra está submetido. Em abril, a Repórter Brasil mostrou a conexão entre um pistoleiro contratado pela UDR com o assassinato de um integrante do MST no Paraná.
Tipificar como terrorismo
A hostilidade explícita do presidente em relação ao MST preocupa José Carlos Teixeira, que vive no acampamento Dalcídio Jurandir. “Bolsonaro chama a gente de terrorista, mas ele fala sem saber o peso do que é ser terrorista”, disse. “Terrorismo é outra coisa. Ele [Bolsonaro] não devia falar isso”. Em 2004, quando aconteceram os atentados terroristas em Madri, Teixeira vivia na Espanha, onde trabalhou por seis anos em fazendas na produção de leite.
Hoje ele vive com a esposa, Mikaelli Aparecida de Lima, e dois filhos no acampamento. Eles se conheceram quando trabalharam juntos em um frigorífico em Rio Maria. Após perderem o emprego e não terem onde morar decidiram procurar o acampamento do MST. “Se tiver que sair daqui não temos para onde ir. Nós não temos condição de comprar um pedaço de terra”, afirma Mikaelli.
* Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil