Cícero Guedes: da trajetória marcada por escravidão à militância no MST
Por Clívia Mesquita
Do Brasil de Fato
Natural do interior de Alagoas, Cícero Guedes foi submetido ao trabalho análogo à escravidão ainda criança em monoculturas de cana de açúcar. Como milhares de trabalhadores pobres da região, foi para o sudeste tentar a vida com a esposa e os filhos. Em Campos dos Goytacazes (RJ), foi atraído pela cadeia produtiva da cana em 1990 e anos depois se juntou a ocupação da reforma agrária Zumbi dos Palmares, nas terras da falida Usina São João.
O trabalhador rural que chegou analfabeto no Rio de Janeiro aprendeu a ler e escrever na Escola Municipal Carlos Chagas, em Campos, aos 40 anos, quando já integrava o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Pela dificuldade que teve no acesso à educação, foi um pai rigoroso para os estudos dos filhos, incentivando também outros militantes a estudar.
Seu empenho pela educação pública e de qualidade da base até o ensino superior é reconhecido pela comunidade acadêmica que conviveu com o militante em projetos de pesquisa e extensão agrária na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Instituto Federal Fluminense (IFF) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) em Campos. Cícero estava presente nas principais lutas do movimento estudantil, contra o fechamento de escolas do campo e pela construção do restaurante universitário na Uenf.
“Como pai ele ensinou a se manter unido, organizado, humilde e fazer o bem. Ele sempre foi muito rígido quanto a nossa educação, a importância do estudo, porque ele não teve acesso. Então por conta disso ele sempre encarou o estudo como prioridade”, relata Mateus Santos, de 23 anos, técnico em administração de cooperativas formado pela primeira escola nacional do MST, o Instituto de Educação Josué de Castro no Rio Grande do Sul.
“Como militante, sempre tive noção das lutas que meu pai fazia no movimento, do trabalho dele nas universidades sobre a agroecologia. Ele era um defensor nato da agroecologia e comprovou na prática que era possível produzir alimentos de qualidade livres de agrotóxicos”, completa o filho.
O sítio de Cícero no assentamento Zumbi dos Palmares, em Campos, é referência em produção de matriz agroecológica. O trato com o lote da família e as técnicas sustentáveis de cultivo sem veneno foram passadas desde cedo para os filhos . Após o assassinato de Cícero Guedes, em 2013, Mateus passou a atuar no setor de produção do MST no estado e hoje trabalha no Armazém do Campo no Rio de Janeiro. O espaço localizado no centro da cidade é uma importante conquista para comercializar a produção da reforma agrária.
“A gente enquanto filho também contribuía com o trabalho no lote. Meu pai sempre conseguiu equilibrar bem a militância ativa com o trabalho e o convívio com a família. Sempre foi um pai presente, conseguiu educar os filhos junto com a minha mãe”, completa.
Em uma das últimas entrevistas de Cícero antes de ser morto, ele ressaltou a importância da união entre campo e cidade pela reforma agrária e uma alimentação livre de agrotóxicos. Na defesa em torno da agroecologia, foi um dos idealizadores e maiores entusiastas das feiras regionais por acreditar no diálogo permanente com a sociedade.
“É muito importante vir para a cidade e conversar, falar o que significa a reforma agrária. O grande recado que a gente trouxe é que veneno mata”, disse em 2012 durante a Feira Estadual da Reforma Agrária no Rio de Janeiro.
Ano passado, mais de 150 toneladas de alimentos agroecológicos foram comercializados no Largo da Carioca. Além de patrimônio cultural da cidade, a feira que foi batizada com o nome de Cícero, após sua morte, se consolidou entre o público por oferecer uma variedade de alimentos produzidos pelos assentamentos do MST a preço justo, além de atrações culturais e espaços de debates.
Legado
Para fugir do trabalho análogo à escravidão, Cícero pegou carona em caminhões com a família até o sudeste. Tinha visto companheiros adoecendo por exaustão no corte de cana. Novamente, a experiência dolorosa de vida serviu de combustível para sua luta incansável pela causa popular. Foi membro fundador do Comitê Popular de Combate e Erradicação do Trabalho Escravo em Campos, região onde mais de 200 trabalhadores em condição degradante foram libertados.
“A busca por uma sociedade mais humana e justa foi o percurso da vida do Cícero. Não sei o conhecimento que ele tinha de categorias teóricas que a gente discute tanto, como a luta de classes. Mas sei que ele nos ensinava como essas questões se realizam na prática. A luta constituiu a vida do Cícero e de todos nós que aprendemos com ele. Perdê-lo foi muito difícil, ainda mais da forma que foi”, diz Ana Costa, professora da UFF e amiga de Cícero.
Apesar da trajetória marcada pela escravidão e o analfabetismo, Cícero nunca deixou se abater. A presença imponente e a voz firme também eram características de um homem que cultivava alegria e solidariedade. Como legado, deixa o exemplo de uma vida dedicada à luta contra todas as injustiças.
“Sempre tivemos a preocupação de manter viva essa memória, que nos estimula, encoraja, fortalece e nos faz ter certeza que estamos do lado certo da história”, finaliza Ana.
Edição: Mariana Pitasse/ Brasil de Fato