Pretas e Pretos, entoemos o canto da emancipação
Por Rosineide Pereira e Simone Magalhães*
Da Página do MST
A história do nosso país é marcada pela resistência indígena, negra e popular, entretanto as múltiplas formas de resistências ao sistema colonial escravista não constam nas páginas dos livros que versam sobre a história do Brasil. A omissão das lutas contra o poder estabelecido, contra a exploração e opressões tem por objetivo invisibilizar aspectos fundamentais da constituição da sociedade brasileira, e que, na prática, opera a tentativa de ignorar as lutas e as conquistas desses grupos sociais pela construção de um país livre do racismo e da exploração.
Relegar tais lutas e conquistas a um passado que pretendem tornar esquecido favorece a permanência do mito da democracia racial em nosso meio. Trazer alguns aspectos das lutas por direitos implica conectar o legado daquelas e daqueles que ousaram abrir caminhos no passado com iniciativas e ações que dão continuidade às lutas da população negra hoje.
Os quilombos são referência histórica emblemática da resistência negra. Influenciaram e ainda influenciam movimentos populares de nosso país, porque souberam conjugar a reação ao sistema vigente com a auto-organização social, política e econômica. Produzir alimentos e objetos para a subsistência, cultivar a terra e organizar-se livremente era o anseio daquelas e daqueles que para lá iam. Embora alguns fossem isolados, os quilombos, que existiram em várias regiões do país desde 1575, produziam a sua vida física, social, política e cultural também mantendo “redes de comércio, relações de trabalho, de amizades, parentesco, envolvendo escravos ainda assenzalados, negros livres e libertos, comerciantes mestiços e brancos”, conforme explica João José Reis.
A experiência mais conhecida ainda hoje é a de Palmares, que resistiu por 67 anos, no entanto, existiram centenas de quilombos espalhados pelo país desde o seculo XVI. Atualmente, existem 2.682 comunidades quilombolas certificadas pelos orgãos oficiais, mas a estimativa é de mais de 4 mil comunidades pelo país. Foi apenas na Constituição de 1988 que o Brasil reconheceu a existência e os direitos dos quilombolas. Os quilombos eram cercados e destruídos pelas forças do governo e pelas milícias dos senhores, mas o ensinamento da luta e da busca constante e diária por liberdade não desaparecia e deixava o legado concreto de negação da escravidão.
Assim como a organização do povo preto em quilombos, rebeliões, levantes e revoltas foram também algumas das formas de enfrentamento coletivo ao sistema colonial capitalista escravocrata brasileiro.
As Revoltas
Entre tantas revoltas, merece destaque a Revolta dos Búzios, também denominada Revolta dos Alfaiates ou Conjuração baiana, de 1798, em Salvador(BA). Embora caracterizada pela historiografia como de caráter emancipacionista, a Revolta dos Búzios é considerada um movimento revolucionário social brasileiro, pois reuniu em sua base social um espectro popular amplo de soldados, trabalhadores urbanos empobrecidos, negros livres, negros escravizados, mestiços, profissionais liberais e intelectuais. Os interesses dos envolvidos poderiam ser diferentes, mas, em torno de certa unidade contra a Coroa Portuguesa, os revoltosos expressavam um ideal comum de revolução social em favor da construção da liberdade e da igualdade:
“Animai-vos Povo baiense que está para chegar o tempo feliz da nossa Liberdade: o tempo em que todos seremos irmãos: o tempo em que todos seremos iguais.”
Inspirado nos princípios que levaram à Independência dos Estados Unidos, à Revolução francesa, e à Revolução escrava de São Domingos, os revoltosos disseminavam suas ideias por meio de 12 boletins espalhados nos pontos de maior circulação de pessoas na cidade. A potencialidade da Revolta dos Búzios era tão grande que a repressão selvagem e sanguinária da Coroa Portuguesa teve como objetivo punir exemplarmente os pretos e os pobres pela sua participação no evento. Lucas Dantas do Amorim Torres, Manuel Faustino dos Santos Lira, Luís Gonzaga das Virgens e João de Deus Nascimento foram os condenados à pena capital e tiveram seus corpos esquartejados e as partes expostas nos lugares onde eles se reuniam. Estava dado o recado aos pretos e pobres de que política não era assunto seus!
Cumpre perguntar: por que uma revolta que envolveu um espectro popular amplo, que disputou ativamente a política tendo como sujeito a participação popular e como referencial o ideal socialista ficou esquecida na historiografia brasileira em favor da Inconfidência Mineira? Talvez porque a sociedade brsileira, mergulhada no autoritarismo e na violência, nunca tenha apreciado a participação popular, de pretos e de pobres em seu pojeto de nação! Por esta razão, cabe bem o mito da democracia racial que continua a ser um mecanismo social eficiente para mascarar o racismo que permeia a nossa sociedade.
Entre os anos de 1807 e 1835, foram mais de trinta revoltas e conspirações na Bahia, que, segundo Gabriela Harrison e Lucas Borges, se explicam pelo aumento do tráfico de africanos e a intensificação da carga de trabalho na produção açucareira. A mais conhecida delas foi a Revolta dos Malês, em 1835, em Salvador, protagonizada por africanos muçulmanos da etnia hauçá, da atual Nigéria. Os hauçás mobilizaram e conseguiram a adesão de muitos escravos que tentaram tomar de assalto prédios públicos estratégicos, quartéis, a Casa de Câmara e a Cadeia, além de confrontos com a polícia. A revolta foi contida, mas o movimento que teve a capacidade colossal de mobilizar os africanos muçulmanos e não-muçulmanos na capital baiana deixou como legado a solidariedade entre hauçás e nagôs praticado durante o levante de 1835.
Essas revoltas e tantos outros eventos e processos de lutas inspiram os movimentos negros brasileiros, que conseguiram avançar no desmascaramento do racismo velado pelo mito da democracia racial, levantando a bandeira de luta por uma sociedade justa e igualitária, reivindicando direitos sociais e de cidadania negados durante séculos de escravidão e que mesmo no pós-abolição não foram efetivados.
*Militantes do MST e membros do grupo de estudos Terra, Raça e Classe do MST
**Editado por Fernanda Alcântara