Qual o papel da austeridade e de políticas neoliberais no surgimento do neofascismo?
Nara Lacerda
Do Brasil de Fato/São Paulo (SP)
O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social publicou, nesta terça-feira (7), o dossiê “O mundo oscila entre crise e protestos”, em que aponta como as políticas econômicas dos últimos 50 anos ocasionaram uma forte insatisfação popular, que vem sendo cooptada por movimentos neofascistas.
A proteção do mercado financeiro e a falta de atenção a políticas públicas são as responsáveis diretas pela falta de estruturas que atendam às necessidades da população. Emprego, alimentação, educação, saúde e alívio da pobreza estão em segundo plano para muitos governos.
Somada à falta de articulação da esquerda na busca por saídas e alternativas, a fórmula joga até mesmo as nações mais desenvolvidas em um equilíbrio frágil.
O relatório aponta que a crise de crédito de 2008 gerou um esforço em escala global para impedir o colapso do sistema financeiro. Liderada pelo Federal Reserve Bank dos EUA, a caminhada para estabilizar os mercados investiu recursos no resgate das instituições financeiras, mas manteve de lado problemas sociais agudos.
“Nenhum fluxo de capital chegou para alimentar as quase 1 bilhão de pessoas famintas em todo o planeta. (…) Não houve uma conferência séria de líderes mundiais para tratar dessa questão; nada parecido ao pânico que ocorre quando os mercados financeiros cambaleiam”, defende o dossiê.
Já do lado dos setores da sociedade que pensam outro modelo de desenvolvimento, o autor do dossiê e diretor do Instituto Tricontinental, Vijay Prashad, acredita que ainda que a fragilidade da esquerda tenha razões estruturais – como o colapso das fábricas, o surgimento de empregos precários permanentes e a crise agrária –, é preciso repensar novas formas de organização popular.
“Temos que estudar as novas maneiras de organizar a classe trabalhadora e o campesinato que funcionam em vários lugares e compartilhar exemplos desse tipo em todo o mundo. Parte da penalidade enfrentada pela esquerda é a guerra de informações. Com o poder do dinheiro por trás da mídia, cria-se uma interpretação dos fatos da classe dominante, que é apresentada como uma interpretação universal. Precisamos contestar essa visão”, aponta.
Terreno fértil para o neofascismo
Se o principal arcabouçou ideológico dos regimes de austeridade foi, inicialmente, o neoliberalismo, o descrédito dessas ideias fez crescer o neofascismo. O dossiê do Instituto Tricontinental avalia que, para boa parte da humanidade, o pensamento que favorecia os proprietários minava os horizontes sociais.
Ideias privatizantes e o discurso do empreendedorismo como solução perderam força e os movimentos de esquerda do mundo não conseguiram canalizar o descontentamento em força política.
“Foi nesse vazio que os neofascistas entraram. O que os une é sua atitude em relação à desolação social. Sua resposta aos problemas sociais é prejudicar os vulneráveis: migrantes, comunidades indígenas, homossexuais e outros. Em nossa época, os neofascistas usam a ideologia do ‘outro’ para fazer um setor vulnerável parecer maior e melhor. Parte desse turbilhão de toxicidade é o surgimento das ‘guerras comerciais’”, analisa o documento, que completa: “Para Trump, é mais fácil culpar o México e a China pelo desemprego nos Estados Unidos do que reconhecer a lógica de crise dentro do capitalismo.”
De acordo com Vijay Prashad, a ascensão atual do neofascismo não pode ser comparada ao surgimento de regimes conservadores e nacionalistas entre as duas grandes guerras. No século passado, havia um contexto de deslocamento econômico, humilhação nacional e ascensão da esquerda.
“Acreditamos que a extrema direita aparece agora porque é o liberalismo, com suas políticas neoliberais, que se rendeu, e a classe dominante não tem mais acesso ao controle de massa por meio de partidos liberais; a classe dominante tem, principalmente, a opção da extrema direita de manter o controle sobre as massas.”
Nem mesmo a nova ordem bipolar, entre Estados Unidos e China, que começa a tomar forma, parece representar uma possibilidade de mudança no regime de austeridade. O dossiê aponta para um centro de gravidade da ordem internacional oscilando entre Washington e Pequim. Mas, as previsões indicam que esses dois poderes chegarão a algum entendimento sobre as organizações internacionais e que o sistema financeiro mundial ficará relativamente imune a essas mudanças.
Futuro Incerto
Ao analisar as expectativas de desenvolvimento dos países frente a essa situação, o dossiê aponta um cenário de difícil reversão. Bancos centrais e agências da Organização das Nações Unidas (ONU) preveem que os próximos anos no Ocidente e no Sul Global serão caracterizados por baixo investimento de capital nos setores de manufatura e serviços, produtividade estagnada e baixas taxas de crescimento. Em consequência, desemprego e colapso das instituições sociais serão aprofundados.
Com previsões de baixo crescimento para 2020 e desaceleração em 2021, entidades como o Fundo Monetário Internacional (FMI) pregam a continuidade das políticas de austeridade e a busca pelo fim das tensões comerciais.
São posições políticas que o documento considera incoerentes, já que as tensões entre nações são justamente causadas pela falta de investimento social e foco na preservação do sistema financeiro.
Segundo o relatório, “essas tensões são um espelho do esvaziamento da sociedade por causa da austeridade. Um levou ao outro, e ambos se alimentam”.
Edição: Vivian Fernandes/Brasil de Fato