Caça às bruxas nunca terminou e mulheres permanecem em resistência
Por Marina Duarte de Souza
Da Página do MST
Uma grande fogueira representada pelas camponesas do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina abriu o segundo dia do 1º Encontro Nacional de Mulheres Sem Terra nesta sexta-feira (6). O fogo, que nos primórdios da humanidade aquecia, protegia e alimentava as comunidades, foi o elo condutor da mística que retratou a perspectiva das mulheres na história da luta de classes, ao longo das fases do capitalismo.
Tudo começa quando o sistema mercantil se apropria do fogo para queimar as mulheres na inquisição da Igreja e da classe dominante. As chamadas bruxas tinham seus corpos, saberes e modos de vida queimados por contestar a subordinação ao capital e ao clero. A partir daí, o fogo retratado pelas camponesas vestidas de vermelho, laranja e amarelo, permanece em cena para trazer outras mulheres que também foram queimadas pelo sistema ao longo dos momentos de exploração capitalista.
A mística acompanhou as caravelas dos colonizadores que “queimaram” as mulheres indígenas e africanas durante a invasão das Américas, Índia e África. Passou pela criminalização da medicina popular onde médicos “queimaram” as benzedeiras e curandeiras da terra. E chegou na industrialização, em que o fogo se transformou em fábricas que exploravam o trabalho de mulheres e crianças que também foram “queimadas” por protestarem por melhores condições de trabalho.
Em meio às canções e poesias, as mulheres Sem Terra entravam e saiam do palco para representar cada momento histórico e suas personagens, mas assim como na realidade, sempre havia um capataz do capital para queimá-las. Por fim, a representação chegou na fogueira do sistema dos dias de hoje, que quer destruir as produções agroalimentares, as reservas indígenas, os assentamentos da Reforma Agrária e queimar as mulheres que lutam por direitos numa conjuntura neofascista e fundamentalista.
A intervenção ilustrou o tema de estudo da primeira manhã do encontro. Para se aprofundar neste debate da atual ofensiva do capital e o impacto na vida das mulheres, o evento recebeu a professora de economia política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marina Gouveia, que pontuou uma diferença de outras fases do capitalismo para esta.
“Momento não é só de retrocesso e crise, da mesma dimensão que a gente teve na história, o momento é de reconfiguração completa do capitalismo, caracterizado pela ofensiva aos trabalhadores e trabalhadoras do mundo”, explica Gouveia, que ressalta que não é um simples ataque, uma vez que pode transformar o capitalismo mundial com um aprofundamento muito maior do neoliberalismo.
A economista explica que é nessa ofensiva que o fascismo entra como instrumento da classe dominante garantir a legitimidade para retirada de garantias, violentar todo estado democrático de direitos para garantir maior mercantilização, enquadrar a classe trabalhadora através da repressão e da violência (genocídio da população) e aumentar a extração de mais-valia.
Presente no debate, a integrante da coordenação nacional do MST, Kelli Mafort, focou na questão agrária diante desse fenômeno mundial. “Há uma aplicação do neoliberalismo no campo. Atualmente, o modelo do agronegócio se reconfigura também pautado pela crise do capital. Isso intensifica um processo de apropriação sobre os bens naturais. Essa relação destrutiva do capital com a natureza, traz uma relação destrutiva com os povos do campo”, aponta.
A dirigente cita a preocupação com medidas como as que regularizam a grilagem de terras, oficializada inicialmente no governo Temer e que, agora, passa por um aprofundamento por meio da Medida Provisória (MP) 910, editada pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019.
Diante desta realidade, Kelli Mafort destacou que é fundamental para o capitalismo colocar na fogueira os que lutam pela terra, daí a importância de mobilização popular que resistiu mesmo enquanto as mulheres eram queimadas ao longo dos anos da exploração do sistema.
“O movimento de moradia costuma dizer que, ‘enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito’. E nós temos que dizer: enquanto se alimentar for um privilégio, ocupar terras para a reforma agrária é um direito legítimo dos povos”, exclamou a dirigente.
(Re)existência
“A caça às bruxas nunca terminou, mas as mulheres também nunca deixaram de resistir”, diz o livro “Calibã e a bruxa”, de Silva Federici (2004, editora Elefante), que inspirou a mística de abertura do encontro. Foi exatamente a (re)existência, o renascimento, a esperança, a sede de justiça e de liberdade, que encerraram a intervenção.
“Nós somos o fogo e dele sementes de luta e resistência das histórias escondidas, mas não esquecidas. No clarão das chamas ressignificam, saltam, voam… Nós somos as netas das bruxas que o capital não queimou, herdeiras da luta, e nossas vozes não serão caladas. Elas ecoarão!”, conclamaram as camponesas da região Sul.
* Edição: Ednubia Ghisi