Memória e autocuidado: cartas resgatam histórias de mulheres Sem Terra
Por Thays Puzzi,
Da Unicopas
“Eu vivia na cidade trabalhando, lavando roupas nas casas para ajudar meu marido. Levava uma vida muito precária”.
“Eu sou mãe de nove filhos”.
“A gente vivia trabalhando na terra dos outros. Arrendando, sofrendo”.
“Meu pai ficou sabendo desta ocupação e ele nos convidou para viver com ele”.
“No início dava muito medo”.
“Eu já estava completando 8 para 9 meses de barriga, tivemos um confronto com fazendeiros e milicianos, foi terrível, comecei a ter contrações e não tinha como eu sair do barraco, que que eu fiz, fugi no meio da noite. Era o único jeito de sair dali”.
“Hoje, graças a Deus, posso plantar, estou muito feliz. Posso viver uma vida melhor”.
“Hoje faço parte de um grupo de mulheres porque acredito que nós devemos sempre estar unidas”.
“Agradeço muito a Deus e ao MST. Sou muito feliz”.
Poderia ser o relato de uma única história, mas esses fragmentos são uma pequena parte da trajetória de diferentes mulheres Sem Terra. De regiões distintas, muitas delas nem chegam a se conhecer pessoalmente, mas todas carregam no peito algo em comum: a luta pela terra.
“Ao ler essas cartas a gente ganha força. A gente consegue entender as nossas mulheres e a nossa organização. Elas não falam somente delas. Elas falam dos filhos, do marido, do assentamento, da vida dentro do Movimento”, disse Rosmeri Witcel, da coordenação Político-Pedagógica da Escola Florestan Fernandes, que na coordenação da equipe de cartas do I Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra, que reúne 3.500 camponesas em Brasília até a próxima segunda-feira (9).
A ideia de escrever cartas surgiu logo no início da construção do Encontro. Rosmeri conta que começaram a avaliar quantas mulheres seria possível trazer até Brasília. “A gente não ia conseguir trazer todas elas. Foi uma forma de fazer com que essas mulheres estivessem presentes mesmo não estando aqui”.
A proposta deu tão certo que as mulheres, a partir dos trabalhos de base, começaram a contar suas histórias um ano antes do evento. Inspiradas pelas mulheres revolucionárias, que sempre tiveram essa prática, elas escreveram, sobretudo, o que é ser uma mulher Sem Terra. “Nossas mulheres também são revolucionárias, mas nós não temos tempo de parar e pensar em nós mesmas. Escrever as cartas também foi isso: ter um tempo para olharmos para nós e refletir sobre toda a nossa vida. Somos muito acostumadas a ver tudo que é externo: o filho, a casa, os cuidados com a família. Mas para a gente mesmo, não paramos para pensar. Escrever, desenhar [algumas delas retrataram suas vidas em forma de desenho] foi um ato de autocuidado e de memória de si mesmo”, observou Rosmeri.
A contagem geral do material ainda não foi finalizada, até porque o espaço de exposição das cartas escritas durante o processo preparatório do Encontro também é um local aberto para todos os participantes do evento escrevem histórias e deixarem suas mensagens. “Com certeza já temos mais de 600 cartas. Eu acredito que a gente vai chegar a mais de mil cartas escritas”, revelou.
O desejo de continuidade desse processo é latente para Rosemeri, uma vez que, além de se mostrar um importante instrumento de fortalecimento e protagonismo, segundo ela, as mulheres gostaram de fazer isso. “Para elas foi importante. Elas registram isso na escrita. Tanto que tivemos vários fatos de mulheres que escreveram e não puderam vir. Então, veio a neta procurar a carta escrita pela avó porque ela quer saber onde está. Nós encontramos a carta, a neta tirou uma foto e vai levar para mostrar para a avó. Outras trouxeram as amigas para mostrar a carta que escreveu. Outras vieram tirar foto com a própria carta nas mãos. Então, teve esse sentimento, o de escrever uma carta que sabiam que alguém iria ler”.
A expectativa é que as cartas se transformem em um livro publicado com as palavras das mulheres Sem Terra. Enquanto isso não acontece, um livro artesanal está sendo construído durante o encontro, com a impressão e colagem das cartas.
“Nossas mulheres não se pensam fora da organização, porque elas retratam o quanto o Movimento é importante para elas. Esse movimento dentro do Movimento faz a gente entender que não estamos sozinhas, que estamos fazendo um trabalho de libertação com as nossas mulheres e que isso é uma tarefa coletiva. Pensamos o nosso feminismo camponês e popular a partir das nossas lutas. A gente não constrói o feminismo teórico, a gente constrói no dia-a-dia, na prática, na vivência e na vida das nossas mulheres”, completa a dirigente do MST.